Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

João Paulo II,
o papa pop

Ele morreu sábado, mas jornalistas italianos o mataram um dia antes. Bispos confederados, seminaristas definidos como universitários, ressurreição de martelinho abolido há cinqüenta anos e latim como língua morta foram alguns dos tropeços da cobertura dos primeiros dias do funeral de João Paulo II. Que língua viva, depois do inglês e do mandarim, influencia mais o mundo do que o latim?


Ai das celebridades que morrem no fim de semana! Redações vazias, o que era quente fica frio. O que era urgente na sexta-feira é postergado para dali a três dias. O que deveria ser conferido e revisto é impresso ou vai ao ar com sofreguidão, sem que os titulares possam intervir para corrigir erros ou ‘barrigas’ dos reservas.


Maior revista de informação do país, Veja deu capa para o papa, mas no índice de seu número 1899, com data de 6 de abril, que circulava no fim de semana, chamava a atenção dos leitores para uma matéria com a rubrica ‘especial’. Os leitores deveriam ir à pág. 88 e ler as ‘propostas para o Rio reviver dias de glória’. Lá encontravam o título ‘Um adeus com dor’ encimando um texto tão apressado que não deu tempo nem de avisar os leitores ou sequer registrar que a transcrição de pequeno trecho da Liturgia das Horas trazia terríveis erros de concordância. Agonizava junto com o papa a última flor do Lácio: ‘Vinde, ó Deus, em meu auxílio! (…) Socorrei-me! (…). Que minha prece feita a Ti se eleve…(…) vem, vem a mim, escuta a minha prece quando clamo a Ti’.


O número especial, designado como ‘edição histórica’ ( edição 1899/A, número 40 na série de edições especiais), chegou às bancas segunda-feira, com a agilidade costumeira, mas com poucas matérias que não pudessem ter sido editadas no número anterior.


Erros comezinhos


Época tomou caminho parecido. Deu capa para ‘O papa que mudou o mundo’, mas lá dentro não mudou nem o índice, que mandava o leitor encontrar a matéria ‘de capa’ na pág. 74: ‘Pesquisa inédita do Ipea revela as cidades mais tranqüilas e as mais arriscadas do país para viver e sugere medidas para conter a escalada da violência’.


E da escalada dessas confusões, para onde foge o leitor? João Paulo II estava num caderno especial, em páginas numeradas de 1 a 16.


E o jornal O Dia, em suplemento chegado às bancas com rapidez, deu pequena contribuição ao Febeapá midiático e religioso, ao definir seminaristas como seres que ‘cursam faculdade’, o sexto elo de uma inusitada hierarquia ilustrada com figurinhas na pág. 45.


Ninguém, porém, superou uma agência noticiosa italiana, que matou o papa na sexta-feira, um dia antes de ele falecer. O papa chegou a ter febre no dia seguinte, mostra de que seu organismo ainda resistia, mas nem assim eles desmentiram a ‘barriga’. Ao contrário, ficaram aguardando que a notícia fosse confirmada, o que somente veio a acontecer sábado, às 16h37, horário de Brasília.


Jornais e revistas incorreram nas mesmas insuficiências. Era difícil dar alguma novidade de um papa que ficou exposto mais de 26 anos na mídia, dia e noite. Mas por isso mesmo era possível fazer um apanhado menos insensato e menos entediante do que foi apresentado.


Emissoras de rádio e televisão seguiram a mesma trilha infeliz. Uma rede de TV tornou todos os bispos brasileiros confederados, ao noticiar que um cardeal papável era presidente da ‘Confederação’ dos Bispos do Brasil! O ‘C’ de CNBB, citada com freqüência na imprensa, designa a primeira palavra da sigla – ‘conferência’ e não ‘confederação’.


‘Quem não é fiel nas pequenas coisas, é infiel também nas grandes’, dizem os Evangelhos. Podemos confiar em veículos, que cometem erros tão comezinhos, quando fazem graves denúncias?


Dedo em riste


E afinal quantos papas já existiram? O número menos polêmico é 260. Mas várias fontes fazem essa cifra variar de 260 a 265. Uma das obras mais confiáveis, o livro do francês Jacques Mercier, Vingt siècles d’histoire du Vatican: de Sant-Pierre a Jean-Paul II (Éditions Lavauzelle, 530 pp, Paris, 1976) concorda com 260. Mas a Enciclopédia Católica (The Catholic Encyclopedia, Volume I, Robert Appleton Company, New York, 1999) dá João Paulo II com o de número 265.


