
(Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)
A concessão do asilo político à ex-primeira-dama do Peru, Nadine Heredia, no começo da semana passada, trouxe de volta o discurso da “Lava Jato”, que reinou soberano na cena midiática e política brasileira, entre março de 2014 até o começo de junho de 2019. Usando o espaço privilegiado dos telejornais da GloboNews e de sua maior vitrine, o Jornal Nacional (JN), a jornalista e colunista Malu Gaspar (O Globo) passou o dia 18 de abril dando “entrevistas” às/aos colegas da Globo News e ao JN, na noite do mesmo dia, fez uma grave acusação:
“A gente tem que remontar ao período da eleição presidencial de 2011, em que o Ollanta Humala foi eleito presidente. O Peru era uma das principais operações da Odebrecht, onde construiu metrô, rodovias… Ele era um candidato de esquerda, próximo de Lula e da então presidente Dilma Rousseff. Como Ollanta Humala era visto como azarão nas pesquisas, Lula resolveu ajudá-lo com o envio de marqueteiros para a campanha presidencial no Peru e pediu para que a construtora enviasse dinheiro para o financiamento da campanha” (com grifos nossos).
A acusação foi refutada, de imediato pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República: “Não procede a informação de que o presidente Lula teria pedido à Odebrecht para repassar dinheiro para a campanha de Humala, conforme se pode depreender dos debates estabelecidos sobre o assunto no âmbito do próprio STF. E que não deve o governo brasileiro, evidentemente, reinaugurar um tema que já foi correta e adequadamente superado por nosso sistema de Justiça” (com grifos nossos).
Em sua coluna no jornal O Globo, Malu confessa que “as cenas relatadas” não foram publicadas até então. A pergunta é uma só: por que razão a publicação neste momento? Ela jura que esteve no Peru, apurando in loco, suas fontes são off, credita tudo aos registros de e-mails da Odebrecht, não apresenta nenhum documento, áudio, vídeo ou mensagens de WhatsApp que fosse prova cabal do envolvimento do então ex-presidente Lula, em 2011, no esquema que envolveu a empreiteira e os políticos peruanos.
No entanto, a condenação a 15 anos de prisão, em primeira instância, por crime eleitoral, de Nadine e seu marido Ollanta Humala, ex-presidente do Peru (2011-2016) foi a “deixa” para a imprensa, que foi ponta de lança no esquema político da extinta “Força Tarefa” da Lava Jato, requentar um “factóide político”, com o qual volta a acusar o presidente Lula. A tentativa de ressurreição do conluio entre imprensa, judiciário e forças políticas conservadoras que ora atuam na cena latino-americana com mais presença e visibilidade, é algo bastante plausível vista a fragilidade da acusação. Quase no limite da profissão de fé, a colunista de O Globo assegura que “todas essas ações foram citadas em depoimentos de delação premiada na Operação Lava Jato, após o acordo de leniência da empresa”. No total, a Odebrecht financiou ilegalmente as eleições naquele país com a monta de US$ 29 milhões – sendo US$ 3 milhões apenas para a campanha de Humala, em 2011.
Mídia de extrema-direita em sintonia
Ato contínuo à publicação da coluna de Malu Gaspar – “’Quem manda é ela’ : Como o destino de Nadine Heredia e Ollanta Humala se enredou com o da Odebrecht no Peru”, as destacadas mídias da extrema-direita na internet, Revista Oeste e O Antagonista repercutiram o texto de opinião de Gaspar, enviesando mais ainda para focar tão somente na acusação: foi Lula quem comandou o esquema de financiamento ilegal da campanha de Humala, em 2011, usando a Odebrecht. Aliás, que poder: determinar que uma organização do porte da empreiteira “doasse” US$ 3 milhões para a campanha de Ollanto Humala à presidência do Peru.
O jornalista Felipe Moura Brasil abre assim sua coluna em O Antagonista: “Se pudesse escolher, Barata não daria nenhum peso peruano à candidatura. Só estava ali por ordem de Marcelo Odebrecht, que por sua vez atendia a um pedido dele mesmo: Lula, confirma Gaspar” . Por sua vez, Thiago Vieira publicou na Revista Oeste um texto que já partia da acusação mais geral no título: “Marcelo Odebrecht relacionou corrupção no Peru a Lula e ao PT”. E faz a ligação direta entre os dois fatos, sem o menor pudor: “O empresário Marcelo Odebrecht, dono da Novonor (antigo Grupo Odebrecht) relacionou, em 2017, a corrupção no Peru ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao Partido dos Trabalhadores. O caso voltou ao noticiário depois de o petista conceder, na última terça-feira (15/04), asilo diplomático a ex-primeira dama peruana Nadine Heredia” .
Nos dois veículos, como de praxe quando se trata de espalhar desinformação, fake news, calúnias e ou meias-verdades, pouco importam os fatos e provas objetivas que envolvem uma acusação desse nível. Ao acusado, neste caso o presidente Lula, o ônus de provar que é inocente, numa perversa inversão do direito constitucional à presunção de inocência. Ou seja, o legítimo “padrão Lava Jato” de cobertura.
O legado nocivo da Lava Jato
Passados quase seis anos do começo do fim da operação, a partir da divulgação dos documentos pela “Vaza Jato”, liderada pelo jornalista Leandro Demori, à época trabalhando no site jornalístico The Intercept Brasil, apurando com grandes veículos da imprensa brasileira, desmontou um esquema de uma organização criminosa comandada pelo juiz Sérgio Moro, com participação ativa da imprensa tradicional – lideradas pelos grupos Globo, Folha e Estadão.
Moro que seria ministro da Justiça do governo Bolsonaro, e depois, eleito senador pelo Paraná, montara um esquema de corrupção política, em parceria com o Ministério Público Federal – à frente, Deltan Dallagnol, o procurador que seria eleito deputado federal, depois cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral – e em conluio ativo e, praticamente, unânime entre os principais veículos jornalísticos do país. Como observador da cena política brasileira, é possível afirmar que o principal legado do esquema comandado pelo ex-juiz Sérgio Moro foi desconstruir a democracia no país, a legitimidade dos agentes políticos e da política como arte dos fazeres coletivos em sociedade, considerando a diversidade como algo natural. Por mais de meia década, a sociedade brasileira foi inundada por imagens como esta, relacionando os agentes políticos à corrupção, indistintamente.
A corrupção da opinião pública e a desconstrução da democracia criaram o caldo de cultura para que um “messias” da extrema-direita se apresentasse como solução divina, em 2018, exibindo velho mantra fascista: “Deus, Pátria e Família”. O resto é história, que ora se repete como tragédia ou como farsa anunciada. A colunista Malu Gaspar tenta, em plena semana pascal, fazer o milagre da ressurreição da Lava Jato, colocando outra vez como alvo da denúncia política o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Aparentemente a denúncia ganhou como eco um silêncio ensurdecedor por parte dos principais veículos da imprensa brasileira. A ver os desdobramentos do caso Nadine Heredia.
Publicado originalmente em objETHOS.
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Samuel Pantoja Lima é professor e pesquisador do Departamento de Jornalismo da UFSC e do objETHOS