Saturday, 14 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A escolha das fontes na cobertura de guerra: frames narrativos e perspectivas editoriais

Há quatro semanas, assistimos atônitos, por todos os cantos e poros (leiam-se veículos do main stream e redes sociais principalmente), ao complexo e mais recente embate bélico Israel x Hamas, desde o famigerado 07 de outubro de 2023. 

As linhas de cobertura dos meios tradicionais jornalísticos sobre o tema oscilam entre a tentativa de dar pequenos e episódicos furos e promover a análise de conjuntura do quadro internacional que se intensificou. 

Seriam parâmetros para estabelecer angulações e linhas editoriais, nesse caso, pelo menos três tipos de fontes, já conhecidas e teorizadas por diversos estudiosos do campo de fundamentos do jornalismo. Em especial, Nilson Lage e Aldo Schmitz consideram “fontes oficiais”, “testemunhais” e “experts” categorias que casam com a representação de atores sociais relevantes na narratividade jornalística. Todas funcionariam, em muitos contextos, como lembra o pesquisador português Jorge Pedro Souza, “on the record” (a fonte é identicada e tudo o que ela pronuncia pode ser utilizado na retórica jornalística), ou, no máximo, “on background/ not for attribution” (sua identidade não é revelada, mas as informações fornecidas pela fonte podem ser difundidas).

No feijão com arroz de todo dia, cabe à imprensa algumas práticas de relato corriqueiras e já conhecidas: primeiramente notificar o cotidiano de uma guerra (número de mortos, sob escombros e feridos) e reverberar as ações de cada parte envolvida. Também mostrar o papel de órgãos multilaterais como a ONU ou do inexpressivo Conselho de Segurança do órgão na mediação entre as nações. Destaca-se igualmente o aceno para a tensão, nesse caso, entre Israel e o mundo árabe, e a possível escalada de violência a partir disso. No que tange ao valor-notícia “proximidade” e os critérios de noticiabilidade, conceitos trazidos da Teoria do Newsmaking (Traquina), temos ainda a novela dos processos de repatriação nas zonas de fronteira, como amplo interesse dos veículos nacionais.

Os frames anteriormente destacados têm nas chamadas “fontes oficiais”, aquelas comumente representadas pelo Estado, um aporte significativo na construção do campo discursivo. Nesse caso, para o registro do folhetim diário das hostilidades promovidas, seriam oficiais as fontes capitaneadas pelo alto comando do exército israelense e do Hamas, mais precisamente as FDI (Forças de Defesa de Israel), que diariamente anunciam os passos a serem dados na relação ataque/ contra-ataque, e única e exclusivamente o Ministério da Saúde palestino que, em nota ou pronunciamento público, divulga a sangrenta contabilidade das baixas de civis e militares para toda a imprensa internacional. A força enunciativa, portanto, volta-se efetivamente para os chamados “definidores primários”, como sentencia Felipe Pena, que seriam aquelas fontes de altíssima imputabilidade e autoridade, na visão de Pereira Júnior, representadas também pelos chefes de estado, diplomatas, embaixadores e altos comissários de instituições internacionais.

Ainda passa a constar na arena noticiosa, mesmo que de modo morno e tecnicista, o tópico que deveria ser o mais importante e que, de fato, vai prevalecer em registros futuros da memória social: o caos, a barbárie, o genocídio, os crimes de guerra e o evidente e crescente extermínio de civis no lado palestino. Para essa narrativa, as informações mais expressivas e contundentes não se originam dos veículos da imprensa formal ocidental, todos dependentes de fontes secundárias midiáticas para dar conta do constatável, já que há poucos correspondentes ocidentais que conseguiram, nesse momento, ultrapassar o vasto muro que separa Israel e Faixa de Gaza. A maioria dos jornalistas que cobre o confronto Israel-Hamas apresenta as informações e análises a partir de locais que já são a base mais corriqueira do jornalismo internacional: da rua ou dos estúdios das sucursais de grandes veículos com sede em Paris, Londres, Roma, Tóquio, Pequim e Nova York. Uma ou outra exceção, como no caso da cobertura da TV fechada CNN Brasil (gratuita em tempo real no Youtube), com correspondentes dispostos em locais próximos como Jerusalém, Tel Aviv ou cidades da Cisjordânia. Ou ainda, justamente por pertencer a uma estrutura internacional, a emissora brasileira utiliza, com frequência e regularidade, imagens e relatos de repórteres pertencentes à rede CNN americana. 

Perde-se, com isso, o frescor, a dinâmica, a possibilidade de registro e denúncia sobre o que de fato seria possível reportar na combalida e incinerada região, mas também o entendimento da dimensão do acontecimento. Até porque ficar em Gaza, atualmente, é completo risco de vida. Dados do Comitê de Proteção dos Jornalistas, que foram divulgados no último dia 30/10, registraram a morte de 31 profissionais (e de suas famílias em algumas ocasiões) no local. Entre os que perderam a vida estão 26 palestinos, 4 israelenses e 1 libanês.

