Saturday, 14 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O jornalismo na era da complexidade digital

(Imagem de Niek Verlaan por Pixabay)

A polêmica sobre a degradação ambiental no planeta se arrasta há pelo menos uns 50 anos sem que até agora se tenha universalizado a redução das emissões de CO2 por veículos automotores. Todo mundo conhece as consequências, mas os avanços foram milimétricos por uma razão simples: é um problema complexo, onde conceitos como bom ou mau, justo ou injusto e certo ou errado não conseguem dar as respostas e promover as mudanças que desejamos. 

O jornalismo é parte desta frustração porque é através dele que as pessoas recebem os dados, fatos e eventos que influem na forma como vemos o mundo em que vivemos. E o jornalismo, não importa em qual país, ainda está profundamente contaminado por uma abordagem da realidade baseada numa visão dicotômica, ou seja, que uma notícia tem, basicamente, dois lados. Quase todos os manuais de redação existentes atualmente preconizam a consulta aos dois lados de uma questão na hora de produzir uma reportagem jornalística. 

Só que temas como a questão ambiental se apresentam cada vez mais como complexos, ou seja, com mais de um lado e todos os lados se influenciando mutuamente. A avalanche informativa na internet está generalizando a complexidade noticiosa ao disponibilizar inúmeras versões e interpretações diferentes sobre um mesmo dado, fato ou evento. Estamos mergulhados num ambiente de superoferta de informações onde conceitos dicotômicos já não conseguem dar as respostas desejadas. 

Um exemplo mais recente é a polêmica sobre a regulamentação das plataformas digitais que abrigam redes sociais, o Projeto de Lei 2630. Num mesmo texto, pretende-se buscar soluções para as notícias falsas, para a concentração de poder econômico e político nas mãos de poucas empresas de alta tecnologia, para a sobrevivência da imprensa tradicional, para a remuneração dos jornalistas e de quem vai fiscalizar a regulamentação do funcionamento de conglomerados que controlam Facebook, Youtube, Twitter, Instagram, Telegram e Whatsapp, só para citar os veículos online mais conhecidos.

O grande dilema do jornalismo nos próximos anos será buscar uma maneira complexa de abordar questões controvertidas. Por enquanto, a única coisa que se sabe é que a técnica de ouvir os dois lados não funciona mais. Não funciona, porque não consegue mais dar a real dimensão e consequências do tema de uma reportagem, como por exemplo o desmatamento amazônico, assim como contribui para lamentáveis desdobramentos maniqueístas como aconteceu durante a cobertura da Lava Jato em que os telejornais dedicavam fartos minutos para denunciar supostas práticas de corrupção e escassos segundos para divulgar burocraticamente uma nota da parte acusada. 

O fim de um dogma jornalístico

A imprensa, em quase todo mundo, está acostumada há décadas, a abordar a maioria das notícias como um conflito entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, onde um ganha e outro perde. Nas campanhas eleitorais, predomina o espírito da corrida de cavalos, pois a grande preocupação é quem está na frente nas pesquisas. Os temas envolvidos na disputa por votos ficam em segundo plano. Tenta-se aprisionar a realidade na camisa de força da visão dicotômica correndo o risco de comprometer a confiabilidade, exatidão, relevância e pertinência de uma notícia. 

A imprensa sempre se colocou na posição de quem precisa estar do lado certo para poder orientar o público na direção correta. A preocupação é louvável, mas a realidade é outra. Ela precisa também abandonar o dogma informal de que ela tem as respostas que as pessoas procuram. Não tem mais, porque a compreensão da realidade não depende mais de poucas pessoas geniais ou de poucas empresas oniscientes, mas de coletivos sociais, em que os diferentes projetos jornalísticos são parte integrante.  

Assim, as coberturas jornalísticas na era da complexidade informativa não têm mais como fugir do fato de que a diversificação na publicação de diferentes percepções passa a ser a prioridade absoluta no cotidiano dos jornalistas. A preocupação não é mais entregar um produto pronto e acabado para que as pessoas incorporem a receita jornalística à suas visões de mundo. 

Trata-se de uma mudança que vai exigir uma profunda mudança de hábitos, regras e valores tanto do jornalismo, como das empresas de comunicação e do público consumidor de notícias. Temos informação demais, logo é impossível saber tudo. Se não sabemos tudo, precisaremos da ajuda de quem sabe o que desconhecemos se estivermos empenhados em resolver um problema complicado. 

Um dos desafios mais importantes na abordagem complexa dos itens inseridos na agenda pública de debates é a necessidade de o jornalismo identificar detalhadamente a diversidade de interesses e motivações ocultos nos dados, fatos e eventos publicados. Esta preocupação já existe hoje nos manuais de redação, mas a prática usual de repórteres e editores não consegue mais dar conta da diversidade e complexidade das notícias, diante das pressões por imediatismo e ineditismo.

Nestas circunstâncias, o individualismo passa a ser contraproducente, criando a necessidade do trabalho coletivo e integrado no exercício do jornalismo. Outro desdobramento da abordagem complexa das notícias é a incorporação do público como parte integrante do processo de produção de informações. Na era da comunicação baseada em notícias (ver detalhes aqui) qualquer pessoa com acesso a um blog, rede social ou seguidor de algum influenciador tem, potencialmente, acesso ao espaço público de debates, contribuindo para complicar a já difícil tarefa jornalística de ver o mundo como algo que não se limita à regra dos dois lados.

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Carlos Castilho é é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.