
(Foto: Natan Balthazar)
O Observatório da Ética Jornalística comemorou 16 anos em setembro, realizando um seminário nacional com jornalistas e pesquisadores, que atuam local e nacionalmente, estudantes e professores de Jornalismo e de outras áreas. O evento aconteceu na UFSC, no dia 26, com reflexões sobre a trajetória e a relevância do grupo de pesquisa nesses tempos de transformação e com debates sobre o futuro da profissão e da democracia. O Seminário objETHOS 16 anos teve como tema principal “Jornalismo, Democracia e Liberdade de Expressão” e discutiu as transformações sociais produzidas pelas mídias sociais, a plataformização da comunicação e os desafios da cobertura de governos autoritários. O dia de discussões foi dividido em dois debates que articularam reflexões sobre a “Regulação das Plataformas e Desafios à Profissão” e a pergunta “Como Cobrir Governos de Extrema-Direita”. Participaram do encontro, os professores Jacques Mick e Letícia Cesarino e os jornalistas Mateus Vargas e Kátia Brembatti, além do público que esteve presente ao longo de todo o dia.
O seminário do objETHOS foi o momento para um balanço desse período para um grupo que há quase duas décadas pesquisa e debate o jornalismo e reúne pesquisadores formados e em formação, professores e estudantes de graduação. É também um espaço acadêmico por onde já passaram e deixaram suas contribuições vários colegas de profissão e de pesquisa. Numa conta rápida, o coordenador objETHOS, professor Samuel Lima, lembrou que são mais de 600 textos de crítica de mídia produzidos, diversos livros físicos e e-books, relatórios de pesquisa, dissertações e teses dos membros do grupo de pesquisa, defendidas ao longo desse tempo. O site do objETHOS reúne e faz circular essa produção, entre outros meios utilizados pelo grupo.
O Observatório também integra projetos de pesquisa em jornalismo e de crítica de mídia como a Rede Nacional de Observatórios da Imprensa (Renoi), a Coalizão Direitos na Rede (CDR) e a Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD), além de manter parceria de décadas com o Observatório da Imprensa, fundado pelo jornalista Alberto Dines. O objETHOS foi criado na Universidade Federal de Santa Catarina, em 2009, pelos professores Francisco Karam e Rogério Christofoletti. Pelo grupo de pesquisa já passaram diversos investigadores e hoje o objETHOS conta com mais 30 pesquisadores na UFSC e em outras universidades brasileiras. “São 16 anos de luta e resistência em defesa do jornalismo como profissão e como forma social de conhecimento”, disse o professor Samuel Lima na abertura do evento.
Ainda na mesa de abertura, os professores Áureo Moraes, que hoje ocupa a chefia do Departamento de Jornalismo, e Carlos Locatelli, coordenador do Programa de Pós-graduação em Jornalismo da UFSC, falaram da trajetória do objETHOS, da importância de um projeto de pesquisa chegar a 16 anos e da relevância dos debates que o grupo propõe para o jornalismo e para momento de desafios que a democracia e a profissão vivem. O professor Áureo enfatizou o papel do jornalismo para a sociedade. “Eu desconfio que a sociedade está se dando conta de que sem o papel de mediação e modulação que o jornalismo é capaz de fazer, a gente vive o que vive. Em que esses espaços tecnologicamente tão privilegiados e valorizados acabam se tornando praticamente uma praça de barbáries”. E destacou a atualidade dos debates realizados pelo objETHOS, incluindo o evento que marcou o aniversário de 16 anos. “É absolutamente oportuno, importante, fundamental, necessário, indispensável que a gente não pare de conversar, refletir e formar pessoas voltadas para esses temas tão caros”.
O professor Locatelli recorreu à memória do grupo e especialmente ao papel das pessoas que passaram pelo objETHOS nesses 16 anos e aos que estão à frente desse desafio hoje. “São dezenas de pessoas que seguraram e trouxeram esse projeto até aqui e talvez a gente devesse fazer uma nominata e colocar na parede da pós-graduação um ‘grato pelos 16 anos’”. O site do objETHOS tem essa relação dos pesquisadores atuais e dos que já passaram pelo grupo de pesquisa. Locatelli também falou da relevância de projetos como o Observatório para os debates e os desafios contemporâneos. “Eu acho que esse momento marca ao mesmo tempo um reconhecimento do passado e uma relevância do objETHOS, dessa organização no presente, especialmente dado o contexto atual e do que ele trata, sobre o papel político que ele tem hoje ao gerar e compartilhar conhecimento, no enfrentamento a essa desinformação estratégica”. E lembrou que é também momento de produzir o futuro. “Ao mesmo tempo, esse é um momento de encantamento. Encantamento para os próximos que virão. O mais relevante é que a gente se motive para continuar com isso. Vida longa ao objETHOS, ao Jornalismo da UFSC e à própria universidade”.