Algumas agências internacionais, como de costume na indústria do broadcasting, funcionam igualmente para o eixo ocidental como as principais vias de livre e rápida reprodução de conteúdos textuais e imagéticos (a maioria adquiridos através de paywall ou assinatura desses meios profissionais), a exemplo da Reuters, AFP, ENEX, Alianza Latino-Americana, China Media Group, TV Brics, WAM e Deutsche Welle

Em outra via, canais como a TV estatal árabe Al Jazeera, com sede em Doha, no Catar, talvez seja um dos únicos a serem considerados uma fonte respeitada do Oriente Médio para o mercado ocidental de notícias, pois o meio aparece com frequência como narrativa fundadora reproduzida em diversos veículos. Talvez justamente pelo notório reconhecimento de um trabalho que a Al Jazeera Media Network mantém, desde 1996, como uma organização global de notícias, com capilaridade de 80 escritórios em todo o mundo e tradução de seu conteúdo para diversas línguas. 

Outro ponto a se destacar como primazia editorial seria a estratégia mais do que recorrente de contar a “história de interesse humano”, ou o “jornalismo sobre pessoas”, como já evidenciava em suas obras o teórico Luiz Beltrão. É nesse contexto que se inserem as “fontes testemunhais”, ou seja, as que vivem na região e suas expectativas, como um mecanismo de forte apelo emocional e popular para os públicos, imprimindo um alto grau de verossimilhança e, ao mesmo tempo, sensibilidade aos relatos.

Ainda quanto ao tipo de fonte, denota-se a preferência pela de caráter contextualizador, que se enquadraria como aquela que propõe uma análise explicativa do tempo presente. Os veículos não se cansam de trazer para suas produções jornalísticas a modalidade “expert”, ou seja, a fala/ visão científico-acadêmica daqueles que estudam e pensam a geopolítica, as dissensões internacionais, as relações diplomáticas, a história das disputas de território e religiosas especificamente no Oriente Médio. Essas fontes se credenciariam assim, a partir do universo circunstancializador que abarcam, como de alta confiabilidade e produtividade.

Em relação à abordagem dos diversos meios, tanto na TV aberta, que insere em seus telejornais fragmentos narrativos cotidianos sobre o assunto, quanto nas redes de TV All News, comprometidas com a macroexposição cotidiana sobre o tema, prevalecem as linhas temáticas anteriormente apontadas. Rádios do dial comercial também seguem a mesma tendência. Nesse contexto, a sua maior qualidade, que seria a espontaneidade da oralidade, voltada ao uso open source do jornalismo cidadão (aquele em que o ouvinte atua como um meta narrador colaborativo), em função da distância geográfica, se perde, e as narrativas mais convencionais são as mais previstas, no ritmo que seguem os outros meios.

Sites e portais de notícias (e suas respectivas redes sociais) trazem e atualizam, dentro da lógica da estética hipertextual, com destaque o cenário beligerante e seus desdobramentos, sem perder de vista também, no “caber espacial” (expressão cunhada por Christa Berger), os temas nacionais, que por um tempo se ofuscaram, em função do impacto informacional da guerra. 

Resta saber se, após um mês do início dessa tragédia anunciada, os veículos brasileiros manterão o fôlego para acompanhar ostensivamente os desdobramentos do que se iniciou com o ataque voraz do Hamas ao território israelense. A matriz da triangulação, nesse caso, seria registrar o pari-passo e a intensificação do conflito, apontar causalidades e consequências com fontes especializadas e detectar a desumanização desse processo, fruto do massacre e sofrimento inconteste da população na Faixa de Gaza. 

Referências acadêmicas citadas no texto

BERGER, Christa. Do jornalismo: toda notícia que couber, o leitor apreciar e o anunciante aprovar a gente publica. In:  Jornal: da forma ao sentido (orgs. Mourice Mouillaud e Sério Porto). Brasília: UnB, Paralelo 15, p. 273-284, 1997.

BELTRÃO, Luiz. A imprensa informativa: técnica da notícia e da reportagem no jornal diário. São Paulo: Folco Masucci, 1969.

LAGE, Nilson. A reportagem – Teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística,. Rio de Janeiro: Record, 2001. 

PENA, Felipe. Teoria do Jornalismo.São Paulo: Contexto, 2006.

PEREIRA JUNIOR, Luiz Costa. A apuração da notícia. Rio de Janeiro (Petrópolis): Ed. Vozes, 2006.

SCHMITZ, Aldo. Fontes de Notícias: Ações e Estratégias das Fontes no Jornalismo. Florianópolis: Combook, 2011.

SOUSA. Jorge Pedro. Elementos do Jornalismo Impresso. Floranópolis: Ed. Letras Contemporâneas, 2005.  

TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo, porque as notícias são como são. Florianópolis: Insular, 2005. 

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Simone Orlando é jornalista, mestre e doutora em Letras, docente há 23 anos, e professora associada do curso de Jornalismo da UFRRJ