Saturday, 04 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

A cicuta matou um, o álcool, o outro

Quem matou o Sócrates grego foi a cicuta, que ele bebeu a contragosto. Quem matou nosso querido Sócrates paraense e paulista por adoção foi o álcool, que ele bebia com gosto, como informa a mídia em seções esportivas e em outras também. Mas, ousada e com abundantes notícias sobre os hábitos do jogador, é contida quando se trata de referir políticos com hábitos semelhantes, sem contar que setores mais empedernidos reprovam colegas de ofício que dão aos políticos o mesmo tratamento dado aos comuns, isto é, registrar o que sabem. E os leitores que julguem por si mesmos.

Tal como seu famoso xará, o filósofo grego, Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira pensava muito sobre o que fazia, e suas ações, como as do outro, eram aprovadas ou reprovadas, conforme os interesses daqueles que atingia. Na última conversa que tivemos, em Ribeirão Preto, durante uma das tradicionais Feiras do Livro, às quais ele sempre deu muito apoio, lembramos do diálogo final entre o filósofo e o mensageiro que lhe entregou a sentença de morte, determinando a ingestão da cicuta: “O senhor foi condenado à morte”. Ao que o ateniense replicou: “O senhor também”. Sim, porque todos estamos condenados à morte! E, entre saborosos goles de chope, a conversa prosseguiu naquele clima que só ele sabia criar.

Desde os fins do segundo milênio, a mídia tornou-se onipresente na vida de certas personalidades, às vezes com a cumplicidade delas, como é o caso de muitos políticos que a procuram com reiterada insistência, mas esperam que editores e outros profissionais do rádio, da televisão, de jornais e de blogues, enfim, de todas as modalidades, sejam por eles subjugados. É só exercer algum tipo de crítica que surge a inevitável obsessão com o “controle da mídia”.

Referência indispensável

Não era este o caso de Sócrates. Ele jamais a procurava. Ao contrário, era insistentemente procurado por todos porque, bem articulado, tinha o que dizer e sabia como fazê-lo. E, para além dos campos de futebol, ousou interferir na estrutura de poder dos clubes – verdadeiras caixas-pretas – ao deflagrar o movimento conhecido como “democracia corintiana”.

Sócrates começou sua brilhante carreira como jogador de futebol no Botafogo de Ribeirão Preto, em 1974. Foi para o Corinthians em 1978 e lá ficou até 1984. Depois foi morar na Itália, tendo jogado na Fiorentina, onde outrora brilhara Amarildo, um craque que jogava numa posição semelhante à dele e que, ao contrário dele, voltou vitorioso de uma Copa, substituindo ninguém menos do que Pelé, em 1962.

Sócrates não teve a mesma sorte nem o mesmo destino e perdeu as duas Copas (1982 e 1986) de que participou como referência indispensável naquele famoso time. Mas não passou o dissabor por que passou Amarildo, barrado à entrada do Maracanã, onde tantas vezes brilhara, porque anódinos funcionários não o reconheceram nem quando ele mostrou um documento de identificação.

Direitos da cidadania

Como Neymar, proclamado novo príncipe do futebol brasileiro, Sócrates não teve na seleção brasileira o mesmo desempenho obtido nos clubes. Com outros jogadores, igualmente talentosos, aconteceu o mesmo: Zico, Falcão, Casagrande, Cerezo, Éder e tantos outros não ganharam nada pela seleção. Neymar e Ganso ainda não também, mas esses dois têm a vida inteira pela frente.

Obviedade atroz, a morte faz parte da vida, mas é sempre doloroso registrar o desaparecimento de uma pessoa tão querida como Sócrates, a quem o Brasil tanto deve e não apenas no futebol, mas no doloroso percurso de recuperação dos direitos da cidadania para todos os brasileiros.

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[Deonísio da Silva é escritor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor e um dos vice-reitores da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa)]