Além do balanço sobre a história, a atuação e a continuidade do grupo, o seminário nacional do objETHOS entregou um debate diverso e articulado entre experiências de pesquisa sobre as estruturas dos fenômenos de mídia contemporâneos, propostas inovadoras para lidar com essas transformações e aprendizados e novas atitudes a partir das experiências de jornalistas que atuam na cobertura política e investigativa nacional. No debate da manhã, a antropóloga e professora Letícia Cesarino e o professor e pró-reitor de pesquisa da UFSC, Jacques Mick, dividiram a mesa “Jornalismo, democracia e liberdade de expressão: regulação das plataformas e desafios à profissão”. Ambos os professores fizeram suas exposições, mediados pela jornalista e coordenadora do objETHOS, Vanessa Pedro, que também conduziu o debate com a participação da plateia. Nos dois períodos de conversa, jornalistas, pesquisadores e estudantes interagiram com os convidados e trocaram ideias sobre jornalismo, pesquisa e o contexto atual de desinformação.
Letícia Cesarino, autora do livro “O mundo do avesso” e professora do Departamento de Antropologia da UFSC, explicou que tem procurado acessar fenômenos emergentes, como a desinformação, que apresentam configurações inéditas, segundo a pesquisadora. A partir de um olhar para as relações tecnopolíticas, a professora Cesarino analisa “como a relação humano-máquina dentro de ambientes cibernéticos tem participado desses fenômenos como a polarização, como a desinformação”. Em seu livro, publicado em 2022, ela demonstrou a crise do ‘sistema de peritos’, que é um conceito utilizado por ela e que remete às estruturas “que organizaram o ambiente político, científico, legal, midiático durante boa parte do século XX”, como ela explica na obra.
Destes sistemas fazem parte mediadores como o jornalismo, a ciência, a academia. “O livro traz um diagnóstico da crise do sistema de peritos. E isso condensa bem tudo que está em crise hoje. São várias crises que estão interconectadas”, explica a professora Letícia no evento do objETHOS. E ela relaciona esses fenômenos emergentes extremos com os riscos reais à democracia e faz um alerta: “Se a democracia não for defendida ativamente, ela não vai sobreviver por pura inércia. E a universidade, a pesquisa, o jornalismo têm um papel absolutamente central nisso”. A autora de “Mundo do Avesso” diz que hoje procura atuar entre o reconhecimento de pontos de diagnóstico e pontos de enfrentamento às crises.
O professor Jacques Mick, que é jornalista, professor do Departamento de Sociologia da UFSC e hoje pró-reitor de Pesquisa e Inovação da UFSC, ofereceu ao público um diálogo direto com as ideias da professora Cesarino. “O mundo do avesso nos entrega uma síntese dos problemas do nosso tempo”. Assim o professor Jacques Mick iniciou sua exposição, que deve resultar na publicação de um artigo científico, assinado por ele e pela pesquisadora Luíza Tavares. As reflexões também são o início de uma proposta para atuar com hipóteses e experimentação no enfrentamento das crises das quais trata o livro e que ainda se desdobram em acontecimentos e novas formas.
A palestra-artigo começa com uma pergunta: “O que pode o jornalismo diante de um mundo do avesso?”. Ele traz uma leitura comentada dos conceitos da professora Cesarino e propostas de sistematização das ideias para possíveis saídas na atuação do jornalismo. “Sendo impossível retornar ao mundo anterior às reviravoltas do início do século XXI, o desafio passa a ser inventar, como na canção, o avesso do avesso do avesso”. Jacques propõe hipóteses para o “desenvolvimento de linguagens e práticas jornalísticas profissionais capazes de, ao mesmo tempo, reforçar a credibilidade do ofício e contrapor-se à agenda antissistêmica”. O novo projeto-laboratório liderado pelo professor Mick, o Transformajor, que reúne também outros pesquisadores e estudantes de pós-graduação, pretende propor e desenvolver estudos e produtos para testar estas novas formas de fazer jornalismo e atuar no enfrentamento dos desafios atuais.
A segunda parte do seminário do objETHOS, realizado na parte da tarde, colocou diretamente a pergunta para discutir o jornalismo e o futuro da democracia: “como cobrir governos de extrema-direita?”. Com mediação do jornalista Marco Britto, que provocou os convidados com perguntas antes de abrir para a participação da plateia, o painel contou com reflexões e relatos de experiências dos jornalistas Mateus Vargas, repórter da Folha de S.Paulo, e Kátia Brembatti, editora do Estadão Verifica e presidente da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo). Eles debateram os desafios de realizar cobertura jornalística para veículos da grande imprensa durante o governo de Jair Bolsonaro e durante as eleições de 2022.
