Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Outro golpe, 56 anos depois da Marcha com Deus?

(Foto: Senado Federal)

A história vai se repetir mais de meio século depois? E sempre com a graça de Deus? Em 1964, eram os católicos carolas, cheirando a incenso, brandindo cartazes nos quais se liam “família com Deus pela liberdade”. Dia 15, os católicos ficarão no fim do cortejo, substituídos pelos evangélicos. As palavras de ordem mais explicitas pedem “Ditadura já” com o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Na verdade, os manifestantes farão parte de um pré-cortejo fúnebre de invocação da morte e enterro da democracia e da liberdade, em nome do mesmo Deus que já inspirou, no Brasil e no mundo, outras tantas atrocidades.

Em 1964, o Deus das massas cantado nas ladainhas e nas rezas e novenas era romano, veio com os colonizadores portugueses, participou da criação da nossa sociedade escravocrata, racista e de classes. O Deus do dia 15 de março é iconoclasta, abomina as imagens dos santos inseridos na nossa tradição e cultura. Não entende o latim, fala inglês e é mais ladino e esperto; em lugar de pregar a humildade e a resignação, exalta a prosperidade, numa espécie de Evangelho das bolsas de valores, onde os fiéis investem a fé com alguns reais e recebem abençoados juros capitalizados, visíveis para uns poucos mas utilizáveis só depois da morte no Reino dos Céus, infelizmente ainda não cartografado e de lugar incerto e ignorado.

Além do mesmismo de crentes fiéis no lugar dos devotos, da Bíblia no lugar dos missais, existem outras comparações possíveis?

Não! Em 1964, o pecado maior temido pelos sacerdotes e seus devotos detentores da riqueza eram as reformas de base. Havia o risco dos pobres deixarem de ser tão pobres e o governo era formado por homens competentes nos setores administrados em seus ministérios.
Hoje, em março de 2020, há a perspectiva de um empobrecimento maior e é sofrível e mesmo dramática a formação intelectual, cultural e mesmo humana dos ministros.

Um pouco de lembrança

Lembro-me bem da sexta-feira, 13 de março de 1964, e de ter ouvido trechos do comício do presidente João Goulart na Praça da República, no Rio de Janeiro, diante da estação Central do Brasil. Estava num ônibus da CMTC em São Paulo e alguém tinha um daqueles radinhos de pilha ligado. O ônibus lotado, eu viajando em pé.

Retornava do trabalho, na sede do Sesc na rua Doutor Vila Nova, onde era assistente da direção da Divisão de Orientação Social. Era uma época agitada e o prédio em que trabalhava estava numa posição privilegiada com relação à Faculdade de Filosofia da USP no ataque de que fora alvo por alunos da Universidade Mackenzie, extrema-direita contra alunos de esquerda.

Uma semana depois, na quinta-feira, 19 de março, era a direita conservadora católica e conservadora que se manifestava na Praça da Sé, em São Paulo. Era a Marcha da Família com Deus (sempre Deus) pela Liberdade, acusando Goulart de comunista e inimigo de Deus, pedindo sua destituição.

Deus, que deve ser um empedernido reacionário de direita, ouviu as preces de seus devotos, pois doze dias depois acontecia o golpe militar derrubando João Goulart e criando um regime discricionário com duração de 21 anos.

Mais de meio século depois, exatamente 56 anos, com outros personagens e outro roteiro, talvez o Brasil reviva no todo ou em parte a mesma história. Primeiro a manifestação do domingo, dia 15, em favor do presidente Bolsonaro, com o objetivo justificar um golpe com o fechamento das instituições democráticas.

A seguir, uma manifestação pela democracia e contra as manobras golpistas do presidente Bolsonaro, no dia 18 de março.

Haverá, depois, o sacrossanto golpe apoiado pelos pastores evangélicos, mas sem o apoio geral da imprensa, como ocorreu em 1964?

Serão fechados o Congresso e o Supremo Tribunal Federal? O Brasil se converterá no Irã cristão?

Logo saberemos.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. É criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.