Saturday, 11 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

O abismo entre a imprensa e os leitores

Não é novidade que a atividade jornalística implica uma eterna relação conflituosa, resultado do triângulo poder-mídia-leitor. Também não é segredo que, apesar do seu dever com o público, o jornalista participa da elite de uma sociedade por causa de sua identidade de mediador – ou seja, precisa acessar o topo da hierarquia para informar quem não tem acesso livre aos bastidores do poder.


No caso das rejeições francesa e holandesa à Constituição européia, na semana passada, a imprensa foi um dos ‘reis’ que ficaram nus. Ainda que não seja o principal assunto discutido na esfera pública após o terremoto do ‘não’ na França e na Holanda, o referendo evidenciou a distância existente entre a mídia e seus leitores.


A reação imediata de diversos veículos franceses após domingo, 29 de maio, foi tentar explicar as causas da negativa popular. Apesar da consciência de que a vitória do ‘não’ era uma possibilidade real, e mesmo com o amplo debate que publicou a respeito do assunto, a imprensa levou um susto com a decisão e adotou um discurso que pendeu para o fatalismo.


O rumor da rua


Na França, a maior parte dos veículos, a favor da ratificação do tratado europeu, traduziu o ‘terremoto’ em capas impactantes – como a da revista semanal de esquerda Le Nouvel Observateur. A manchete, ‘Estado de choque’, foi completada por frases retiradas do editorial de duas páginas do diretor da revista, Jean Daniel: ‘O poder rejeitado; as elites desaprovadas; a Europa sancionada’.


A revista L’Express estampou um sério Jacques Chirac na capa, com a manchete ‘Como resistir’, em clara referência às sombras que se abatem sobre o governo francês a partir de agora.


Numa matéria sobre a composição do voto francês por organizações de extrema-direita ou extrema-esquerda, o jornalista Robert Schneider, do Nouvel Observateur, explica que a falta de confiança dos franceses em seus dirigentes foi o principal motivo da rejeição. Foi a ‘França de baixo’ – operários e assalariados, mas também funcionários públicos e privados – que resolveu chacoalhar a ‘França das elites’, incluindo os jornalistas.


Para ilustrar essa oposição e a distância entre as duas esferas, a análise mais contundente parece ser a de um leitor cuja carta foi publicada pela revista: ‘Confundindo comunicação e informação, comércio e democracia, a imprensa, como os políticos, está perdendo contato com sua clientela. Na rua, sente-se, confusamente, o conluio entre os políticos, a mídia e os interesses privados para travestir a realidade, mascarando objetivos mais ou menos nítidos’, diz o texto.


‘A raiva dos eleitores’


Foi a revista Marianne que denunciou tempestuosamente a dificuldade dos diretores dos meios de comunicação de ‘sentir o país’. Uma pesquisa publicada na edição com data de quarta-feira (1/6) mostra que a maioria do leitorado dos veículos favoráveis à Constituição Européia era contra a aprovação do tratado.


De acordo com a publicação, faltou autocrítica na televisão, no rádio e na mídia impressa. Desde o início da campanha do governo pelo ‘sim’, os grands patrons da mídia francesa resolveram ignorar o tapa também destinado aos jornalistas com a desculpa de que, finalmente, os eleitores não compreenderam a questão européia: ‘A mensagem transmitida era límpida: as pessoas inteligentes, os diplomados, os que sabem, votarão ‘sim’; os outros, cretinos e descontentes, votarão ‘não’. A competência e a inteligência estavam do lado do bem, a confusão e o medo, do outro lado’, escreveu Marianne.


Apesar desse discurso alarmista, o ‘não’ ganhou, expondo o paradoxo: enquanto os veículos tradicionais de esquerda se engajaram pelo ‘sim’, foram exatamente os leitores desses veículos (notadamente os ouvintes da rádio France Inter e os leitores do Nouvel Observateur e do Le Monde) os responsáveis pela vitória do ‘não’.


‘No dia seguinte à votação, a primeira reação dos patrões da imprensa consistIU em insultar boa parte de seus leitores’, afirma o texto de Marianne.


O mesmo tratamento com os eleitores foi verificado na Holanda, ao menos por parte dos políticos. De acordo com a revista britânica The Economist, a rejeição massiva dos holandeses – 61,8% foram contra o tratado, 37,2% a favor – também foi marcada pelo sentimento antiestablishment da população. Na avaliação da revista, no entanto, os Países Baixos não são tão contra o projeto europeu. Votou-se contra o modo com que o governo costuma apresentar suas decisões, sempre tomadas no topo e sem debate.


Esse aspecto fica mais claro quando se fala da campanha do governo pelo ‘sim’: ‘A raiva dos eleitores voltou-se contra o terrorismo e o desdém dos políticos, que alarmavam a população com ameaças de colapso econômico ou mesmo de guerra, fazendo referência a partidários do ‘não’ como desinformados ou mesmo ignorantes’, diz um dos textos da edição de 4/6 da Economist.


O que fazer?


