Thursday, 16 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Carol Knoploch

ENTREVISTA / GALVÃO BUENO

“O dono da bola”, copyright O Estado de S. Paulo, 13/10/02

“Além do cansativo e tradicional caminho a ser percorrido para marcar uma entrevista com famosos, esse encontro com Galvão Bueno, ocorrido em São Paulo, teve uma condição combinada previamente. Letícia, sua filha e responsável pela agenda do principal narrador da maior emissora de TV do Brasil, alertou: ?Ele não responderá nada sobre salário.? E, mesmo com a advertência, o assunto foi abordado no final de um longo bate-papo. ?Tenho uma cláusula contratual que me impede de falar sobre esse assunto?, explicou Galvão, de 52 anos, que tem duas casas: no Rio e em Londrina, com duas adegas – tomar vinho é um de seus hobbies, além do golfe – ?jogo bem mal? -, charutos, roupas e carros. Após um chute (cerca de R$ 320 mil por mês), ele respondeu: ?Bateu na trave… Faltou força.?

Galvão, que também se arrisca na cozinha – ?Fritar ovo e bater bife não me dá prazer. Gosto de cozinhar principalmente frutos do mar? -, não revela para que time torce. ?Nem sob tortura. Sou carioca. E não falo mais nada.?

Explica que é por respeito ao telespectador. ?Também é legal manter o suspense.? Na verdade, completa ele, não ?me entusiasmo mais pelo time do coração. Me empolgo com o jogo. Já fui são-paulino, corintiano, gremista…?

Muitos, no entanto, o consideram flamenguista.

Desse jeito, bem descontraído, Galvão conversou com a reportagem do Estado.

Disse que muita vezes se considera chato. Define-se como um ?vendedor de emoções? e admite que é um torcedor-narrador. ?Torço mesmo, e daí?? Galvão, que tem mais 4,5 anos de contrato com a Rede Globo, é movido a adrenalina.

Confessa ser um piloto frustrado e sonha em narrar vitórias internacionais dos filhos Cacá e Popó nas pistas.

Estado – Qual foi seu primeiro grande evento de futebol?

Galvão – Na Copa de 1974 trabalhava em um pool entre Record, Bandeirantes e Gazeta (Cibratel). Fazia a narração dos videoteipes que passavam à noite. Em 1978 fiz do local, na Argentina.

Estado – E Fórmula 1?

Galvão – Comecei na Rádio Gazeta. F-1 é paixão. Sou piloto frustrado. Em 1977 fiz minha primeira transmissão na TV Bandeirantes. E a primeira temporada completa foi em 1980. A Globo não estava mais interessada no evento. O Émerson Fittipaldi estava na dúvida se parava ou não, o Nelson Piquet não tinha surgido direito, e a Bandeirantes pegou ?emprestado? a F-1. Como o Piquet foi o vice-campeão da temporada e rolou todo aquele sucesso, a Globo resolveu mostrar de novo a F-1 e me levou junto.

Estado – Como você se define?

Galvão – Sou um vendedor de emoções.

Estado – O que o emociona mais?

Galvão – Nada é mais empolgante do que um jogo de basquete. Mas a transmissão mais difícil é da F-1. Quando saio com a convicção de que fiz um bom trabalho na F-1, fico mais gratificado que nunca.

Estado – Você se emocionou mais no tetra do que no pentacampeonato do futebol?

Galvão – Aquela cena é ridícula porque é histérica. Foi o Pelé que me agarrou no pescoço na comemoração do tetra. Morro de vergonha cada vez que revejo. Em 1994, foram 90 minutos 0 a 0. Mais 30 minutos 0 a 0. Os pênaltis… O coração estava batendo no lugar da amígdala. Aí aquele berro: ?acabou! É tetra!? No Japão foi diferente. O time do Brasil era muito melhor que o da Alemanha. Foi ganhando o jogo à medida que o tempo foi passando.

Estado – O narrador tem de ser torcedor também?

Galvão – O esporte é basicamente emoção. Então, meu papel é falar sobre a técnica, a tática, o confronto de inteligência mas também vender essa emoção. É por isso que o esporte mobiliza um país, pára um país. É por isso que enlouquece as pessoas, que existe a rivalidade entre os torcedores.

Estado – Qual é o limite?

Galvão – É completamente diferente transmitir Corinthians x Palmeiras e Brasil x Alemanha. Vou torcer para quem? É evidente que torço para o Brasil. O telespectador também está angustiado, também torce para o Brasil, grita de forma tão histérica como eu, mas tem uma vantagem: pode xingar. Eu torço mesmo, e daí? Claro que tenho limites, que é o compromisso com a verdade. Existem pessoas que me dão retorno durante as transmissões. Não estou ali sozinho. Recebo alguns toques.

Estado – Você é narrador e comentarista? Mal deixa o Reginaldo Leme falar…

Galvão – Faço comentários sim, mas tento me policiar.

Estado – Sente-se amado e odiado?

Galvão – Sou polêmico. Ou gostam muito ou detestam. Mas a proporção dos que gostam é bem maior. Estou lá há 20 anos… imagina, sempre eu falando. É normal.

Estado – E as manifestações ofensivas?

