Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um novo Foucault: sobre a publicação de “As confissões da carne”

Desde o começo do mês de março, resenhas saúdam na imprensa o lançamento do que viria a ser, em seu projeto inicial, o quarto volume de “História da sexualidade”, de Michel Foucault. O curioso é que um tema desagradavelmente necessário costuma passar ao largo da discussão: a pertinência da publicação da obra. Mesmo quando anunciada, a questão é rapidamente superada por argumentos um tanto quanto exóticos.

Dizem que o texto do livro estava quase terminado, em fase final de revisão. Ora, o texto encontra-se há 34 anos no mesmo estágio, ou seja, inacabado, em sua condição imutável de póstumo. Por que editar um livro somente 34 anos depois, se o texto estava estabilizado por força da morte de seu autor, se a proximidade com os três volumes anteriores tornava a sua leitura mais adequada na década em que foi escrito? Por que editá-lo agora? Por que esta pergunta não é sequer posta na maioria dos textos?

A inquietação aumenta quando se sabe que Foucault manifestou expressamente em testamento o desejo de não publicar qualquer manuscrito postumamente. Pode-se dizer que a obra de um autor transcende seu interesse pessoal e que sua vontade é pouco relevante em relação ao interesse coletivo por um estudo efetivamente realizado.

Contudo, deve-se lembrar do cuidado com que Foucault lidava com seus textos, entrevistas ou artigos, sempre exigindo uma revisão final antes de qualquer publicação (um exemplo é a contrariedade quanto à publicação de sua resposta a Sartre, sem a devida revisão). Poucos filósofos escreveram com tanta clareza quanto Foucault, efeito direto de uma preocupação exacerbada com o que escrevia, com o que dizia.

É preciso lembrar que um texto não estabilizado por seu autor, enfim, não entregue para publicação, não passa de uma promessa, de uma etapa sempre suscetível às mudanças capitais. Como esquecer, por exemplo, o depoimento de Gerard Lebrun, que recebeu de Foucault, seu antigo professor, em 1965, os manuscritos de “As palavras e as coisas”, e sua surpresa, poucos meses depois, no lançamento, com a inclusão transformadora do capítulo inicial sobre “Las Meninas” e a retirada de várias notas sobre Sartre? Como também ignorar as duas versões de “O que é o iluminismo?”, uma voltada ao público americano, outra visando a plateia francesa? Um manuscrito, em sua condição irrevogável de potencialidade, de estudo em curso, poderia, por si só, indicar esta modulação tão fecundo sobre o texto de Kant?

Assim, ignorar a discussão quanto à pertinência da publicação do texto, sem a autorização do autor, com o argumento de que estava quase pronto ou que este trabalho já era lido por pesquisadores é uma falácia, é deliberadamente ignorar questões fundamentais sobre a exposição do pensamento, sobre o trato com a linguagem, sobre a constituição de uma obra.

Junto a esse silêncio, há uma genuína excitação com a possibilidade de ler um novo Foucault depois de sua morte, de se ler de novo Foucault, de se obter uma resposta póstuma a um problema atual, como, em vida, foi possível ter sua intervenção em relação à loucura, às prisões, ao Irã, à psicanálise, etc. Temos a impressão que Foucault nos dirá algo novo, algo que já havia sido descoberto por ele há 34 anos e que só agora nos é acessível. Um equívoco. Não que seu pensamento seja coisa do passado, que suas reflexões estejam proscritas ou que sua temática tenha sido superada. Longe disso. Sua filosofia continua sendo extraordinariamente desconcertante. Como certa vez expressou Paul Veyne, sobre “As palavras e as coisas”, o extraordinário não é a estranheza que o livro causou em 1966, mas sim, tantas décadas depois, ele continuar tão incômodo e tão incompreendido. Sob o risco inerente às generalizações, suas obras carregam ainda essa marca: tomar a “História da loucura” como uma ode à anti-psiquiatria é reduzir a complexidade das questões levantadas pela obra; entender a “História da sexualidade” como defesa de um retorno do cuidado de si grego é desconhecer todo um trabalho de fundo dos processos de subjetivação exposto no livro. E assim por diante.

Há um ponto central no pensamento foucaultiano que, de tão incômodo à nossa tradição metafísica, parece não ter sido suficientemente aceito, nem, em alguns casos, entre os que se dedicam a sua obra: não há origem, a não ser na forma paradoxal da diferença, da mesma forma que não há telos, e mesmo assim – ousaria dizer, por isso mesmo – há ordem! Questão esta levantada em seu antigo livro sobre o surgimento das ciências humanas que sequer foi devidamente digerida.

Repercussões do equívoco são, entre outras, a insistência em encontrar um ponto de partida privilegiado no qual nossa atualidade se organizaria inteiramente. Nem mesmo a sexualidade, sob o ponto de vista foucaultiano, é capaz de tal feito. Por outro lado, mas ainda reflexo desta mesma incompreensão, é a incapacidade de captar a verdade como produção e a consequente acusação a Foucault de ignorar a lógica e a realidade. Bouveresse recentemente dedicou um livro a esta tese, atacando Foucault em seu “Nietzsche contre Foucault”. O solo teórico foucaultiano apoia-se na percepção de que nada é estável, mas que a precariedade das configurações existentes não impede a efetividade das forças. O que nos resta deste cenário é o perigo, é o risco da ignorância dos sistemas de forças que atuam sobre o controle dos corpos, sobre a definição de loucura, etc. Nada mais estranho à nossa época. O pensamento foucaultiano é extraordinariamente extemporâneo. E nisso reside sua potência.

