Jair Bolsonaro decidiu defender a liberdade de imprensa num de seus primeiros pronunciamentos do ano. Ao inaugurar os trabalhos legislativos no Congresso Nacional no dia 2 de fevereiro de 2022 – odayá, Iemanjá! –, o presidente escolheu discursar contra uma hipotética regulação dos meios de comunicação, conclamando os parlamentares a resistir a eventuais projetos nesse sentido. “Não deixemos que qualquer um de nós ouse regular a mídia”, disse. “A liberdade de imprensa, garantida em nossa Constituição, não pode ser violada ou arranhada por quem quer que seja neste país.” [1]
A declaração foi interpretada por muitos como um recado ao ex-presidente Lula, seu mais provável oponente num eventual segundo turno, em outubro. No ano passado, Lula voltou a defender a necessidade de uma atualização na legislação que regula as atividades de mídia, inclusive a imprensa. Para o pré-candidato, regular seria uma forma de coibir abusos, reduzir a concentração e ampliar a representatividade, de modo a “democratizar” o setor. [2] Para Bolsonaro, pelo menos no discurso do dia 2, regular significa controlar, censurar, limitar a atividade jornalística.
No mesmo pronunciamento, o presidente também dirigiu um recado aos ministros do Tribunal Superior Eleitoral, empenhados em regular o uso do Telegram, um aplicativo de distribuição de mensagens amplamente utilizado pela militância bolsonarista. “Os senhores nunca me virão vir aqui neste Parlamento pedir pela regulação da mídia e da internet”, declarou. “Eu espero que isso não seja regulamentado por qualquer outro Poder. A nossa liberdade acima de tudo.” Horas depois, Bolsonaro usou o Twitter para manifestar solidariedade ao humorista norte-americano Joe Rogan, acusado de difundir desinformação e conteúdo discriminatório no programa de entrevistas The Joe Rogan Experience, transmitido exclusivamente pelo Spotify – e ouvido por 11 milhões de pessoas a cada episódio. Dias antes, Rogan fora o pivô de uma crise inédita na plataforma de streaming, quando artistas como Neil Young e Joni Mitchell anunciaram seu desembarque do Spotify, dizendo que não é tolerável dividir a mesma casa com um negacionista preconceituoso disposto a, entre outros, repetir inverdades sobre vacinas. “Se a liberdade de expressão significa alguma coisa, significa que as pessoas devem ser livres para dizer o que pensam, não importa se concordam ou discordam de nós”, escreveu o presidente do Brasil, em inglês. [3]
Dois pesos, duas medidas. Fora do Congresso Nacional ou do Twitter, Jair Bolsonaro é useiro e vezeiro em perseguir jornalistas e promover censura. Sozinho, o presidente foi responsável por uma em cada três violações à liberdade de imprensa ocorridas em 2021. Dos 430 ataques registrados ao longo do ano – recorde de casos desde o início da série histórica, em 1990 – Bolsonaro perpetrou 147, dos quais 129 foram episódios de descredibilização da imprensa e dezoito foram agressões verbais a jornalistas. Os dados estão reunidos na mais recente edição do relatório Violência contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, divulgado em 27 de janeiro pela Federação Nacional dos Jornalistas. Segundo a Fenaj, é o terceiro ano consecutivo em que o chefe de Estado desponta como o maior violador.
Também pelo terceiro ano consecutivo, o número de agressões cresce de forma exponencial. E, pela primeira vez desde 1998, episódios de censura à imprensa alcançaram o topo do ranking das violações, com 140 casos identificados, quase todos ocorridos na Empresa Brasil de Comunicação, a EBC, empresa pública de comunicação cuja diretoria é integralmente nomeada pela Presidência da República e cuja redação, conforme relatos, tem sido coagida a se alinhar cada vez mais com os interesses do Governo Federal e com o bolsonarismo. Foram, ao todo, 138 casos de censura na EBC anotados em 2021. “A continuidade das violações à liberdade de imprensa no Brasil está claramente associada à ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República”, afirmou Maria José Braga, presidente da Fenaj, em entrevista ao site Congresso em Foco.
