Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Paradigmas noticiosos questionados pela polarização ideológica

(Foto: Janeb13/Pixabay)

A indicação do novo editor executivo do jornal The New York Times deflagrou uma intensa polêmica entre os jornalistas norte-americanos sobre a atitude que os profissionais devem tomar face à multiplicação de condutas antidemocráticas no país e no mundo. A escolha de Joseph Khan como novo chefe da redação foi vista como um reforço da linha de independência e objetividade que a família Sulzberger, que controla o NYT, assumiu no confronto com o ex-presidente Donald Trump, um barulhento desafeto da “Velha Dama Cinzenta” [1].

A polêmica surgiu porque um grande número de jornalistas passou a questionar a tese da isenção noticiosa, num momento em que o debate político nos Estados Unidos se mostra cada vez mais contagiado pela dicotomia entre a democracia e o autoritarismo antidemocrático.  Professores como o respeitado Jay Rosen, na escola de jornalismo da Universidade de Nova Iorque, lamentam que o Times se preocupe em dar espaço a Trump quando este se prepara para disputar novamente a Casa Branca em 2024, com uma plataforma ainda mais conservadora do que no seu mandato anterior, entre 2017 e 2021. 

Para Rosen, o The New York Times, a exemplo de muitas outras publicações, “tenta aplicar o modelo simétrico na cobertura jornalística de dois partidos políticos, numa realidade em que um deles mostra uma crescente inclinação antidemocrática” [2].  O mesmo dilema afeta a imprensa brasileira na campanha para as eleições de outubro deste ano, diante da tendência dos partidos e movimentos de extrema direita de recorrerem a expedientes não democráticos.

A polarização ideológica dificulta o trabalho jornalístico porque limita drasticamente a quantidade de opções informativas que os profissionais dispõem para produzir notícias imparciais e equidistantes de opostos políticos. Na conjuntura atual, a radicalização interessa apenas à extrema direita porque ela está se sentindo encurralada politicamente. Para manter a política da isenção e equilíbrio noticioso, muitos jornais tendem a atribuir também aos movimentos ditos de esquerda uma radicalização, o que não corresponde à realidade dos fatos.

Exatidão versus isenção

Equiparar facções democráticas e antidemocráticas na questão da polarização para não questionar a estratégia da isenção, equivale a ferir o princípio da exatidão, outro dogma do jornalismo.  Quando uma autoridade mente, o jornal não pode ser isento e nem imparcial: a exatidão impõe que se diga a verdade, ainda mais quando o veículo assume um compromisso público com a denúncia das fake news

Além disso, existe uma diferença fundamental entre isenção e exatidão. A primeira é sempre relativa a uma circunstância ou conjuntura. É um conceito relacional porque implica a referência a um fato, pessoa ou evento, por exemplo.  Já a exatidão é factual e concreta, logo não pode ser adaptada a circunstâncias. Entre os profissionais do jornalismo está ganhando corpo uma controvérsia sobre o que é mais importante na conjuntura atual: a fidelidade factual ou a isenção política.

O problema é que os valores do jornalismo estão sofrendo o impacto das mudanças que atingem toda a área da informação e da comunicação, como parte do conjunto de transformações sociais, econômicas, culturais e políticas pelas quais o mundo está passando.  Não dá para dissociar a profissão do ambiente que a cerca, porque o jornalismo tem uma função insubstituível na dinâmica social contemporânea. 

É diante deste quadro que o jornalismo está sendo levado, mais uma vez, a fazer uma escolha entre adotar o princípio democrático na produção de notícias ou deixar-se envolver pela ilusão de que é possível ser isento numa conjuntura polarizada. Se o jornalismo se propõe dar às pessoas os dados, fatos e informações que elas precisam para tomar decisões, ele tem um compromisso irrevogável com a defesa da democracia e a identificação de todas as formas de autoritarismo com viés fascista. 

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[1] The Old Grey Lady (Velha Senhora Cinzenta) é o apelido familiar dado ao NYT nos anos 50, numa referência à postura sempre circunspecta, distante e algumas vezes arrogante do jornal em assuntos políticos e econômicos.

[2] Tradução livre do original “The Times is struggling with a model of political coverage that assumes a rough symmetry between the two parties at a time when one of the two has turned anti-democratic.