Thursday, 09 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Meio século de independência

(Tradução livre e condensada do editorial de Ignacio Ramonet, diretor-presidente de Le Monde Diplomatique, para Manière de Voir, publicação trimestral de caráter temático que reúne textos já publicados no Monde Diplomatique em edições anteriores e, eventualmente, novas contribuições de autores ou personalidades conhecidas. Sua última edição é um especial comemorativo dos 50 anos do Diplo.)

No 50º aniversário do Monde Diplomatique, cabe uma reflexão sobre as circunstâncias que levaram Hubert Beuve-Méry a fundar o jornal.

Nascido em 1902, Beuve-Méry encontrava-se em Praga em 1926, onde lecionava no Instituto Francês. Tornou-se correspondente do jornal Le Temps de Paris. Fundado em 1861 por Auguste Nefftzer, esse jornal perdera sua independência havia muito tempo e suspeitava-se que recebia verbas secretas do governo com o objetivo de refletir as opiniões do Ministério das Relações Exteriores francês. Em setembro de 1938, quando o jornal apoiou os acordos de Munique, Beuve-Méry não teve dúvidas e pediu as contas.

Em 1944, com o fim da guerra, o general De Gaulle manifestou a vontade de ver nascer um jornal diário de qualidade, que expressasse a riqueza e a influência da cultura e da política francesas. Contatado para empreender essa tarefa, Beuve-Méry foi reticente, mas acabou aceitando. Le Monde nasceu no dia 11 de dezembro de 1944 e Beuve-Méry o conduziu, desde o início, com uma independência radical. Em poucos anos, se tornaria praticamente uma instituição, leitura obrigatória de intelectuais, políticos e empresários no mundo de língua francesa. ‘O que talvez tenha levado Le Temps à perdição foi ter dinheiro demais’, dizia Beuve-Méry. ‘No caso do Monde, uma das principais razões para sua força, foi não o ter.’

No plano da geopolítica, as posições do jornal refletiam as de seu diretor (sintomaticamente, Hubert Beuve-Méry assinava sua coluna com o pseudônimo Sirius, sugerindo o distanciamento na análise dos fatos): uma conscientização tardia da necessidade de negociar a independência das colônias e o culto da francofonia erigido num espaço ‘neutro’, tanto em relação ao bloco americano quanto ao bloco soviético.

Hubert Beuve-Méry sempre defendeu a tese de um jornal ‘enxuto’. Dizia que a redação não cumpriria seu objetivo se o leitor não o lesse da primeira à última página… Por isso, e para publicar exclusivamente o essencial, o número de páginas devia ser limitado. Ocorre, no entanto, que o início da década de 1950 assinalou o boom da comunicação e, para mencionar apenas as exigências suscitadas pelo noticiário internacional – a discussão da criação das Nações Unidas, a vitória de Mao Zedong na China, a guerra da Coréia, o processo e a execução de Julius e Ethel Rosenberg nos Estados Unidos, a morte de Stalin, a guerra da Indochina, a insurreição em Berlim Oriental, a invasão da Hungria etc. –, a criação de novas editorias passou a ocupar um número cada vez maior de páginas do jornal.

Redação autônoma

Para dar ao noticiário internacional o destaque devido, Hubert Beuve-Méry sonhava com um projeto que lhe fora proposto algum tempo antes por um amigo e jornalista húngaro, François Honti, que se encontrava exilado em Paris. Ele sugerira a Beuve-Méry – de quem conhecia a paixão pelos assuntos da geopolítica – que criasse um jornal mensal inteiramente voltado para a política externa. Constituído por uma redação mínima – além do editor, Honti, apenas uma redatora, Micheline Paunet –, esse novo jornal se alimentaria do noticiário enviado pela rede de correspondentes estrangeiros do diário (Claude Julien, André Fontaine, Eric Rouleau, Pierre Drouin, Jean Planchais). E acrescentaria a essas contribuições textos escritos por personalidades da vida política internacional.

