Wednesday, 15 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

A grande reportagem e Os Sertões

EUCLIDES, REPÓRTER

Sebastião Jorge (*)

O livro Os Sertões de Euclides da Cunha (1866-1909), considerado um clássico da literatura, de todos os tempos, não é apenas uma obra de mérito irretocável, como representa um marco no jornalismo brasileiro. O tema explorado se constitui na primeira e grande reportagem publicada num jornal. O conteúdo revela momentos comoventes da guerra de Canudos, no interior da Bahia.

A reportagem como a conhecemos hoje é produto do final do século 19 e quem a introduziu na imprensa brasileiro foi o carioca Paulo Barreto, o "João do Rio". Assumindo uma nova postura jornalística, saia às ruas para colher informações e fazer entrevistas sobre variados assuntos. Antes o que predominava era a opinião em detrimento da notícia.

A reportagem em profundidade, a um passo do que se veio a chamar de jornalismo interpretativo, quem tomou a iniciativa de torná-la objeto de trabalho das redações foi Euclides da Cunha. Antes de o assunto ser transformado em livro, o que se deu em 1902, o assunto ocupou espaço no jornal O Estado de S.Paulo.

A narrativa, impecável pelo português castiço, se aproxima, para uns, da linguagem barroca, para outros, de um estilo que se destaca pela extraordinária capacidade de clareza, precisão e poesia. Chega em certos momentos a ser monótona pela preocupação com os detalhes e variedade de palavras desconhecidas. A minha certeza é só uma: o autor dá um banho de cultura, com demonstração de um saber enciclopédico.

Para ler aquela obra-prima, principalmente o começo, quando descreve minuciosamente tudo o que olha, como a terra, o homem, os ares, o planalto central, é preciso disposição, prazer e ampla familiaridade com o vocabulário. Há quem se deixando contaminar pela monotonia, recomende passar as primeiras páginas, indo direto ao assunto, o que não é recomendável. Vale conhecer a alma do nordestino através de assuntos como: o vaqueiro, o sertanejo, o jagunço, as tradições e, sem esquecer, claro, Antonio Conselheiro, o beato responsável pelo conflito.

Euclides escreveu de modo surpreendente os lances épicos da guerra travada em circunstâncias dramáticas para ambos os lados, o exército e os apaniguados de Canudos. O final não poderia ser diferente: cruel pelo massacre dos vencidos pela força do governo. Entre as vítimas havia crianças, velhos e mulheres. O engenheiro Euclides da Cunha, jornalista e correspondente de guerra e ex-oficial do exército transformou todos esses episódios numa epopéia, ou na "mais bela das coberturas jornalísticas", no dizer de Olímpio de Souza Andrade.

O material publicado pelo jornal, que lhe custou três meses em campo, acompanhando o movimento, foi utilizado no livro Os Sertões, que em dezembro próximo, completa cem anos da primeira edição.

Crítica à imprensa

O que impressiona na obra é a visão do autor sobre o Brasil. Acreditando na ciência, traçou um perfil da identidade nacional. Criticou intelectuais e jornalistas que se reuniam na rua do Ouvidor, na antiga capital federal, para torcer pela vitória do governo, incentivando de algum modo, o massacre contra pobres sertanejos, filhos de um mesmo Brasil, injusto e preconceituoso.

Euclides, que nasceu em Cantagalo, no Rio de Janeiro, condenou esse tipo de comportamento, ao recriminar os jornais por distorcerem os fatos, e os intelectuais pela postura dúbia e nada fazerem. O que desejava era integrar o homem do Nordeste com o resto do Brasil, esperando que o governo olhasse para aquela região.

José Veríssimo, um crítico literário sério, se rendeu a obra, com este elogio: "É o livro de um homem de ciência, um geólogo, um etnógrafo, um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador, e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver e descrever". Só isto bastaria à consagração, mas, para completar, o seco, sisudo e implacável polemista Sílvio Romero, que desancou Machado de Assis, condenando o seu "humorismo de almanaque", disse: "Euclides da Cunha deitou-se obscuro e acordou célebre".

Para o jornalista, particularmente, em qualquer estágio da profissão, eis um livro indispensável, como elemento de cultura e exemplo do que seja uma grande reportagem. O experiente jornalista Augusto Nunes (do Jornal do Brasil) observou a propósito: "Ainda não completou a sua alfabetização o jornalista jejuno de Euclides". Oportunas tais palavras, quando sabemos que está em baixa, de uma maneira geral, tanto a reportagem em profundidade, como a investigativa.

(*) Professor universitário, jornalista, advogado e escritor.