
(Foto: Pavel Danilyuk/Pexels)
Todo 7 de abril é comemorado o dia do jornalista e nessa data é comum ver homenagens nas redes sociais. São artes ilustradas com microfones, câmeras fotográficas, aparelhos televisivos, ou algum outro instrumento de trabalho da categoria, acompanhadas de frases clichê – como “com ética e profissionalismo, informam e transformam o mundo”, “mais que uma profissão, uma missão”, “feliz dia para quem tem o superpoder de transformar as notícias em histórias cativantes” – e normalmente escritas com fonte courier, aquela reconhecida como “fonte de máquina de escrever”.
Tais postagens, em muitos casos, partem de empresas privadas, de figuras públicas, de órgãos governamentais e de veículos de comunicação que, ao longo do ano, pouco ou nada fazem para melhorar de fato a vida desses profissionais. Esse gesto simbólico, num único dia do ano, contrasta com a realidade enfrentada nas redações, nas ruas e também nas redes sociais: jornalistas, não só no Brasil, possuem uma rotina marcada por pressões, insegurança, salários baixos e, infelizmente, todo tipo de agressão – presencial ou virtual, físico ou moral, de gênero, judicial ou institucional. Para se ter uma ideia, segundo a Abert, a cada cinco dias um profissional da imprensa brasileira sofreu algum tipo de violência em 2024. No mundo, a Repórteres Sem Fronteiras (RSF) revelou uma alarmante intensificação de ataques, sobretudo em zonas de conflito, onde se concentra metade dos assassinatos de jornalistas registrados ano passado.
O que uma boa parte dessas postagens em comemoração à data não mostram, portanto, é que há colegas sendo cotidianamente ameaçados por fazerem perguntas incômodas, repórteres sendo hostilizados em coberturas e comunicadores sendo alvos de campanhas de difamação, isso apenas para me deter em alguns dos tipos de violências cometidas. Os casos das jornalistas Gabriela Biló e Thaísa Oliveira, da Folha de S.Paulo, do repórter e colunista do UOL Thiago Herdy, e de inúmeras repórteres de futebol como Bianca Molina, da TNT Sports, e Mariana Pereira, da ESPN, são alguns dos mais recentes que vieram a público, trazendo para os holofotes tipos de agressões que muitos outros colegas também vivem.
Desde o dia 21 de março, pelo menos, há uma campanha de perseguição contra Gabriela Biló e Thaisa Oliveira em razão da cobertura dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. As repórteres, o jornal em que atuam e diversas entidades jornalísticas têm denunciado os ataques e cobrado ações da justiça. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), por exemplo, destacou que essa é “uma ação coordenada de ofensas pessoais, exposição de dados pessoais e ameaças de violência física e morte, difundidas pelas redes sociais com o claro intuito não só de atacar as duas profissionais, como também de silenciar o trabalho da imprensa”. Entre os ataques virtuais, há muita desinformação e insinuações inverídicas de que teriam sido as responsáveis pela prisão de Débora dos Santos Rodrigues, que vandalizou a estátua que representa a Justiça na Praça dos Três Poderes. As jornalistas nunca revelaram nas reportagens o nome de Rodrigues.
Um dia antes dos ataques contra as profissionais estourar nas redes, em 20 de março, foi revelado que o repórter Thiago Herdy teve dados fiscais, endereço e informações de sua família expostos em texto publicado numa plataforma digital. Foram ainda divulgadas imagens do cotidiano do jornalista, o que demonstraria que ele foi seguido. Essa prática teria iniciado após reportagens feitas por Herdy e outros repórteres sobre indícios de irregularidades em contratos emergenciais da gestão Ricardo Nunes (MDB) à frente da prefeitura de São Paulo.
A situação mais recente trata de assédios sexuais virtuais sofridos por jornalistas que atuam no esporte. Na última sexta-feira, 11 de abril, o UOL publicou uma reportagem denunciando esse tipo de agressão e trouxe os casos de Bianca Molina, repórter de futebol da TNT Sports, e de Mariana Pereira, apresentadora da ESPN. Elas, e outras profissionais, são frequentemente alvo de ataques coordenados, que incluem o recebimento de fotos pornográficas não solicitadas, ofensas misóginas, ameaças de violência e tentativas de descredibilização de seu trabalho. São agressões que não apenas afetam a saúde mental e emocional, mas também comprometem a segurança dessas mulheres.
Esses são episódios recentes que se tornaram públicos porque envolvem alguns profissionais que atuam em grandes empresas de mídia e que possuem visibilidade. Mas e quantas histórias semelhantes não se repetem diariamente, sem registro, sem apoio, sem sequer o reconhecimento de que houve um abuso? É a partir desse ponto que quero chamar atenção para uma reflexão que considero crucial: será que basta resistir?
Heroísmo exausto
Parece-me que resistir foi – e ainda é – um verbo quase sagrado, uma ideia enaltecida e mística de que jornalistas têm que aguentar de tudo, afinal de contas, “somos o quarto poder”, os “guardiões da verdade”, aqueles que revelam o que se quer esconder. Essa seria uma forma de expressar a persistência diante das adversidades, de manter viva uma pretensa chama que mantém a profissão mesmo em cenários difíceis e em tempos de crise (e quando não estivemos?). Aliás, ao que me parece, esse seria o fado romântico de jornalistas: atravessar as mais diversas crises com um brilho apaixonado no olhar e a certeza de que devemos continuar a fazer o nosso trabalho.
Veja, não é a proposta aqui criar uma narrativa pessimista, esse texto trata muito mais de uma indignação de ver colegas sendo agredidos e ameaçados, de se deparar com a precarização que envolve nossa atuação e, o pior, imaginar que tudo isso não parece ter um fim próximo. Esses ataques não são recentes – apesar de terem uma nova roupagem com a disseminação impetuosa de discursos de ódio nas redes sociais – mas essa romantização da resistência também não é. Aqui neste objETHOS, Dairan Paul já abordou algo similar, destacando que “o problema não está no valor público intrínseco ao jornalismo, mas em sua cultura profissional que estimula determinados comportamentos – como o excesso de velocidade, a concorrência pelo furo, as jornadas de trabalho extensas”.
Trata-se de uma narrativa sustentada nos discursos das próprias empresas de comunicação que, enquanto lucram, celebram essa “garra” e contribuem para a romantização ao mesmo tempo em que cobram dos profissionais mais engajamento, estabelecem jornadas cada vez mais exaustivas, oferecem salários baixos e ainda dão pouco suporte – muitas vezes nenhum – quando os trabalhadores sofrem ataques ou precisam de respaldo emocional ou jurídico. Em outras palavras, essa romantização, na verdade, ajuda a mascarar a precarização e transformar o que seria resiliência em sinônimo de obrigação, fazendo com que jornalistas vivam em um estado de exaustão permanente.
Daí, quando o único apoio oferecido parecem ser postagens em celebração à data, a sensação é de que essas “homenagens” são para cumprir tabela, consistem em desejos do que os jornalistas poderiam fazer plenamente, mas que estão completamente distantes da realidade que enfrentam. Mais do que “parabéns” no feed, o que a categoria precisa são condições concretas para seguir trabalhando com dignidade, salários melhores, estrutura laboral e políticas públicas de proteção.
Publicado originalmente em objETHOS.
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Kalianny Bezerra é Doutoranda no PPGJor/UFSC e pesquisadora no objETHOS