Mateus cobre política em Brasília há 9 anos e atuou diretamente na cobertura cotidiana do presidente. Ele fez parte do grupo de repórteres que todos os dias acompanhava a entrada e a saída de Bolsonaro do Palácio da Alvorada, residência oficial dos presidentes da República, onde ele habitualmente falava à imprensa e a apoiadores, que todos os dias compareciam ao local. O que ficou conhecido como ‘cercadinho’ era um espaço reservado aos apoiadores e que os repórteres setoristas de política também frequentavam, que era delimitado por grades de contenção e cobertura para dias dias de chuva. O lugar virou ponto de encontro com o presidente e se tornou um espaço para declarações que marcaram o período e provocaram hostilidade entre público e imprensa. A ponto de veículos tomarem a decisão inédita de abandonar o espaço e não enviar mais os repórteres para cobrir aquele momento do dia a dia do presidente. “Esse momento ‘cercadinho do Bolsonaro’, que ficou meio famoso, colocou algumas reflexões e teve uma decisão coletiva dos jornais de não irem mais lá. Isso não foi à toa. Estava num grau de ataque, muito perto da gente ser fisicamente agredido”, conta Mateus.
No começo, o jornalista achava que deveria manter as idas ao portão do Palácio da Alvorada por necessidade do ofício e por se tratar da agenda do presidente, autoridade que ele era escalado pelo jornal a acompanhar. “Eu no começo defendia. É o presidente da República, tem os assuntos nacionais da agenda, vai reajustar ou não o preço da gasolina, vai cortar ou não dinheiro das universidade. Coisas objetivas. Tava ali falando disso, tinha que ter alguém acompanhando”. Além de ser mais um momento da rotina de um representante da instituição, normalmente é também a chance de obter alguma declaração sobre um tema que faz parte da pauta do momento. “Só que no final, vêm essas variáveis. Mas por que é diferente cobrir um governo de extrema direita? Entre outras coisas, porque eles usam a imprensa pra criar esse palco todo, esse circo todo, e no fim do dia ganhar a atenção e tempo de tela de quem está no Instagram, nas redes sociais”.
Mas o que foi aprendido com essa experiência de um governo de extrema-direita no Brasil e com os desafios do jornalismo em realizar essa cobertura num mundo em transformação? “Eu acho que a gente ainda tem um caminho muito grande. Algumas coisas evoluíram, outras estão muito longe de avançarem num nível que eu acho que deveriam ter avançado”, avaliou Kátia Brembatti. A presidente da Abraji comenta o exemplo da tradição de títulos com citações de falas de autoridades, muito comum nos veículos jornalísticos e uma das possibilidades ensinadas nas escolas de jornalismo para resolver títulos de reportagens. “Bem no começo lá em 2018, 2019, 2020, a frase no título vinha só com as aspas. ‘Fulano disse tal coisa’. E aquela ‘tal coisa’ era uma coisa mega absurda, até ofensiva. Os veículos de comunicação, pela prática recorrente, o ‘sempre foi feito assim’, e também pelo acirramento de ânimos, tinha uma certa dificuldade de pontuar o que aquela fala efetivamente era”.
Na avaliação da jornalista, esse recurso foi usado em excesso, baseado na tradição e como a busca de uma saída isenta para atuar em um ambiente extremado. Mas que precisou ser revista e resolvida com o contexto da fala e até um posicionamento do texto explicando o que a fala significava. “Então, se foi uma fala homofóbica, por exemplo, precisava do ‘disclaimer’, precisava do ‘Em fala homofóbica, Bolsonaro faz tal coisa’. Não pode ser só ‘Bolsonaro fala tal coisa’. Porque legitima de alguma forma aquela fala se você não faz a ponderação daquele título”. Muitos editores de veículos no Brasil e em outros países vêm experimentando outras soluções que não apenas colocar declarações entre aspas, mas essa mudança não foi imediata, segundo Kátia Brembatti, nem generalizada. “Uma das coisas que levou um tempo pra imprensa incorporar, e eu não estou dizendo que todo mundo já incorporou, foi isso. Esses são aprendizados a duras penas”.
O evento que comemorou os 16 anos do objETHOS, depois de garantir um dia inteiro de debates, relatos de experiências, reflexões, apresentações de pesquisas inéditas, teve ainda o lançamento do livro “Jornalismo e Socialização de Conhecimentos”, da jornalista Janaíne Kronbauer. A publicação da Editora Insular é resultado da pesquisa de doutorado realizada pela autora no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC, sob a orientação do professor Eduardo Meditsch. “Eu procuro estabelecer um comparativo com outras práticas de socialização de conhecimento que são realizadas pelos ambientes formais de ensino”, conta a autora.
O Seminário objETHOS 16 anos foi transmitido ao vivo pelo canal do jornalista Gilberto Del’Pozzo. Estão disponíveis os links para as gravações das duas mesas de bebates. O debate com os professores Jacques Mick e Letícia Cesarino estão neste link e fazem parte das discussões sobre “Jornalismo, democracia e liberdade de expressão: regulação das plataformas e desafios da profissão”. A gravação da mesa com os jornalistas Mateus Vargas e Kátia Brembatti pode ser vista aqui e teve o tema “O jornalismo e o futuro da democracia: como cobrir governos de extrema direita?”.
Texto publicado originalmente em objETHOS.