Faltava um título. Primeiramente, Beuve-Méry pensou em Le Monde International, hipótese imediatamente descartada por ser pleonástica. Pensou no termo ‘diplomacia’, cuja raiz grega, diploma, significa ‘dobrado ao meio’, como um jornal. E nasceu Le Monde Diplomatique.

No dia 2 de maio de 1954 estava nas bancas, prometendo ‘informações seguras e abundantes’, o que continua fazendo cinqüenta anos depois.

Inicialmente, o jornal compartilhava com fidelidade absoluta a linha editorial de Le Monde. Isso só começou a mudar em 1973, quando Claude Julien assumiu a direção do jornal mensal. Especialista em matéria de Estados Unidos e excelente conhecedor dos países do hemisfério Sul, ele resolveu ampliar o universo a que o jornal era dirigido (num primeiro momento, quase exclusivamente o das embaixadas), criando editorias sobre economia, sociedade, cultura, idéias etc. Contratou colaboradores de fora, criou uma autonomia da redação e aperfeiçoou a linha editorial, afastando-a daquela do diário. A circulação aumentou de maneira considerável.

Redações separadas

Le Monde Diplomatique permanecia sob controle de Le Monde, do qual era apenas um serviço a mais. O responsável pelo jornal tinha apenas o título de editor, pois o diretor da publicação era o do diário. Os jornalistas do Diplo, que na época eram três, criaram a Sociedade dos Redatores de Le Monde. E esta viria a eleger, em 1980, Claude Julien como sucessor de Jacques Fauvet na direção do diário. Porém, alguns meses após essa eleição e sem que tivesse sequer assumido as novas funções, Julien foi impedido de fazê-lo. O ambiente ficou carregado e surgiram tensões que marcariam para sempre as relações entre os dois jornais.

Antes de sua saída, e com o objetivo de preservar a autonomia do Diplo, Jacques Fauvet nomearia Claude Julien ‘diretor’ do Monde Diplomatique. Isto significava, em termos concretos, que a empresa Le Monde S/A passaria a ter dois jornais, com redações estritamente separadas. Todos os que se sucederam, nessa etapa, na direção do Monde – André Laurens, André Fontaine e Jacques Lesourne – sempre respeitaram escrupulosamente a linha editorial do Monde diplomatique.

Jornal único

Mas a equipe do Diplo de Claude Julien não se contentava com a independência da redação e, ao longo da década de 1980, esforçou-se por conseguir a autonomia administrativa. Acabou sendo constituído um Conselho de Orientação – que, na prática, funcionava como um conselho administrativo – perante o qual o diretor do Monde Diplomatique comparecia a cada trimestre para prestar contas de sua gestão. Quando Claude Julien se aposentou, em dezembro de 1990, foi o Conselho de Orientação que elegeu seu sucessor.

No início da década de 1990, o Monde Diplomatique, cuja venda aumentara significativamente, encontrava-se numa situação paradoxal: sua redação era independente e sua administração dependia exclusivamente de si próprio, mas continuava incrustado numa empresa – a Monde S/A – como uma espécie de corpo estranho.

Foi então que surgiu o sonho de controlar a empresa. Jean-Marie Colombani, diretor-presidente da empresa Le Monde S/A, assumiu com a redação do jornal a promessa, durante sua campanha eleitoral de 1994, e a cumpriu, após sua eleição, apesar da oposição por parte da maioria das empresas acionistas. Le Monde S/A aceitou ceder até 49% do capital de sua nova filiada – Le Monde Diplomatique S/A – a dois outros acionistas: a Association Günter Holzmann (que representa os membros da redação do Diplo) e a entidade Amis du Monde Diplomatique. Juntas, as duas possuem uma ampla margem de bloqueio que impede a adoção de qualquer decisão que possa atentar contra a independência do jornal.

O estatuto da empresa prevê que o diretor do Diplo só pode ser eleito pelo conselho administrativo por meio de proposta da Association Günter Holzmann. Na prática, isto significa que somente os membros desta – ou seja, a redação – elege seu diretor. É esta independência que garante, em última instância, a singularidade deste jornal. Uma singularidade única.