Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Zeca Camargo, Cristiano Araújo, abismos e pontes

A trágica morte de Cristiano Araújo suscitou, nos últimos dias, uma série de artigos e declarações que tentavam dar conta do fato de que um cantor tão popular, oriundo do sertanejo que já fora tachado de universitário, conforme apontou Gustavo Alonso, fosse desconhecido justamente por parte relevante da classe universitária, incluindo a que ocupa tradicionalmente os postos de legitimadores da memória da música brasileira, como jornalistas.

Uma das hipóteses, levantada pelo colunista Tony Goés no portal do jornal Folha de S.Paulo, sublinhava a existência de um abismo cultural no Brasil para explicar o fenômeno. A análise peca, porém, por traçar a imagem de uma sociedade atomizada, em que os diversos grupos sociais não se comunicam, e por subestimar a incrível e imprevisível capacidade de diferentes grupos interagirem.

Para o antropólogo Gilberto Velho, certos indivíduos, ao transitarem por diferentes grupos e domínios sociais, desempenham o papel de comunicadores, de mediadores entre diferentes mundos, estilos de vida e experiências. Em outras palavras, os mediadores culturais construiriam pontes sobre os abismos culturais supostamente intransponíveis.

Assim, artistas legitimados como sendo de MPB, quando gravam uma canção de um artista considerado “menor” por quem tem o poder de legitimação, a apresentam e/ou a legitimam para o seu público. É caso da gravação de “Você não me ensinou a te esquecer”, do cantor Fernando Mendes, regravada por Caetano Veloso e incluída na trilha sonora do filme Lisbela e o Prisioneiro.

As diversas pontes culturais

A ignorância de parte da imprensa sobre Cristiano Araújo resultou em algumas gafes, como as cometidas por Fátima Bernardes e Zeca Camargo, que trocaram o nome do cantor pelo do jogador de futebol Cristiano Ronaldo. No texto “Morreu Michel Teló?” Gustavo Alonso compara o alcance de Michel Teló e Cristiano Araújo dentro e fora do meio sertanejo.

Ironicamente, há quem considere decisivo o fato de o craque do Real Madrid ter dançado “Ai se Eu Te Pego” em campo para que a gravação de Teló obtivesse sucesso no plano mundial. Nessa cadeia de mediação cultural, jogadores brasileiros teriam apresentado a Cristiano Ronaldo a música brasileira, gravada anteriormente, sem o mesmo sucesso, em ritmo de funk e forró. O jogador português, por sua vez, teria feito a ponte entre a música sertaneja brasileira e o resto do mundo. Legitimada a música internacionalmente, Michel Teló ganhou prestígio nacionalmente, ainda que muitos brasileiros pudessem se incomodar com isso.

Teló, por fim, teria exercido o papel de mediador cultural no quadro “Bem Sertanejo”, do programa Fantástico, ao apresentar às novas gerações, amantes ou não do sertanejo tachado de universitário, as canções do sertanejo tachado de raiz, criando pontes entre passado e futuro, entre sertanejos e o público não sertanejo que assiste ao programa.

Um ex-apresentador desse mesmo programa dominical, Zeca Camargo, causou revolta de artistas sertanejos e dos fãs deles ao declarar que a comoção pela morte de Cristiano Araújo era expressão da “pobreza da atual alma cultural brasileira”, da “ausência de fortes referências culturais que experimentamos no momento”. Logo ele, apresentador de uma emissora que cobriu a tragédia ostensivamente e ex-apresentador da MTV, emissora que abrigou os mesmos roqueiros e cantores pop que na década de 1980 eram acusados de fazer uma música pobre e efêmera.

O jornalista não explicita quais critérios utiliza para definir o “verdadeiro valor” de um cantor ou o que entende por um “ídolo de verdade”. Seria a quantidade de sucessos? A quantidade de acordes em suas músicas? O pop e o rock estariam imunes a clichês harmônicos? Não se pode esquecer que, se o pop já foi símbolo de produto descartável, o punk criticou a própria ideia de “ídolo”, apostando em um som avesso a virtuosismos e rebuscamentos, que qualquer jovem poderia fazer.

A necessidade de se destacar em meio a uma multidão de artistas com estilos muito parecidos de fato fez com que cantores como Gusttavo Lima, João Lucas & Marcelo e Cristiano Araújo cantassem os seus próprios nomes nas letras de seus sucessos, como um cartão de visita que marcasse junto ao público de quem eram aquelas vozes. Por outro lado, muitos dos artistas tachados como bregas, apesar das apostas contrárias, ainda são lembrados, muitos anos após terem surgido.

Não cabe aqui julgar se a comoção por uma morte é excessiva ou insuficiente, ainda que a crítica ao sensacionalismo midiático seja pertinente. Muito menos mensurar o valor cultural de um cantor querido por milhões de brasileiros ou fazer exercícios de futurologia para imaginar qual teria sido o seu destino na história (oficial) da música brasileira. Não se trata de condenar quem não conhecia uma música sequer dele ou, ao contrário, de ostentar esse desconhecimento com um orgulho preconceituoso.

Trata-se de apontar que, ao contrário do que se disse, Cristiano Araújo, independentemente de juízos de gosto, não era “uma revelação de uma música só”. Se muitos ainda não o conheciam ou se conheciam apenas uma de suas músicas, talvez tenha faltado a Cristiano Araújo, para além de outros fatores, uma ponte eficaz como Cristiano Ronaldo para transpor os tais abismos.

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Danilo Cymrot é pesquisador cultural, Mestre e Doutor em Direito pela USP, onde defendeu dissertação sobre a criminalização do funk. Com o nome artístico Danilo Dunas, é cantor, poeta, compositor e sanfoneiro.