Thursday, 09 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Marcelo Beraba

‘A ação do Exército na cidade do Rio ao longo da semana para recuperar dez fuzis e uma pistola roubados de um quartel exigiu da imprensa brasileira uma cobertura para a qual ela não está preparada.

O noticiário demonstrou que, tal como os governos e a parte da sociedade que se considera bem informada, a imprensa não sabe como lidar com duas realidades que nos desafiam diariamente: a falta de política de segurança pública e o crescimento das nossas favelas. E esses não são problemas exclusivamente do Rio, mas de grandes cidades brasileiras, como São Paulo e Belo Horizonte, e de cidades médias do interior paulista. Não há clareza em relação à política de segurança e não há clareza em relação ao que fazer com cidades que explodem de gente e de problemas.

O tratamento corriqueiro, e isso emerge em todos os jornais e nos noticiários televisivos, associa favela à criminalidade. Favela e crime são sinônimos. Assim sendo, é normal que elas sejam ocupadas militarmente e que seus moradores sejam tratados como criminosos.

Como não há política de segurança pública, como não há trabalho de inteligência policial, como não há política para integração das favelas, como não há política de fato de inclusão dos moradores das periferias, como o fosso entre os dois mundos está cada vez maior e sem perspectiva de encolher, o único caminho possível é a ação militar.

Segundo ‘O Estado de S. Paulo’ de sexta-feira, o Exército tem neste momento dois gabinetes de guerra, um para o Haiti e outro para as favelas do Rio.

Dois colunistas da Folha têm estado atentos para as tragédias de nossas cidades, Janio de Freitas e Demétrio Magnoli. No artigo ‘Terra estrangeira’, de quinta-feira, Magnoli aborda um aspecto da ocupação do Rio que os jornais negligenciam: ‘Criminosos roubaram dez fuzis e uma pistola num estabelecimento do Exército no bairro de São Cristóvão, no dia 3. Na manhã seguinte, o governo federal reagiu cancelando a cidadania da população de dez favelas do Rio’.

Não é um problema só de fonte de informação. É um problema de compreensão, de ponto-de-vista, de linha editorial. Os jornais franceses viveram um questionamento semelhante em novembro do ano passado, quando despertaram tarde, e com uma visão equivocada, para o que estava ocorrendo na periferia de Paris. No caso francês, o caminho mais fácil foi rotular os distúrbios que se alastraram pelas cidades como uma rebelião islâmica, e não como um problema social gerado pela exclusão dos imigrantes e de seus filhos.

Os jornais não parecem preparados para questionar, com fatos e análises, a dura realidade que está diante de nós: o caminho mais fácil é o da criminalização.

A cobertura da Folha foi a melhor entre os grandes jornais, na minha opinião. Não porque tenha tido mais fontes e informações ou porque tenha estado mais presente nos fronts demarcados pelo Exército, mas porque conscientemente foi melhorando com o correr dos dias e se dispôs a discutir a complexidade dos fatos ouvindo especialistas em várias áreas. Listo alguns problemas na cobertura dos jornais:

1 – Dificuldade para obter informações dentro do Exército. Para a socióloga Silvia Ramos, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, os objetivos da ação militar não estão claros. Não está claro se é uma ação tática, para recuperar as armas surrupiadas, ou estratégica, no sentido de inaugurar uma nova forma de intervenção na área de segurança pública. As duas possibilidades foram aventadas, mas pode ser que não seja nada disso. Não sabemos. Nesse sentido, a Folha agiu bem na edição de sexta-feira ao cobrar transparência do Exército e ao questionar os procedimentos legais em curso (‘Especialista compara ação a estado de sítio’).

2 – Dificuldade de se ouvir os moradores das favelas. Desde a morte do repórter Tim Lopes, em 2002, a presença da imprensa nessas comunidades é ameaçada pelos traficantes. Os moradores têm medo de falar ou, quando têm ligação com o tráfico, tentam manipular os repórteres. Com isso, o noticiário tende a se basear apenas nas fontes policiais e militares e a retratar com mais ênfase os problemas que afetam os bairros de classes média e alta. Foi visível o esforço da reportagem da Folha no sentido de superar estes obstáculos.

