Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O desafio da autonomia editorial

A venda do “Financial Times” pela Pearson não pegou ninguém de surpresa.

O jornal foi, durante muito tempo, um objeto de desejo. Rupert Murdoch, dono de jornais sensacionalistas e do “The Times”, surpreendeu a City londrina nos anos 90 ao anunciar que tinha comprado 20% da Pearson, tornando-se o maior acionista, mas sem assumir o controle.

De todos os negócios do grupo, ele queria o “Financial Times”, que considerava o melhor jornal inglês. Mas o conselho de administração não aceitou sua presença na empresa e ele teve que vender as ações. Décadas mais tarde, como alternativa, Murdoch compraria “The Wall Street Journal”, mas o seu sonho sempre foi o “FT”.

Depois dele, não faltaram boatos sugerindo que o jornal estava à venda ou que havia interessados em comprá-lo. Entre eles as agências Thomson Reuters e Bloomberg – além do indefectível Murdoch. Em 2003, a então CEO da Pearson, “dame” Marjorie Scardino, teve que dizer que o “FT” só seria vendido sobre seu cadáver. Seu substituto, em 2013, teve que reconfirmar que o jornal não estava à venda, mas não acabou com os rumores.

O fascínio que o jornal exerce é decorrência da qualidade. É moderado, pragmático, equilibrado, altamente elogiado pelos homens de negócios, e independente – já publicou informações que custaram caro à Pearson, seu controlador. Segundo um editor britânico, o “FT” é o melhor jornal inglês, “o jornal da razão”, com uma ampla visão do mundo. É facilmente identificável pela cor salmão do papel em que é impresso. Serviu de modelo e inspiração para dezenas de jornais de economia no mundo inteiro, que o imitaram até na cor do papel.

História

O “Financial Times” foi fundado em 1888 para orientar um pequeno número de investidores e especuladores da City. Tinha mais leitores, mais prestígio e mais lucro que seu competidor o “Financial News”. Mas em 1945, terminada a II Guerra Mundial, o Financial News comprou e se fundiu com seu rival, mas o nome adotado foi ‘Financial Times’, o que levou um jornalista a dizer que era o equivalente a que a Grã-Bretanha, depois de ter derrotado a Alemanha, mudasse o nome para Grosse Deutschland.

Com a expansão econômica do pós-guerra, o novo jornal cresceu em circulação, lucro e prestígio, mas era visto pelo resto da imprensa como pouco mais que um boletim da bolsa. Até que deu um salto.

Passou a cobrir as atividades da indústria, comércio, energia, tecnologia e seu impacto sobre a sociedade. Deu atenção à política, montou uma rede de correspondentes internacionais, ganhou verniz intelectual e contratou alguns dos melhores críticos de música, teatro, cinema, livros.

Ganhou o respeito dos intelectuais e da esquerda inglesa. Deixava de ser uma folha especializada para corretores e investidores para tornar-se leitura indispensável da elite dirigente. Mas seu editor, Gordon Newton, não perdia de vista a razão de ser do jornal: de nada adiantaria ter a melhor crítica de arte se errava nas cotações da bolsa. Nesse período, foi comprado pelo conglomerado S. Pearson and Sons, que pagou 720 mil libras esterlinas – 58 anos depois o vendeu por 844 milhões de libras ao japonês “Nikkei”, o maior jornal de economia do mundo, em circulação.

O “FT” iniciou um processo de internacionalização que o levaria a tornar-se, para uma elite global, tão relevante como o era para os leitores ingleses. O primeiro passo foi imprimir o jornal em Frankfurt em 1979 e posteriormente em outras cidades da Europa, dos Estados Unidos e da Ásia. Hoje, é o mais internacional dos diários de língua inglesa.

Digital

Foi um período de euforia, com prestígio, receita, lucro e circulação crescentes – chegou a vender meio milhão de exemplares -, interrompido pelo advento da internet, que pegou o jornal no contrapé. As primeiras reações foram confusas. Deu o conteúdo de graça. Perdeu meio bilhão de dólares com a compra de uma empresa digital. Cresceram os boatos de que o jornal perdia dinheiro e era um fardo para a Pearson.

Um novo editor, Lionel Barber, acertou o passo quando o jornal unificou as redações das versões impressa e digital, esta última hoje prioritária, intensificou a cobertura com uma equipe de 500 jornalistas, e tornou pago, com preços elevados, o acesso a quase todo o conteúdo on-line. Nos últimos dez anos, o “FT” voltou a dar lucro.

É um dos raros jornais que conseguem fazer a transição para o mundo digital. Grande parte da versão impressa é feita com material já colocado na rede, e não ao contrário, como até recentemente, e é dada uma crescente ênfase à análise e ao contexto da notícia.

A renda com a venda de conteúdo já supera as receitas de publicidade. Em 2014 tinha 722 mil assinaturas, com crescimento de 21% em um ano, das quais apenas 213 mil da versão impressa e, destas, somente um terço no Reino Unido. Hoje, mais da metade dos leitores chega ao jornal por dispositivos móveis.

O “FT” tem pela frente um duplo desafio. Continuar adaptando-se ao mundo digital e manter a independência: a imprensa japonesa está mais acostumada a reverenciar a autoridade do que a contestá-la.

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Matías Molina é jornalista