O recrudescimento dos ataques à imprensa, sobretudo (mas não somente) pelo Poder Executivo, é um indicativo de que há muito com o que se preocupar em relação à defesa da liberdade de imprensa e à liberdade de expressão – e os ataques à regulação da mídia nem de longe deveriam ser uma prioridade. O assédio judicial a jornalistas, por exemplo, tem se convertido num perigoso e eficiente instrumento de censura à imprensa. Trata-se da proliferação de processos civis movidos contra veículos e, principalmente, contra profissionais da imprensa em suas pessoas físicas, muitas vezes de forma orquestrada. Num caso recente mais ou menos famoso, o escritor e colunista J. P. Cuenca foi processado 143 vezes por diferentes pastores da Igreja Universal após a publicação de um tuíte. Os textos das ações eram virtualmente idênticos, o que serve de indício de uma operação dirigida, uma instrução da organização religiosa ou uma campanha promovida em grupos evangélicos: seja um bom cristão, processe o colunista.
Segundo Vítor Blotta, coordenador do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade, “o Poder Judiciário tem sido demandado muitas vezes de forma sistemática para ações contrárias ao trabalho de jornalistas, o que alguns têm denominado ‘assédio judicial’, invertendo o princípio da primazia da liberdade de expressão e a proteção especial à liberdade de imprensa e informação”. [4] Listei três ocorrências deste tipo numa coluna publicada no UOL, em dezembro de 2020:
A primeira delas revelou que o site Intercept Brasil e a jornalista Schirlei Alves estão sendo processados pelo promotor Thiago Carriço de Oliveira e pelo juiz Rudson Marcos, de Santa Catarina, por terem divulgado a forma abusiva como ambos trataram a vítima Mariana Ferrer no julgamento em que absolveram o empresário André de Camargo Aranha da acusação de estupro da influenciadora digital, crime que teria ocorrido em 2018, numa boate de Florianópolis. Segundo notícia publicada pela própria Repórteres Sem Fronteira no dia 22 de dezembro, promotor e juiz pedem a retirada das reportagens do ar e indenizações por danos morais de R$ 300 mil e R$ 450 mil, respectivamente. Nas ações judiciais, os profissionais de imprensa são qualificados como “franco-atiradores travestidos de jornalistas”. […]
Um segundo caso grave de perseguição judicial como mecanismo de censura foi a condenação do jornalista investigativo Amaury Ribeiro Jr., colunista do UOL, a sete anos e dez meses de prisão por “oferecer ou prometer vantagem indevida a servidor público”, uma modalidade de corrupção prevista no Código Penal. Autor do livro A Privataria Tucana, Amaury foi condenado por supostamente ter pagado propina para obter dados fiscais sigilosos de pessoas ligadas à gestão do hoje senador José Serra (PSDB-SP) quando no governo de São Paulo, entre elas sua filha Verônica Serra e o então vice-presidente do PSDB, Eduardo Jorge. Segundo a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal e acolhida em 2013, o jornalista “aliciou” um despachante para “obter indevidamente cópias das declarações do Imposto de Renda de Veronica Serra e Alexandre Bourgeois (genro de José Serra), mediante a utilização de documento falso”. O julgamento ocorreu em 22 de dezembro. […] O jornalista alega que jamais pagaria para obter informações como aquelas e deve recorrer da decisão.
Finalmente, o também jornalista Luís Nassif veio a público na véspera do Natal revelar que seu trabalho à frente do GGN está sendo “interditado” por condenações judiciais corriqueiras e abusivas. “Estou juridicamente marcado para morrer”, afirmou. No texto publicado no portal que fundou e dirige, Nassif lista algumas das condenações que sofreu nos últimos anos e as interpreta como retaliações à forma independente com que tem criticado o judiciário brasileiro. Numa delas, o desembargador fluminense Luiz Zveiter, objeto de diversos inquéritos no Conselho Nacional de Justiça, conseguiu proibir Nassif e o GGN de publicar críticas a ele mesmo. Em condenação em primeira instância foi estipulada indenização de 100 mil reais e a obrigatoriedade de pagar imediatamente. Já o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no último dia 16 de dezembro, ordenou o sequestro dos valores mantidos por Nassif numa conta corrente e o bloqueio dos próximos depósitos que vierem a acontecer, até totalizar 50 mil reais. O motivo? Difamar o ex-deputado Eduardo Cunha, equiparando-o a sonegadores. […]
O cerco descrito pelo jornalista se estende por outros casos, que envolvem ações movidas pelo MBL e pelo governador de São Paulo João Doria. E mostra que o assédio judicial contra jornais e jornalistas precisa ser acompanhado com muita atenção por todos aqueles que prezam a liberdade de expressão e de informação no Brasil.
