Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Silêncio dos intelectuais e o barulho dos tolos




O silêncio é o que se diz naquilo que se cala. (Eduardo Portella)


A mídia acabou de inventar uma daquelas suas verdades inapeláveis: a de que os intelectuais estão em silêncio. Não se sabe como procedeu para tirar tal conclusão, mas os indícios são os de sempre: alguém diz e outros repetem ad nauseam. Isto posto, já não se questiona se há silêncio, não se define o conceito de intelectual, nem o de silêncio. É deflagrado sem mais delongas o círculo vicioso da insensatez. O mais desconcertante é que os intelectuais entrevistados tenham caído na armadilha da pergunta e enchido o balaio dos interrogadores com carradas de tolices.


Quem está em silêncio, senhores e senhoras? Por que a pergunta foi feita apenas àquela meia dúzia barulhenta de sempre, agora calada por um breve período? Antes como agora tinha pouco o que dizer, a não ser submeter-se com saltitante desenvoltura à orquestra de aprovação, sem crítica nenhuma. E antes deles foram outros a parar nos cárceres, a perder empregos, a sofrer muito na vida enquanto sindicalismos de todos os tipos ensejavam o bem-bom para muitos que o que mais fazem é vangloriar-se de um passado que não tiveram. Quem ousasse sequer ponderar, nem se tratava de discordar, era excluído do convívio dos happy few, que eles, sim, sabiam de tudo.


Por acaso intelectuais como Francisco de Oliveira, Emir Sader, Frei Betto, Marco Antonio Villa, Denis Rosenfeld e Olavo de Carvalho, entre outros (cito autores de idéias discrepantes, mas a nenhum deles pode ser negada a condição de intelectual), estiveram calados? Estão calados? E aqueles outros intelectuais, a maioria, que JAMAIS são cobertos pela mídia, estiveram calados? Estão calados?


Verdades essenciais


Dá até pena verificar a relação entre imprensa e universidade, por exemplo. Surge um tema sobre o qual é necessário entrevistar um intelectual. Um jornalista é destacado para a tarefa. É norma que seja novo no ofício, venha exercendo a profissão há pouco tempo. O que faz esse profissional? Digamos que o tema seja a falta de água no mundo – aliás, iminente, anunciada para ocorrer ainda neste decênio. Pois, pauta na mão, o primeiro procurado é o reitor, o diretor, o chefe do departamento, essas instâncias. Ora, no meio universitário, principalmente nas universidades públicas, o pesquisador não é chefe de nada, não tem cargo nenhum. Aliás, é condição para seu trabalho afastar-se de cargos.


O PT, hegemônico nas universidades públicas, tampouco permitiria que um estranho no ninho chegasse a instâncias decisivas. Por norma – certamente há as exceções de praxe – há mútua repelência ou descaso entre uns e outros, isto é, entre quem pesquisa, ensina e trabalha e aqueles que fazem carreira militante nos campi. Nem a ditadura militar teria ousado nomear reitores certas toupeiras que, eleitas pelo que se convencionou denominar ‘comunidade universitária’, foram alçados a instâncias universitárias como reitorias, pró-reitorias, direções, chefias etc.


Listas sêxtuplas e tríplices disfarçam o engodo, mas a norma é que haja cumplicidade de propósitos, que não podem ser explicitados, entre eleitores e eleitos. Ora, um Estado que tem um projeto educacional, um projeto de pesquisa, terá também quadros para designar autoridades nos campi. Sobre esta questão, sim, há um longo silêncio que já dura décadas, enquanto a universidade patina nas ditas eleições subsidiadas por ‘consultas à comunidade’.


Enquanto os expoentes do silêncio, cujos contornos foram agora delimitados erroneamente, recolhiam palavras e textos, outros, que JAMAIS estiveram em silêncio, continuaram fazendo da palavra a sua principal ferramenta de trabalho, falada ou escrita, na sala de aula ou fora dela, na imprensa ou em revistas especializadas, em artigos e em livros.