3 – Falta de rigor na avaliação dos resultados da operação do Exército. Na segunda-feira, quando os militares completavam o terceiro dia de ocupação de seis favelas, a Folha publicou uma reportagem que garantia que ‘Cerco do Exército reduz roubo de carros’. As fontes eram policiais de plantão nas delegacias. Na sexta-feira, foi a vez de ‘O Estado de S. Paulo’: ‘Exército faz tráfico perder até 70%’. As fontes também são policiais. Nenhum dos dois jornais trabalhou com informações documentadas, mas com avaliações que podem ser classificadas de chutes.

4 – Pouca discussão. A ação do Exército é um excelente pretexto para ampliar o debate sobre estes dois temas cabeludos: política de segurança pública e política urbana. Os jornais são o meio adequado para a discussão através de textos analíticos e de reportagens. A proximidade das eleições para presidente da República e governadores aumenta a sua responsabilidade.’

***

‘O escárnio obsceno’, copyright Folha de S. Paulo, 12/3/06.

‘A Primeira Página da Folha de quinta-feira mostrou dois rapazes de Manguinhos, favela do Rio ocupada pelo Exército, fazendo gestos obscenos atrás de dois soldados. O flagrante foi feito pelo fotógrafo Vanderlei Almeida e distribuído pela France Presse.

Achei a foto um pouco forte, embora jornalisticamente defensável. Escrevi na Crítica Interna: ‘Mesmo que o objetivo da Folha tenha sido o de mostrar o escárnio com que as tropas do Exército estão sendo recebidas nas favelas cariocas, a foto escolhida para ilustrar a Primeira Página não precisava ser tão grosseira’. Achava que o jornal poderia ter pinçado outra imagem que mostrasse o mesmo menosprezo sem a grosseria do gesto do primeiro rapaz. Pelo meu tempo de ombudsman, imaginei que choveriam mensagens de protesto: elas ocorrem sempre que o jornal publica uma foto chocante. Não foi o que ocorreu. Recebi só duas mensagens por e-mail e um telefonema contra a publicação da foto:

‘Fiquei absolutamente indignado com a decisão da Folha. Muito provavelmente, como se costuma dizer, ‘os garotos podem se considerar mortos’. E não vale a argumentação que a tarja nos olhos os protege. Seria uma falácia. Acrescenta o quê uma foto dessa escancarada na Primeira Página? De minha parte, obsceno por obsceno, obscena é a decisão da Folha nessa publicação.’ (Edo Cerri)

‘A foto da Primeira Página é deprimente e sinto vergonha, pois ela vai rodar o mundo expondo o nível de respeito e educação de nossos adolescentes. Não sei se o repórter-fotográfico ou o jornal pensou ou pensa na repercussão que essa foto trará ao Brasil. Não sei se estou certo, mas é lastimável.’ (Eduardo Oliveira Troeira)

Por telefone, Marco Antônio Eid registrou a sua ‘indignação’. Ele gostaria de entender os motivos que levaram a Folha a publicar foto tão ‘indecente’, ‘grosseira’ e ‘desnecessária’.

O ‘Painel do Leitor’ recebeu dez mensagens: oito com avaliações favoráveis à publicação e apenas duas contrárias. Tendo a achar, portanto, que a foto, diferentemente do que eu imaginava, foi bem aceita pelos leitores. O que dá razão ao editor de Fotografia, Toni Pires: ‘A maioria das fotos feitas até agora mostra soldados em poses de cartões-postais, apontando armas para o nada ou fazendo revistas. Essa, não. Ao retratar moradores de uma favela do Rio ocupada pelo Exército fazendo gestos obscenos para soldados, a imagem deixa de ser apenas uma ilustração e se torna uma reportagem visual: revela o sarcasmo e a incredulidade com que parte da população enxerga a operação militar na cidade’.’