O efeito imediato desse tipo de assédio é a intimidação. Fragilizados por condições de trabalho cada vez mais precárias e coagidos num cenário de insegurança jurídica que promove a criminalização da imprensa – inclusive pelo presidente da República – é compreensível que jornalistas prefiram não denunciar o que deveria ser denunciado. Num país onde repórteres são sistematicamente emparedados pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário, assassinados no exercício da profissão – pelo tráfico, pelas milícias ou por matadores de aluguel a serviço de políticos e empresários escravagistas do século XXI –, e ameaçados e xingados pelo Presidente da República e seus correligionários, é fundamental fortalecer as garantias da liberdade de imprensa.
Um passo importante neste sentido foi dado em setembro: a revogação da Lei de Segurança Nacional, entulho autoritário vigente desde 1983. Anterior à abertura e à promulgação da Constituição Federal de 1988, a LSN revogada em 2021 havia sucedido outra versão da LSN, anterior a ela, sancionada em 1978, que por sua vez havia substituído uma versão anterior, e assim sucessivamente desde 1935, quando entrou em vigor a primeira lei dedicada a definir os “crimes contra a ordem pública e social”. Na ocasião, previam-se penas de seis a dez anos de prisão para quem atentasse contra a Constituição de 1934. [5] Mais tarde, durante o regime de exceção, especialmente após o Ato Institucional nº 5 (1968), que atribuiu ao presidente da República a prerrogativa de suspender os direitos políticos e de quaisquer cidadãos, a prática do jornalismo passou a constar entre os possíveis “crimes contra a ordem pública e social”. Éramos nós, os profissionais da comunicação, perigosos elementos a ser vigiados e punidos.
A vigilância recrudesceu com a edição do Decreto-Lei nº 1.077, conhecido como Decreto Leila Diniz, que instituiu a censura prévia à imprensa em janeiro de 1970, inserindo censores nas redações de imprensa e vetando, entre outros, “matérias ofensivas à moral e aos bons costumes” – uma reação verde-oliva a uma desbocada entrevista da atriz publicada pelo jornal O Pasquim em novembro do ano anterior.
Desde então, jornalistas consolidaram-se como réus rotineiros da justiça militar. Muitos foram exilados, alguns foram mortos – entre eles o chefe de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog, torturado até a morte no DOI-Codi de São Paulo em outubro de 1975 – centenas foram presos e milhares tornaram-se vítimas de censura, constrangimento e coação. Mesmo depois da Anistia de 1979, um levantamento feito pelos advogados da Comissão Justiça e Paz de São Paulo em meados de 1983 demonstrou a existência de pelo menos uma dezena de jornalistas processados com base na Lei de Segurança Nacional, entre eles Adelmo Genro Filho, por proferir um discurso na Câmara Municipal de Santa Maria (RS) com críticas ao então presidente João Figueiredo, Samuelito Capuchinho Mares, da Rádio Itatiaia de Minas Gerais, e Ricardo Lessa, então no jornal Hora do Povo. [6] Num dos episódios mais vergonhosos e menos conhecidos da repressão de toga, o jornalista Juvêncio Mazzarollo, do jornal Nosso Tempo, de Foz do Iguaçu (PR), foi preso em 1982, com base na LSN, por criticar a ditadura militar e denunciar membros das elites locais envolvidas em grilagem de terras para a construção da hidrelétrica de Itaipu. [7] Três anos após a Lei da Anistia ter, supostamente, colocado um ponto final nas prisões políticas.
