Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

As dores do parto de um novo jornalismo

(Foto: Engin Akyurt por Pixabay)

Nós, jornalistas, estamos enfrentando as dores do parto de uma nova realidade da profissão. São os conflitos, tensões e frustrações resultantes de mudanças traumáticas, principalmente as que afetaram diretamente as bases econômicas do exercício do jornalismo e o seu relacionamento com leitores, ouvintes, telespectadores e usuários de redes sociais. Além disso, os profissionais estão sendo forçados a lidar com as inseguranças geradas pelo fenômeno das fake news, as incertezas da inteligência artificial e o seu novo posicionamento diante da notícia.

Não há mais dúvidas de que o jornalismo deixou de ser um negócio promissor, quando praticado através de empresas centradas no lucro. Houve uma alteração radical na função que a notícia tem na rotina diária da profissão e isto muda tudo na forma como tratamos nossa atividade. É aí que está o nosso principal desafio hoje em dia.

A maioria dos profissionais ainda não se deu conta de que estamos sendo levados a abandonar a cultura e regras do jornalismo industrial para nos adaptarmos à realidade digital e todas as suas consequências. A notícia, a matéria prima central no jornalismo, perdeu quase todo seu valor comercial pelo fato de ter se tornado superabundante em consequência da avalanche informativa gerada pela internet. A desvalorização monetária da notícia inviabiliza o lucrativo modelo de negócios da quase totalidade das empresas jornalísticas, como jornais e revistas.

A crise na imprensa convencional a levou a demitir jornalistas em massa, visando extrair o máximo rendimento possível de estruturas empresariais deficitárias para investir noutros setores mais lucrativos. O emprego fixo tornou-se uma exceção entre os profissionais que estão sendo obrigados a pensar em sua sobrevivência através de projetos na internet.

A certeza de ter um salário fixo mensal está sendo substituída pela insegurança permanente em relação ao rendimento, já que a maioria dos repórteres, editores, fotógrafos, cinegrafistas, editores e programadores passou a depender de projetos sazonais e do magro faturamento de iniciativas pessoais. Em suma, o jornalista está sendo forçado a deixar de ser um assalariado para se tornar um empreendedor, com todas as responsabilidades e riscos decorrentes.

O bunker das redações

Paralelamente, as redações deixaram de ser o bunker no qual surgiu um conjunto de valores que ainda impregnam o exercício da atividade, especialmente no que se refere ao público externo. Valores como a ideia de que os jornalistas sabem o que é bom para o público, o que os coloca numa posição de superioridade em relação a seus leitores, ouvintes, espectadores ou seguidores online.

A nova relação com o público é outra realidade traumática enfrentada pelos jornalistas profissionais e os praticantes de atos jornalísticos, como influenciadores e indivíduos sem formação acadêmica, mas que colhem e disseminam notícias em redes sociais. A internet deu às pessoas a possibilidade de expressar suas opiniões de uma forma muito mais intensa e variada do que na era do jornal impresso.

Jornalistas e executivos se irritaram com a agressividade e ressentimento mostrados por muitos comentários e resolveram fechar a janela de comunicação com o público, num novo ciclo de entrincheiramento nas redações. A reação hostil de muitos comentários e observações é o resultado do longo período em que o público foi mantido à margem das políticas editoriais da imprensa, acumulando ressentimentos que explodiram quando surgiu a interatividade online em tempo real.

Isto acabou gerando, especialmente no início da internet, uma onda de conflitos entre jornalistas e leitores, ouvintes, telespectadores ou internautas. E levou a maioria dos jornais, revistas e sites noticiosos a eliminar a publicação de comentários feitos por internautas. Outros órgãos da imprensa implantaram um sistema de triagem das críticas e observações do público, reproduzindo a prática usada anteriormente das “cartas ao leitor” nos jornais e revistas impressos.

O descompasso entre as redações e o público mostrou a enorme dificuldade dos jornalistas na relação com as pessoas comuns empoderadas pela interatividade digital. Principalmente depois que inúmeras pesquisas acadêmicas mostraram que a sobrevivência financeira do jornalismo digital, autônomo ou empresarial, depende diretamente de uma relação minimamente colaborativa entre profissionais e seu público.

Outro conceito criado dentro das redações é o de que o jornalista é um observador imparcial e isento da realidade que o cerca, o que justificaria a condenação a qualquer atitude participativa de um repórter ou editor na cobertura de eventos sociais ou políticos, por exemplo. A postura da imparcialidade foi a principal responsável pela campanha contra o chamado jornalismo cívico, nos anos 70 e 80, nos Estados Unidos.

O preço do jornalismo líquido

A polêmica preocupação com o “furo” jornalístico (ser o primeiro a noticiar um fato, dado ou evento relevante), também permanece quase intacta no conjunto de valores que resistem à atualização das rotinas profissionais na era digital. A ideia do “furo” se baseia na busca de aumento nas vendas de veículos jornalísticos impressos ou nas audiências de telejornais. Obviamente, a motivação financeira com os “furos” tende a diminuir na internet porque, devido à avalancha informativa nas redes sociais, ficou muito difícil manter sigilo sobre algo inédito. Apesar disto, o hábito de tentar dar uma notícia antes das publicações concorrentes ainda é muito forte no jornalismo.

São estes valores “residuais” do jornalismo convencional que complicam a transição para os novos ecossistemas informativos da sociedade contemporânea. Preocupações novas como a ideia do jornalismo líquido, onde a notícia deixa de seguir uma lógica dicotômica ou como a da curadoria informativa, o trabalho em equipes, a produção colaborativa de textos e audiovisuais, ou ainda a relação com os influenciadores digitais e a inteligência artificial. São temas que mexem com certezas incorporadas ao longo de quase dois séculos na atividade jornalística e que agora estão sendo minadas pelas novas tecnologias digitais.

O professor holandês Mark Deuze, autor do livro Media Work (2007) e que acaba de lançar Life in Media (julho de 2023), pesquisa as transformações culturais no exercício do jornalismo desde a virada do século e afirma que a noção de jornalismo líquido é a que mais perturba e desorienta os profissionais contemporâneos porque os obriga a relativizar o conceito de notícia. Não estamos mais lidando com conceitos de certo ou errado, bom ou mau, bonito ou feio, mas com realidades complexas que obrigam o profissional a pensar e pesquisar antes de publicar algo, porque ele pode ser refutado no minuto seguinte ao da divulgação de sua notícia, reportagem ou pesquisa.

Um profissional enfrenta hoje a complicada transição de uma realidade conhecida e controlada como é a do jornalismo impresso para o novo contexto digital onde as dúvidas são bem mais frequentes que as certezas, as conjunturas mudam a um ritmo frenético e onde surgem novos desafios éticos a todo instante. Não dá para voltar aos velhos e bons tempos da imprensa rendendo lucros quase obscenos. Estamos condenados a enfrentar as incertezas da era digital, assumindo as dores da transição para novos modelos de jornalismo.

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.