Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Deus abandonou os evangélicos

(Foto: Sajinka2/ Pixabay)

Não foi falta de avisar. A partir do escândalo de corrupção envolvendo três pastores, vendendo licitações de verbas do Ministério da Educação e da decorrente demissão do ministro Milton Ribeiro, podem anotar, vai começar a queda da importância dos evangélicos na política brasileira.

Não se trata de profecia, praga ou mau agouro. Não! É uma conclusão lógica, matemática, tão segura como dois mais dois são quatro. Vamos demonstrar com o rigor exigido pelos próprios evangélicos, utilizando os mesmos instrumentos com os quais conseguiram, nestes últimos anos, crescer dos minguados 8 ou 9% aos atuais 30-35% com os quais elegeram o presidente da República.

Até o dia 21 de março, todas as pesquisas e previsões sobre o crescimento dos evangélicos no Brasil davam conta de que eles ultrapassariam os 50% e deixariam para trás os católicos nos próximos dez anos. Politicamente, ocupam um terço do Congresso, têm quatro ministros e estão espalhados pela máquina governamental. Sem interrupção nesse crescimento, o número de eleitores evangélicos poderia levar a uma maioria nas câmaras municipais, estaduais, no Senado e no STF.

A decorrência, segundo as tendências atuais, seria a de uma modificação no conteúdo dos programas didáticos das escolas. A adoção, por exemplo, da teoria do criacionismo no curso primário levaria a um estrangulamento do desenvolvimento da ciência no país. O castigo nas crianças como forma de educação, a condenação legal do homossexualismo, considerado uma falha educacional dos pais em relação aos filhos, como pensava o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro, levariam o Brasil a um retrocesso fundamentalista, capaz de asfixiar toda nossa cultura, arte, cinema e literatura.

Um interessante estudo, publicado há cinco anos pela Unicamp, fazia algumas comparações entre religiosos e não religiosos no Brasil e chegava a algumas conclusões interessantes. Embora sendo o menor segmento, menos de quatro milhões de pessoas, os espíritas formam um grupo de pessoas com mais idade, melhor renda e melhor escolarização, enquanto os evangélicos são o grupo mais pobre e menos escolarizado. Por sua vez, os ateus e sem religião formam um grupo importante de cerca de 14 milhões de pessoas dentro da população.

Ou seja, fatores como a formação escolar, a formação cultural, a situação econômica (de precária à confortável), são variáveis que podem influir na questão da opção religiosa. De uma maneira geral, pode-se dizer que pobreza e falta de cultura podem reforçar a necessidade de se recorrer a crenças religiosas básicas, simples, cujo forte são reuniões em grandes grupos, expressões ou palavras simples a se repetir, acompanhadas de gestos que podem levar a tipos de transes coletivos, e lideranças fortes, pastores que gritam contra o pecado e ameaçam os pecadores.

O reforço cultural nas escolas primárias e secundárias, sem vínculos religiosos, o acesso ao ensino superior para todos, a liberdade de criação artística sem limites morais e religiosos, a presença de livros em todos os lares e não de um só livro, como ocorre nos países europeus, recolocará o Brasil no caminho que vinha trilhando. A partir desse momento, se acentuará a atual perda de credibilidade dos evangélicos, destinados também a perderem gradativamente o número de seus fiéis, na proporção do aumento da média de renda salarial da população.

A atual perda de credibilidade dos pastores evangélicos, uns por corrupção, outros por serem contra a democracia e defenderem golpes, violência e tortura, segundo a trilogia “Deus, Pátria e Família” nazifascista, fará com que nas próximas eleições muitos desses pastores não sejam reeleitos. O fim da dinastia Bolsonaro retirará do aparelho governamental os representantes do reacionarismo religioso e acabará com o retrocesso vivido nestes três anos e meio pelo Brasil.

Mas podemos também utilizar os próprios argumentos bíblicos evangélicos para mostrar porque os seus pastores e seus políticos, a maioria se revelando corrupta, golpista e reacionária, perderam a proteção divina. Por exemplo, a mercantilização das igrejas evangélicas lembra um trecho da Bíblia: “Tendo Jesus entrado no pátio do templo, expulsou todos os que ali estavam comprando e vendendo; também tombou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos comerciantes de pombas. E repreendeu-os: “Está escrito: ‘A minha casa será chamada casa de oração’; vós, ao contrário, estais fazendo dela um ‘covil de salteadores’”. … Mateus 21:12,13.

O bezerro de ouro – Então o Senhor disse a Moisés: “Depressa! Desce imediatamente, porque o teu povo que trouxe do Egito está a corromper-se; 8 desviou-se e rapidamente abandonou as minhas leis. Fizeram para si um bezerro. Estão a prestar-lhe culto e a sacrificar-lhe dizendo: ‘Aqui tens os teus deuses, ó Israel, que te fizeram sair do Egito!’” Êxodo 32: 7

O uso constante e indevido da invocação divina – Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus, pois o Senhor não deixará impune quem tomar o seu nome em vão. Êxodo 20: 7

De retorno à sua igreja em Santos, Jardim de Oração, herdeira dos presbiterianos do pastor Boanerges Ribeiro, outro fundamentalista, o pastor Milton Ribeiro terá provavelmente o sentimento de ter sido traído, não só por Bolsonaro, que não colocou o rosto no fogo por ele, muito menos a mão, mas traído por seus próprios “irmãos” pastores como Marcos Feliciano, Silas Malafaia, pois sentiam “estar virando o vento contra os evangélicos” e começaram a “temer a ira divina” depois de tantos abusos cometidos.

Marco Feliciano enviou até mesmo um twitter a Milton, compelindo-o a se transformar no Cristo bolsonarista, sacrificando-se para salvar seus colegas pastores pecadores: “Peço, por favor, se licencie até o término das investigações porque nós evangélicos estamos sangrando”, escreveu Feliciano.

Silas Malafaia, que age como o sacerdote protetor de Bolsonaro, não teve nenhuma clemência com seu “irmão” Milton Ribeiro – “Vergonha total”. Tem de ser demitido para nunca mais voltar!”

Líder da bancada evangélica, o deputado Sóstenes Cavalcante criticou os dois pastores que agiam com Milton Ribeiro, e mais conciliador que Malafaia e Feliciano, pediu investigações sobre o caso.

Todos eles sentiam que Deus abandonou os evangélicos, decepcionado com suas condutas, sangrando o governo Bolsonaro em ano eleitoral. Vem aí uma onda de perda de credibilidade e de descrença nos homens da Bíblia. E Milton Ribeiro, um tanto ingênuo na sua defesa em casa de lobos, já deve ter percebido ter sido um mero peão nas mãos de uns e outros. Um boneco na mão não queimada do ventríloquo Bolsonaro, que poderá ter um processo civil e, com a perda de imunidades, ser condenado à pena de prisão.

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.