Passados quase quarenta anos, a LSN voltou a ser amplamente utilizada para intimidar comunicadores no Brasil. Seis meses antes de sua revogação, o jornal O Estado de S. Paulo apurou um aumento de 285% no número de inquéritos da Polícia Federal baseados na lei num intervalo de quatro anos, comparando-se o biênio 2019-2020 ao biênio 2015-2016. Segundo reportagem publicada em março de 2021 por Marcelo Godoy e Tulio Kruse, houve um total de vinte inquéritos entre os anos de 2015 e 2016. “Já entre 2019 e 2020, foram 77 investigações”, diz a matéria. “Em relação a outras cinco categorias de inquérito pesquisadas pelo Estadão por meio da Lei de Acesso à Informação – que incluem os principais crimes contra a administração pública –, as apurações baseadas na Lei de Segurança Nacional (LSN) foram, de longe, as que registraram maior aumento”. Esse emprego aparentemente abusivo da LSN, chamada de “fóssil normativo” pelo ministro do STF Ricardo Lewandovski, foi um dos argumentos empregados para acelerar o processo que culminou na revogação da LSN.
Passados cinco meses após a referida revogação, o episódio ainda não foi de todo concluído. O desafio, agora, é estabelecer com maior clareza a regulação que entrará em seu lugar. E monitorá-la com rigor. [8] Da mesma forma que a Anistia não garantiu, por si, o pleno exercício da liberdade de expressão no Brasil a partir de 1979, a simples revogação da LSN não basta para garantir a liberdade de imprensa. Outros dispositivos, entre eles os que positivaram o direito à privacidade e os que garantem, acertadamente, as ações por calúnia, injúria ou difamação – caso do colunista J. P. Cuenca –, têm sido utilizados como instrumentos de intimidação, com o consentimento de juízes e magistrados. As estatísticas recentes de ataques à imprensa praticados pelo presidente da República servem de termômetro. E, ao mesmo tempo, podem estimular outros ataques, uma vez que funcionam como salvo conduto para a perseguição a jornalistas, uma previsão de impunidade àqueles que se somarem aos esquadrões da intimidação.
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Notas:
[1] “Bolsonaro defende liberdade de imprensa para atacar Lula e TSE no Congresso”. Folha de S.Paulo. 2 fev. 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/02/bolsonaro-defende-liberdade-de-imprensa-para-atacar-lula-e-tse-no-congresso.shtml. Acesso: 5 fev. 2022.
[2] “Lula volta a afirmar que irá regular a mídia caso seja eleito”. Folha de S.Paulo. 27 ago. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/08/lula-volta-a-afirmar-que-ira-regular-a-midia-caso-seja-eleito.shtml. Acesso: 5 fev. 2022.
[3] “Bolsonaro defende humorista americano em polêmica com Spotify”. Band. 2 fev. 2022. Disponível em: https://www.band.uol.com.br/noticias/bolsonaro-defende-humorista-americano-em-polemica-com-spotify-16477230. Acesso: 5 fev. 2022.
[4] BLOTTA, Vitor. Como as lutas pelo jornalismo profissional e pelos direitos digitais explicam os novos autoritarismos. Observatório da Imprensa, ed. 1.167, 8 dez. 2021. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/conjuntura-nacional/como-as-lutas-pelo-jornalismo-profissional-e-pelos-direitos-digitais-explicam-os-novos-autoritarismos/. Acesso: 5 fev. 2022.
[5] FIGUEIRA FILHO, Durval. Segurança Nacional: uma ideia, nascida em 1935. In: COMISSÃO JUSTIÇA E PAZ DE SÃO PAULO. Pela revogação da Lei de Segurança Nacional. São Paulo, 1982.
[6] COMISSÃO JUSTIÇA E PAZ DE SÃO PAULO. Pela revogação da Lei de Segurança Nacional. São Paulo, 1982, p. 25-26.
[7] DOTTI, René Ariel; D’ANGELIS, Wagner Rocha. O exercício político da palavra e a questão da segurança nacional: razões de recurso para o Supremo Tribunal Federal em favor do jornalista Juvêncio Mazzarollo. Curitiba: Comissão Justiça e Paz do Paraná, 1983. Disponível em: https://dotti.adv.br/Memorias007.pdf. Acesso: 5 fev. 2022.
[8] VANNUCHI, Camilo. O dia em que a Lei de Segurança Nacional foi condenada. UOL. 15 abr 2021. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/camilo-vannuchi/2021/04/15/o-dia-em-que-a-lei-de-seguranca-nacional-foi-condenada.htm. Acesso: 5 fev. 2022.
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Camilo Vannuchi é jornalista e escritor, mestre e doutor em Ciências da Comunicação e membro do Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade, filiado à Escola de Comunicações e Artes e ao Instituto de Estudos Avançados da USP.