Contar o número de papas semelha fazer a lista de presidentes do Brasil. Afinal, se o vice assume por pouco tempo, a gente conta ou não conta? E que dizer da Junta Militar que assumiu o poder quando o general Artur da Costa e Silva, vítima de derrame, ficou impossibilitado de governar o Brasil? Alguns livros escolares pulam dele para Emílio Garrastazu Médici sem sequer aludir ao interstício.


A morte de João Paulo II era esperada para qualquer dia, ao contrário da de seu antecessor imediato, de quem tomou os dois nomes, que foi posto na cátedra e no túmulo em pouco mais de um mês, e cuja morte até hoje está coberta de mistérios, havendo inclusive a suspeita de envenenamento – tese sugerida, entre outros, pelo roteirista do filme O Poderoso Chefão – parte III.


Morreu o soberano da única monarquia do mundo que só dá a conhecer o sucessor vários dias depois de morto o antecessor. Será que o próximo papa vai quebrar outras tradições? Ele sucederá a um que, a exemplo de seu antecessor, quebrou a tradição de escolher um nome apenas, optando por nome composto, indicando, os dois, que seguiriam os rumos traçados por João XXIII e Paulo VI?


Mas nenhum dos dois seguiu quase nada dos homenageados em seus nomes. O primeiro porque não teve tempo. O segundo por ter dedicado os melhores anos de seu pontificado a derrubar o comunismo no Leste europeu. Como pastor, queria afastar as ovelhas do pasto envenenado.


Dizia que os padres não podiam se meter em assuntos da vida material, que cuidassem integralmente da vida espiritual. Menos no Leste europeu, especialmente na Polônia, claro, onde deveriam fazer o contrário e engajar-se na luta de demolição do socialismo. No resto do mundo, nem escrever sobre temas sociais eles podiam. Que o digam o brasileiro Leonardo Boff, o espanhol Pedro Casaldáliga e o nicaragüense Ernesto Cardenal. O primeiro censurado até o fim, vivendo confinado em Petrópolis-Guantánamo, sem os benefícios de recurso judicial à censura de que era vítima. O terceiro, admoestado publicamente pelo Santo Padre que, de dedo em riste, tendo Cardenal ajoelhado a seus pés, humilhou-o em rede mundial de televisão. E o segundo interrogado com o autoritarismo comum a qualquer inquisidor, que devem ter sentido algum tipo de inibição quando João Paulo II abraçou Casaldáliga em Roma e disse que aquele abraço era para o bispo espanhol saber que o papa não era uma fera.


Curiosidades papais


É divertido ler o que dizem sobre a nacionalidade dos papas. Como definir nacionalidades em dois mil anos de História? Quantas nações e países desapareceram ou mudaram suas fronteiras em vinte séculos?


De todo modo, alguns referenciais dizem muito: Espanha e Portugal, dos reis católicos, deram cinco papas: três espanhóis e dois portugueses. A Inglaterra, mais protestante do que católica, deu apenas um, como a católica Polônia. Síria e Palestina deram oito papas. A França (ou regiões hoje a ela pertencentes) deu 17. A Itália deu 203, dos quais 99 eram de Roma.


O mais longo pontificado foi o de São Pedro: 34 anos. Pio IX (o primeiro Pio governou de 140 a 155) conduziu a Barca de São Pedro por 31 anos e sete meses. Depois desses dois, Leão XIII, com 25 anos e cinco meses, foi superado por João Paulo, no poder desde 1978.


João Paulo I ficou no poder por escassos 33 dias. Mas houve papados mais curtos. Celestino IV ficou apenas 16 dias, em 1241. Urbano VII, em 1590, ficou 12 dias. Pio III, 25 dias; Leão XI, 26; Dámaso II, 22; Teodoro II, 20.


João Paulo II morreu em casa, não quis voltar ao hospital. Mas 30 papas foram martirizados; seis foram assassinados; quatro morreram no exílio; dois morreram por ferimentos causados em motins; um morreu na prisão e um morreu porque caiu sobre ele o teto do recinto onde estava. Para 215 papas a morte foi natural.


O século 20 nos deu oito papas: Leão XIII (1878-1903); Pio X (1903-14);. Benedito XV (1914-22); Pio XI (1922-39); Pio XII (1939-58); João XXIII (1958-63); Paulo VI (1963-78); João Paulo I (1978) e João Paulo II (1978-2005).