A tendência a favor do ‘sim’ dos veículos franceses não quer dizer que tenha faltado informação ao público. Para aquecer o debate, diversos meios jornalísticos publicaram especiais e artigos extensivos sobre o assunto desde, pelo menos, o início do ano. Naturalmente, a grande questão que se impôs na semana após o referendo foi sobre o futuro da Europa.


Foi nesse contexto que se deu a defesa do oui pela mídia francesa, que expôs uma Europa em busca de uma identidade. Sem o tratado, qual seria a melhor solução para o Velho Continente? Na imprensa, assim como na esfera política, as respostas ainda são incertas. O que também parece ser o caso entre os partidários do ‘não’, segundo Robert Schneider, do Nouvel Observateur:




‘Mas quais são as perspectivas futuras? Onde está a outra sociedade que eles [os representantes políticos da extrema-direita e extrema-esquerda, por exemplo] sonham construir? A outra política que eles defendem? Que Europa eles querem?’


O editorial do Le Monde (sexta, 3/6), intitulado ‘Morte do ‘plano B’’, levanta a mesma questão. Segundo o vespertino, a não-aprovação da Constituição traz problemas para o impulso político da União Européia, que ‘já sofre pela falta de dinamismo’.


A rejeição promove também um retorno dos nacionalismos dos países-membros, defensores de seus próprios interesses. Para inverter o quadro, Le Monde diz que seria necessário ‘desenvolver uma verdadeira pedagogia européia’, nas palavras do atual presidente da UE, Jean-Claude Juncker.


E qual é a Europa que a mídia quer? Tanto a imprensa francesa quanto a internacional apontaram esboços de soluções. O primeiro deles investiga se a ratificação do tratado será mantida, uma vez que todos os 25 países da União Européia precisam aprová-lo. Com os ‘não’ de dois países-chave para a UE, diversos representantes políticos vêm questionando o sentido de se continuar com a votação. Na segunda-feira (6/6), a Inglaterra anunciou sua decisão de suspender o referendo que deveria ocorrer no início do ano que vem. 


O assunto deverá ser decidido durante a cúpula européia em 16 e 17 de junho. O presidente da UE, Jean-Claude Juncker, argumenta que os desejos dos nove países que já endossaram a Constituição não devem ser negligenciados. Mas veículos como o jornal britânico The Daily Telegraph se pronunciaram contra a continuidade do processo de consulta popular.


Peso da rejeição


Por de outra parte, há versões minimalistas do discurso pessimista. A semanal inglesa The Economist aponta uma Europa ‘morta, mas ainda não enterrada’, embora apostando na continuidade a uma visão mais otimista. Um mês atrás, a revista alertou os dirigentes europeus a não deixar a histeria com a da negativa francesa paralisar o projeto de dinamização do continente. Criticando a falta de um ‘plano B’, a revista sugeriu que a resposta a uma rejeição ao texto deveria ser a apresentação de um novo texto, mais curto e mais claro sobre a distribuição de poderes. O que serviria, eventualmente, a aproximar a União do povo – objetivo primeiro da Constituição.


Na edição seguinte, e levando em conta o ‘não’ holandês, a revista não acredita na manutenção dos ‘melhores pontos’ do texto original, o que criaria conflitos insolúveis. Esta também parece ser a opinião dos veículos franceses e também da presidência da UE.


No caso da França, a renegociação de uma Constituição revisada implicaria, por exemplo, a extensão da proteção social francesa para o resto da Europa. Solução que ‘os outros membros nunca concederiam’, já que o projeto europeu não inclui a adoção de princípios que beneficiariam um só país.


Com as rejeições – principalmente a francesa –, outra grande preocupação traduzida nos meios de comunicação é a estagnação do processo de integração de novos países à UE.


Opinião da elite


Na edição da semana passada, o semanário Courrier International, que traduz artigos de jornais do mundo inteiro, mostrou como a imprensa estrangeira cobriu a negativa francesa, dando conta de uma França ‘doente’ e ‘elitista’ – situação que parece ter sido mantida com a escolha de Dominique de Villepin para o cargo de primeiro-ministro. A revista alemã Berliner Tageszeitung e a russa Izvestia consideram um erro os franceses e holandeses optarem pelo ‘não’.


Numa abordagem mais positiva, o diário italiano La Stampa diz que a Europa não foi morta em Paris. O jornal vê a rejeição como uma oportunidade de eliminar as ambigüidades do tratado. ‘Paradoxalmente, uma vitória do ‘sim’ teria fortalecido a UE, mas também teria prolongado o hábito francês do ‘jogo duplo’ (…). O ‘não’ obriga os franceses a escolher um único caminho’. Segundo o jornal, os franceses precisam se aproximar mais das causas de seus problemas internos, mas também necessitam de posições mais firmes e menos ‘egoístas’ em relação à Europa.


Em resumo: o debate houve e há na imprensa, apesar da histeria suscitada com os dois ‘não’. A posição em favor da Constituição mostrou o caminho que a elite jornalística gostaria de ver realizado para a Europa. A escolha não é necessariamente ruim. Mas distanciou tanto a imprensa do leitorado quanto as elites políticas do eleitorado, invertendo princípios básicos que regem as duas esferas: elas existem em função do ‘pessoal de baixo’, não do ‘de cima’.

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Jornalista