Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Somos todos excluídos digitais



‘Vamos almoçar/ Sentados na calçada/ Conversar sobre isso e aquilo/ Coisas que nóis não entende nada.’ (Torresmo à Milanesa, samba de Adoniran Barbosa e Carlinhos Vergueiro)


Acaba de sair no Brasil um livro polêmico: O culto do amador, de Andrew Keen (Rio de Janeiro: Zahar, 208 páginas). Já no subtítulo, ele deixa claro a que veio: ‘Como blogs, MySpace, YouTube e a pirataria digital estão destruindo nossa economia, cultura e valores’. Para Keen, a internet promoveu os amadores – em música, cinema, educação, jornalismo, saúde etc – à condição de donos da verdade. Por isso ela seria destrutiva.


Há que se conceder que o autor se fundamenta em fatos. Relata, por exemplo, a agonia de jornais impressos, que enfrentam dificuldades sem precedentes diante da oferta esmagadora de ‘informações’ na rede. ‘Informações’ entre aspas, bem entendido. Produzidas por gente que a gente nunca sabe direito quem é, elas têm credibilidade nula. Mesmo assim, às vezes ‘colam’ e viram ‘verdade’ por alguns dias. Enquanto isso, as redações tradicionais encolhem, cambaleantes, em sucessivas ondas de demissões. O jornalismo mergulhou numa crise que, sem exagero, podemos chamar de histórica. Se qualquer um pode fazer as vezes de repórter em suas horas vagas, por que é que a sociedade vai precisar de jornalistas profissionais? Por que vai pagá-los?


Os estragos perpetrados pela rede mundial de computadores não ficam por aí. O autor mostra a agonia da indústria fonográfica num mundo em que as pessoas já não compram CDs: ‘baixam’ as músicas diretamente da internet. Em geral, pirateadas. Keen também critica frontalmente a Wikipédia, a enciclopédia virtual em que qualquer um pode escrever ou corrigir qualquer verbete e que desbancou a Britannica.com, que conta com dezenas de prêmios Nobel no seu quadro de colaboradores e é editada por profissionais.


É por isso que ele não se conforma. Ex-empreendedor do Vale do Silício – o paraíso das tecnologias digitais, na Califórnia, onde muitos fizeram fortuna –, Andrew Keen se desiludiu com ‘desandar’ da carruagem. Em sua ira, chega a comparar os blogueiros a primatas – isso mesmo, a macacos – dotados de computadores.


Palavra da moda


Não se pode concordar com ele em tudo, evidentemente. Em muitas páginas, fica a impressão de que o autor é um nostálgico que, diante de mudanças difíceis de compreender, parece preferir voltar à tirania do argumento da autoridade (um prêmio Nobel vale mais do que mil leigos, sem exceção) e ao regime dos velhos meios de massa. Não é preciso ser gênio para saber que a solução não virá por aí. A solução não está nos lucros astronômicos e fáceis das gravadoras, assim como não está nos jornais que, em boa parte, vinham abrindo mão de cultivar a credibilidade e de buscar a inovação. A solução está logo à frente, ou não estará em lugar nenhum.


A internet não é nova face do capeta. Ela tem o mérito indiscutível de ter dado voz aos que não tinham vez – e só por essa proeza já cumpriu um papel democrático notável. Mais ainda: ela deu a (quase) todos mais vias de acesso ao conhecimento produzido por boas fontes. Tudo isso é positivo e não será com saudosismos que vamos resolver os embaraços do caminho.


Agora, que esses embaraços são medonhos, isso lá eles são. O pior deles, é curioso, o autor de O culto do amador não chega a explorar. Trata-se da concentração de dinheiro e poder que a internet vem proporcionando. Os que dominam a tecnologia e podem investir bilhões de dólares na rede têm mais poder do que outros. Muito se fala da ‘exclusão digital’, mas esse conceito, que já teve sua utilidade, é raso e, por vezes, demagógico. Acredita-se que o ‘excluído digital’ é aquele que não tem um computador ligado à rede mundial. Não é bem assim. No fundo, mesmo eu, que sei mandar e receber e-mails, que uso meu celular para acessar a internet, que escrevo em sites e faço minhas pesquisas pelo Google, mesmo eu sou um excluído digital. Você é um excluído digital. Há várias modalidades de ‘interatividade’ (palavra da moda) que estão além do meu e do seu alcance. Não é verdade que todos sejamos iguais perante a rede.


Saídas no futuro


Nos tempos da TV, qualquer um que tivesse um aparelho em casa podia se considerar um ‘incluído’ na comunicação. Hoje a conversa é outra. Conforme o equipamento de que o cidadão disponha, ele terá um nível maior ou menor de aproveitamento e de influência. A separação entre os incluídos e os excluídos não é mais uma risca preta sobre fundo branco. Ela é gradativa e virtualmente (outra palavra da moda) infinita. Isso vale para o sujeito comum, que é cliente dos novos serviços digitais, e também para as empresas e organizações que disputam lugar no chamado ciberespaço. Ou elas têm capital e se situam na vanguarda tecnológica ou ficarão nos últimos vagões do trem.


Dizem que a internet ‘democratizou’ a comunicação. Será mesmo? É verdade que, quando vista no plano horizontal, ela abriga uma diversidade de ‘conteúdos’ (mais uma palavra da moda) que nunca foi vista. Mas, se formos capazes de divisar na paisagem o seu eixo vertical – e ele está lá –, perceberemos que os níveis de entrada (e de domínio) na rede são altamente diferenciados. Há uma hierarquia da técnica e do dinheiro separando uns e outros, uma hierarquia metálica, apontada para o céu, que se estende a se perder de vista.


Keen tem razão num ponto: em sua euforia aparentemente igualitária, a internet fez parecer ‘autoridades’ aqueles que, como no samba de Adoniran Barbosa e Carlinhos Vergueiro, falam alegremente do que não conhecem. Isso não é democratização. É apenas banalização. E não adianta buscar a saída no passado. Nesse caso, nós dependemos do futuro. O problema é que, se o futuro for aquele que a banalização prenuncia, estamos perdidos.

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Jornalista, professor da ECA-USP