Saturday, 05 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Incêndio em lixão é noticiado depois de três dias

Um incêndio no lixão da Cidade Estrutural, em Brasília, que é o maior da América Latina e fica a cerca de 20 km do centro do poder, seria motivação, obviamente, para uma grande reportagem, com investimento e atenção de duas ou mais equipes de cobertura. Equipes de plantão estariam ligadas na possibilidade de vítimas, ações do poder público, comprometimento da saúde das pessoas e impactos ao meio ambiente. Mas não foi assim. Em Brasília, os veículos locais demoraram três dias para trazer o assunto à tona, que só se transformou em manchete no dia 3 de agosto (uma segunda-feira). “Incêndio na estrutural já dura três dias”, admitiu o G1 local; “Incêndio no lixão da Estrutural atinge 10 mil metros quadrados”, manchetou no mesmo dia o Correio Braziliense.

Só que, durante o final de semana inteiro, fez-se o silêncio e seria surpresa para quem mora no Plano Piloto da capital não fossem as reclamações dos motoristas que passam por vias próximas. Mas nada sensibilizou as equipes de plantão em Brasília. Foram aproximadamente 35.800 moradores (com renda per capita de R$ 378) em contato com fumaça tóxica durante pelo menos 72h. Nada foi noticiado nesse tempo. Mesmo após os veículos impressos e eletrônicos apresentarem o problema, foi feita uma cobertura superficial nos maiores portais online da cidade. Como olhavam de longe, não houve exatidão nem mesmo sobre o início do problema. Tem gente morta? Não tinha. Então, deixa para depois.

Critérios de noticiabilidade foram desprezados. Proximidade, imediatismo, intensidade e identificação social foram ignorados por três dias. A falta de atenção seria a mesma se ocorresse em uma área nobre? Claro que não. No mesmo período, outros dois incêndios em regiões mais próximas ao centro da capital foram publicados poucas horas depois. Não se tratou apenas de uma simples queima de lixo, são 10 mil m² de chamas subterrâneas causadas por combustão, mistura da baixa umidade e alta temperatura na época de seca no Distrito Federal. Na Cidade Estrutural moram 800 mil catadores que vieram de diversas partes do país. Lá, eles encontram o sustento e o que comer no dia e na semana. O alimento deles foi o resto dos outros. Lá, adultos e crianças têm contato direto com bichos em estado de decomposição, resíduo hospitalar, alimento podre e sem nenhuma proteção.

Miséria na manchete

O que é notícia? No livro Estrutura da Notícia, Nilson Lage define como o relato de uma série de fatos a partir do fato mais importante ou interessante; e indica que não se trata exatamente de narrar os acontecimentos, mas de expô-los. No caso, trata-se de uma questão bastante complexa que não está restrita a uma ou outra cidade. Ambientalistas defendem que seja implementada de forma urgente a política de aterros sanitários. Mas o que se tem hoje não tem outro nome: lixão. Nesse lugar, não há consumidores vorazes de notícia, muito menos das empresas varejistas. Trata-se de um mundo muito longe dos duelos novelísticos entre Dilma e Eduardo Cunha. Enquanto isso, o lixão pega fogo.

Para a mídia, esse tipo de conteúdo não foi privilegiado também por diferentes motivos. Com a crise econômica e redações cada vez mais enxutas, o incêndio na favela não estava no topo da lista. Seria, nesse cenário, necessário dar voz para quem não tem voz nunca. Nesses mesmos dias em que pegava fogo o lixão, as repercussões da Lava Jato, a alta do dólar e os xingamentos de Collor ganharam manchetes.

Todos os estados brasileiros têm até 2021 para desativar todos os lixões segundo a lei federal de resíduos sólidos. O que será desses catadores? São aproximadamente seis anos para eles encontrarem um novo rumo, quem sabe escrever uma nova história. Enquanto isso, esses lugares vão continuar pegando fogo de outras formas e a ser desprezados pela mídia. Vai morrer gente atropelado pelo caminhão, crianças deixarão a escola para esperar o lixo novo, adultos contarão o número de doentes em casa e os hospitais abrirão contagem para o fim. Na Estrutural não houve panelaço durante programa político. E também por isso não estão na agenda de preocupação dos editores e raramente podem estar em manchetes.

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Julia Campos e Nabil Sami são estudantes de Jornalismo