Em resumo, ficaram em silêncio aqueles que, abdicando da capacidade crítica, aderiram e se submeteram à nova nomenclatura do poder, em muitos casos numa sabujice de dar dó! Houve até quem questionasse a norma culta da língua portuguesa para que fosse adequada aos plurais sem o ‘s’ final, marcado apenas no artigo, tendo chegado até a dar gênero a advérbio como ‘menos’, que bem poderia ser ‘menas’, sim, à luz do código triunfante de quem declarou que não lia porque era cansativo, preferindo por isso a esteira de ginástica.


Pois é, mas algumas verdades essenciais de nossa existência estão apenas nos livros e somente ali poderão ser encontradas. A Humanidade batalhou muito para obtê-las. Em muitos casos, seus autores padeceram a perda da liberdade e da vida para chegar aonde chegamos.


Bem precioso


Há silêncios e silêncios. Houve entre nós, recentemente, um longo silêncio, deflagrado nos anos pós-1964 e retomado com violência ainda maior nos anos pós-1968. Mas depois houve novos silêncios impostos. Novos suseranos e novos sátrapas, estabelecidos nas universidades, nas agências financiadoras de projetos de pesquisa e também na imprensa, enfim no sistema que preside à expressão dos intelectuais, sem o qual o pensamento deles não é conhecido (editoras, por exemplo), lançaram mão de procedimentos que diziam condenar e os utilizaram para perseguir colegas, anular-lhes a expressão, impedir a discordância, vetar a saudável controvérsia que deve vigorar em ambientes intelectuais sadios.


Se imprensa e universidades sofressem contínuas devassas como as impostas ao Congresso, nessa sucessão atordoante de CPIs, outros silêncios viriam à luz, outros calados se manifestariam e as revelações seriam tão ou mais estonteantes do aquelas que a imprensa não cessa de estampar com tanto destaque dia sim, dia também.


A etimologia oferece pistas curiosas para o papel dos intelectuais numa sociedade de classes, excludente e violenta como a brasileira, em que a cordialidade é privilégio dos mandantes, em grandes acordões, em alimentos que não podem dispensar o aroma inevitável do orégano. Ambas as palavras, silêncio e intelectual, dão entrada na língua no século 14. Cheirando ainda ao ambiente rural do paganismo romano, a língua portuguesa vincula as origens de intelectual a atividades agrícolas (a raiz comum ‘leg’, presente em colher, entender, reunir, inteligência, diligência, intelectual etc) – o que, aliás, faz também com cultura (cultuam-se o trigo e o pensamento, o verbo é o mesmo), erudito (ex-rude) etc.


E está em silêncio quem precisa calar-se, como o depoente num interrogatório, em atividade cujo domínio conexo com ‘tacere’ (guardar silêncio) leva-nos a entender melhor o que vem a ser um sujeito taciturno: é aquele que está triste por não poder dizer o que sabe, o que precisa calar.


Mas um dia virá a alegria de poder dizer o que agora cala, pois, como ensina o Eclesiastes, para tudo há um tempo. E por mais que tenham sido ditas muitas coisas, e caladas tantas outras, há muitas mais que haverão de ser proferidas, assim como outras que serão caladas, com a probabilidade de algumas delas serem caladas para sempre. Por isso, os poetas podem dizer dos mortos que são silentes! São, de fato, mas também eles podem ter procuradores autorizados a revelar o que os homicidas e suicidas quiseram calar com a fabricação de cadáveres. Pois não estão aí as biografias?


Vladimir Herzog – como esquecer?, faz trinta anos! – falou muito depois de morto pela pena de um juiz corajoso que ousou enfrentar o status quo e condenar o Estado, que não soube garantir a integridade do cidadão que prendeu para averiguações. Não satisfeito de roubar-lhe o mais precioso dos bens, depois da vida, que é a liberdade, impôs a um jornalista, portanto um intelectual, a morte sob tortura. Perto de sofrimentos como o de Vladimir Herzog (já morto) e Fernando Gabeira (ainda vivo), certo silêncios ditos de intelectuais mudam nossas decepções, alterando sua importância, feitio e tamanho.


Como diz Cecília Meireles no Romanceiro da Inconfidência:




‘E recompunha as coisas incompletas:/ figuras inocentes, vis, atrozes,/ vigários, coronéis, ministros, poetas’.