Monday, 14 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Era do rádio: o rádio já era?

Informou o portal Comunique-se (www.comunique-se.com.br), em 30/6:

Rádio Nacional é revitalizada no Rio

Depois de passar por um grande processo de revitalização, a histórica Rádio Nacional do Rio de Janeiro voltará a funcionar na próxima sexta-feira (02/07). A cerimônia de entrega da rádio, que teve seu alcance ampliado para um raio de 100 km, contará com a presença do presidente Lula. A programação prevê a entrega das obras de recuperação do estúdio Victor Costa (Rádio Teatro), e dos estúdios Paulo Tapajós (gravação), Mário Lago (Principal) e do auditório Radamés Gnatalli. O auditório teve o antigo mezzanino, antes encoberto por obras, e o vidro original que separa a orquestra do público, totalmente restaurados.

Pois é. Está voltando um Brasil que estava posto de lado: o Brasil do rádio. Uma caixa-preta, semelhante à dos aviões – que, aliás, é amarela –, substituiu um dia o receptor de falas e músicas. Seu nome era televisão. Apesar de ser oferecida em caixas de várias cores, a televisão é ainda uma caixa-preta.

Sua implantação e seu instantâneo e assombroso êxito ainda estão por ser esclarecidos. Apesar de livros muito bem escritos e muito pertinentes sobre o tema, há muito o que escrever acerca dos mistérios que cercam os primeiros tempos da televisão no Brasil.

No começo, à semelhança do rádio, que era conhecido também como rádio-vizinho, foi chamada de televizinho. O diminutivo não pegou, e a televisão não trocou de gênero porque a indústria, inundando os lares com o novo caixão, isolou a família em seus lares-mônadas.

Diante da televisão acaba-se a prosa. Se alguém fala, há quem o mande calar a boca para não atrapalhar. Não o que é ouvido, mas o que é visto. A fala atrapalha a imagem? Atrapalha. Por quê? Porque sem a fala, a imagem não é entendida, ou é entendida insuficientemente. Os únicos profissionais que ainda não entenderam esta verdade fatal são os narradores de futebol, que transmitem jogos televisionados mais ou menos assim: ‘Bola com o camisa 9’.

Isto mesmo. A bola está com o camisa 9. Se você não sabe o nome dele, saiba que o locutor esportivo não o informará. Se informar, por exemplo, quem está com a bola, é bem provável que pronuncie errado o nome, no caso de o distinto ser estrangeiro. Durante duas décadas – duas décadas! – vários deles escalaram a seleção alemã com um certo ‘Mataus’ no meio-de-campo! O nome dele era Mateus. Por que o simples se o complicado também serve? Aliás, o provérbio é alemão: Warum denn Einfach, wenn’s Kompliziert geht?

Controle do governo

O rádio inventou modas, tornou o Brasil nacional, serviu à ditadura de Getúlio Vargas, modernizou nosso país, elegeu reis e rainhas, criou ídolos, popularizou o futebol etc. Aliás, popularizou tudo. O rádio, como aquele candidato que você agora vê na TV, tem cara de quem já fez de tudo. Surgido na década de 1920, junto com o Modernismo, que desprezou o popular e partiu para o elitista em nossas letras, abominando escritores que tinham leitores e consagrando quem não os tinha, o rádio triunfou porque a massa não podia ainda degustar os finos biscoitos fabricados por Oswald de Andrade. O analfabetismo grassava nos campos e nas cidades do Brasil. Naturalmente, os maiores índices estavam nos campos.

O rádio foi a modernidade que mais rapidamente chegou ao Brasil. A primeira emissora de rádio, a KDKA, surgiu nos EUA, em 1920. Em 1922, o Brasil igualava-se a nações como a França e a Inglaterra, que naquele ano inauguravam suas primeiras emissoras. Como os irmãos do Norte não exigem tantos papéis como por aqui para você abrir um negócio, em 1924 os EUA já tinham 530 emissoras. O rádio precedeu a televisão na tarefa de fazer do mundo uma aldeia global. O historiador Eric Hobsbawm, em seus escritos sobre o século 20, diz que o rádio foi instrumento poderoso de integração entre os indivíduos.

O presidente Epitácio Pessoa estava presente às comemorações do centenário de nossa independência política, em 1922, quando o rádio foi apresentado ao Brasil, na célebre Exposição Nacional, no Rio, onde, no dizer de Lia Calabre (A Era do Rádio, Jorge Zahar Editor, 2002), ‘o país desejava mostrar-se próspero, saudável, desenvolvido, e, acima de tudo, moderno. Assim sendo, não poderia haver momento mais propício para apresentar à sociedade brasileira uma das mais recentes novidades tecnológicas que encantava o mundo: o rádio!’

Os nomes das primeiras rádios dizem muito. Eram associações de amigos, mantidas por determinadas quantias mensais, recolhidas entre os associados. A retribuição vinha no ar, em forma de agradecimentos singelos, mas abria uma porta que depois se escancarou e deixou a ditadura preocupada. E veio então o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) de Getúlio Vargas, mas daí já estávamos em outra década, ainda que o decreto 16.657, de 15 de novembro de 1924 (olhemos a data!) decretasse que o governo reservava para si o direito de permitir a difusão de anúncios e reclames comerciais.

Eleitor de cabresto

Roquette Pinto e Henrique Morize fundaram a primeira emissora brasileira. Foi a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. Seguiram-se emissoras que marcaram para sempre a vida nacional, entre as quais a Mayrink Veiga, a Tupi, a Tamoio, a Clube de Pernambuco, a Jornal do Comércio (de Recife), a Farroupilha e a Gaúcha (de Porto Alegre), a Inconfidência (de Belo Horizonte). Nenhuma delas, porém, marcou a alma brasileira como a Rádio Nacional.

O rádio triunfou no Brasil porque a instalação de alto-falantes supriu a falta de aparelhos. São Paulo levou sete anos (1929) para ter 60.000 rádios. Nas décadas seguintes, quase todos os lares tinham rádios. E depois, mais do que um em cada domicílio, como hoje ocorre com a televisão, espalhada por salas e quartos de muitas casas.

O rádio moldou a televisão. Narrações esportivas, anúncios publicitários e comunicados oficiais de autoridades ainda estão muito presos ao rádio. O gênero que se descolou rapidamente foi a telenovela. No começo, a rádio-novela O Direito de Nascer, que prendera todos ao redor do rádio, ainda influenciou a telenovela. Mas por pouco tempo. Traduzido em imagens, O Direito de Nascer não demorou a mostrar que rádio era uma coisa; televisão, outra.

O presidente Lula quer revitalizar a Rádio Nacional. Faz muito bem. No Brasil, quando chega o novo, sepultamos o velho. Sigamos o modelo europeu, onde o velho e o novo convivem em paz. O único perigo é o de sempre: a tentação de controlar o que apóia. Mas a democracia brasileira está suficientemente amadurecida, os tempos são outros e o comissariado do governo, mesmo querendo isso, não haverá de conseguir.

Como estamos fracassando no projeto de fazer o Brasil inteiro ler, que ele seja convidado também a ouvir – e não apenas a ver, como ocorre atualmente. E, enquanto isso, alfabetizemos o povo. Neste caso, o novo, a alfabetização, precisa substituir o velho, o tempo em que o Brasil apenas ouvia, nada via, não lia e não escrevia.

Ou, no resumo de um diálogo ocorrido entre um coronel e um eleitor de cabresto que, diante do voto lacrado que recebera das mãos do patrão, quis saber em quem estava votando. E ouviu a resposta: ‘Não pode, não! Você não sabe que o voto é secreto?’