Se a força advém de sua inadequação à lógica dominante, se sua filosofia parece desestabilizar as nossas convicções e crenças, sem mesmo oferecer uma saída ou promessa de melhora – Foucault não aponta para nada, nem mesmo é capaz de falar de um futuro – por que ansiamos tanto por uma “novidade” foucaultiana? Se seu pensamento é ainda tão pouco assimilado em nossa cultura, porque querer “mais Foucault”, porque “mais um Foucault”? É preciso reconhecer que a recepção ao lançamento do livro nada tem a ver com a urgência de sua reflexão. A publicação de “As confissões da carne” se inscreve, em verdade, em uma lógica capitalista, que transforma o manuscrito do filósofo que não desejava a sua publicação em uma “novidade” mercadológica.

Afinal, se objetivo fosse a simples difusão do estudo realizado por Foucault, por que lançá-lo pela Gallimard, e não disponibilizá-lo na internet? Cumpre-se a terrível sina de nosso tempo: tudo se converte em “produto”. Consequência daquilo que Hannah Arendt definiu como “a ilusão emergente do pathos do novo”, que faz com que tudo seja captado, a despeito de sua explícita contrariedade com o modus operandi, como mais um produto a ser consumido.

Desta feita, desde de fevereiro, é possível comprar nas livrarias um novo Foucault, da mesma forma que se pode adquirir um novo Dan Brown. Isso tudo sem a anuência de seu autor, morto em 1984, apesar da reconfortante autorização de seus herdeiros para tanto. E assim corrermos o risco de calar um texto. Ao invés de se enfrentar o jogo proposto pelo estudo, de suportar e refletir a desestabilização da normalidade que um trabalho como de Foucault provoca, silencia-se sua estrutura própria.

Enfim, é mais um livro, mais um produto, mais uma possibilidade de divertissement, para os intelectuais ou para leitores mais eruditos. A novidade que poderia florescer do trabalho e fornecer novos elementos para a compreensão de nossa situação é obscurecida por conveniências previamente elaboradas pelo mercado, sejam elas uma crise política datada ou uma discussão em voga sobre o problema de gênero. O texto se cala e perdemos a oportunidade de retomar, por exemplo, a discussão da política ou do problema de gênero, com novos elementos oriundos deste trabalho. É aquilo que o próprio Foucault designou de a “nossa prática milenar do Mesmo e do Outro”, que conduz todas as diferenças à unidade de um emplastro disforme.

A novidade é convertida em um retorno da novidade, ou seja, no retorno do mesmo. Lógico, coerente, razoável. Graças a esta conversão, pode-se explicar tudo hoje em dia. Basta chamar um especialista que ele nos demonstrará a razão de ser de cada dilema contemporâneo e indicará o sentido de cada angústia vivida. Uma distância inacreditável do “intelectual específico”, apontado por Foucault como o caminho possível nos tempos atuais, em oposição à sanha característica do intelectual clássico, aquele que orbita em torno do universal, signo e reflexo de toda a tradição metafísica ocidental.

Triste ver um Foucault prestar-se a este exercício cego de compreensão, prática que o autor tanto ridicularizou em vida. Assim, passadas poucas semanas de seu lançamento e a despeito de sua complexidade, qualquer leitor já é capaz de saber da “novidade” trazida por “As confissões da carne”. Basta ler os inúmeros artigos sobre o tema. E que venha mais um novo Foucault rapidamente. Quem sabe sejamos protegidos da terrível prática da demora na leitura, da reflexão aparentemente improdutiva do pensamento, da angústia insuportável em nosso tempo de não saber o que fazer e da interdição do prazer imediato. É o self service intelectual, novidade da contemporaneidade. Rascunham-se resenhas da mesma forma que se colore um livro: modas dos dias atuais.

Mas, mesmo mal compreendido, Foucault subverte a manipulação que lhe é imposta, e, ainda assim, é capaz de diagnosticar o presente, de explicitar os jogos de força, de deflagrar os perigos que rondam o nosso tempo. Até porque, a própria recepção de sua publicação expressa, através deste anseio pela “novidade” sem mesmo depreender linhas gerais de suas obras anteriores, a condição miserável em que nos encontramos: essa em que se reduz tudo, mesmo o pensamento, a divertimento. Esta é a evidente força presente no trabalho foucaultiano. É a esperança que nasce de um riso nervoso, tal aquele dado por Foucault, ao perceber, na explicitação da ordem heterotópica que povoa toda a nossa cultura, o desconcertante arranjo proposto por Borges em sua “enciclopédia chinesa”. Pois a efetividade das coisas, mesmo perigosa em sua visibilidade ignorada, ensina Foucault, é, por definição, precária.

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Por Marcelo S. Norberto é professor do Departamento de Filosofia (PUC-Rio).