Galvão – São 2% das manifestações. Nunca de crianças e de idosos. Tenho uma ótima relação com eles.

Estado – Você se acha chato?

Galvão – Muitas vezes. Sou exigente e perfeccionista. Às vezes passo do ponto. Mas a maior cobrança é comigo mesmo. Se sou chato para mim mesmo, imagina para o torcedor.

Estado – Como você lida com as críticas?

Galvão – Eu me descabelava. Hoje, não ligo. Evidente que tem gente imbecil e idiota. Escreveram recentemente, quando meu filho Cacá ganhou a corrida da Stock Car do Rio e que eu narrava, que tudo estava combinado porque era Dia dos Pais. Aí é maldade e me incomoda.

Estado – O que aprendeu com as críticas?

Galvão – Que não se deve criar desculpas para justificar erros. Sou um ser humano, tenho o direito de errar. Falo ao vivo, tô na pilha e erro. Me corrijo na maior cara-de-pau. Às vezes, dou até risada.

Estado – Qual é a maior dificuldade do seu trabalho? E o mais gratificante?

Galvão – O mais legal é que eu faço o que gosto. O mais difícil é continuar competitivo. A cada cinco minutos, falam no meu ouvido como está a audiência. E, cada vez que sobe o ibope, sobe a minha adrenalina. Quanto mais agitado eu estiver, melhor vou trabalhar. Dizem que sempre arrumo discussão antes de entrar no ar para dar uma pilhada.

Estado – Pensa em registrar suas famosas frases?

Galvão – Não criei chavões.

Estado – Criou, sim.

Galvão – Tudo o que disse foi espontâneo. ?Bem amigos da Rede Globo? é o seguinte: 90% das minhas transmissões são fora do Brasil. Falo boa tarde para o Brasil, ou bom dia para as pessoas do lugar que estou? Boa noite ou boa tarde? Um dia, na dúvida, falei ?bem? e ficou. Até já sei outra frase que você vai falar: ?sai que é sua Tafarel!?. Mas o desgraçado não saía do gol… O legal é que ensinaram isso para o papagaio que o Tafarel tinha.

Estado – Saudades do Ayrton?

Galvão – Digo que não fui amigo dele. Sou amigo. Ele continua presente para todos nós como exemplo. Tivemos uma relação especial, que misturou o profissional, amizade e admiração. Foram 12 anos.

Estado – Por causa dessa amizade você não se dá bem com o Piquet?

Galvão – Não. O Piquet foi um gênio na pista, mas às vezes dá umas trombadas no que fala. Acho maldade o que diz do Rubinho, por exemplo. Jurei que nunca mais falaria do Piquet. Respeito o que representou para o automobilismo. Às vezes, como diz o Kajuru, ele não liga o cérebro. Aciona a boca.

Estado – Conte algumas gafes.

Galvão – São tantas… Teve o ?eu sabia!?, quando o Senna deixou o Berger vencer o GP do Japão em 1991. Ele freou bem em cima da linha de chegada e o Berger passou. Eu mandei o ?eu sabia!?, mas queria dizer que imaginava que o Senna poderia fazer aquilo. Mas gafe mesmo foi em 1982, quando transmiti o GP da África do Sul. Na época não havia pit stop e vi o Prost parar para trocar um pneu furado. Da cabine, não tinha uma visão muito boa. Quando ele voltou para a pista, pensei que estava recuperando a volta em cima do Reutemann. Mas, na verdade, tinha o ultrapassado e assumido a liderança. Ele venceu e eu disse que o campeão tinha sido o Reutemann. Era só minha estréia na Globo…

Estado – E a da Copa de 1974?

Galvão – Foi na época do pool. Fazíamos o jogo gravado, um locutor de cada emissora. Eu, pela Gazeta. Nos disseram que o jogo seria entre Iugoslávia e Austrália. O time todo de branco virou a Iugoslávia e o outro, a Austrália. De repente, mostram o placar: Alemanha Oriental 0 x 0 Austrália. Fazer o quê? Não falei nada no ar e mudei totalmente a narração: ?lá vai a Alemanha…?

Estado – Fale do vôlei de praia em Sydney?

Galvão – Essa foi ótima, mas tenho com quem dividir: com o repórter João Pedro Paes Leme. Tinha um mostrador na quadra que marcava a velocidade do saque e achamos que fosse a velocidade do vento. Ventava muito, mas que vento maluco era aquele! Mudava toda hora (risos).

Estado – Qual o seu sonho?

Galvão – Me encantou transmitir corridas do meu filho Cacá. Ele é competente demais. O Popó também. Teve uma carreira belíssima. Foi campeão brasileiro de Fórmula Chevrolet, em 2000, mas acabou sofrendo um acidente sério, em Monza, em 2001, na Renault, que prejudicou sua carreira. Quem sabe poderei transmitir uma conquista internacional dos dois?

Estado – Até quando vai o seu contrato com a Globo?

Galvão – Tenho mais 4,5 anos. Talvez essa seja uma má notícia para quem não gosta de mim. Mas espero que seja mais.

Estado – Como é a sua rotina?

Galvão – Moro em Londrina há dois anos. A princípio combinei com a Desirée (sua mulher) que ficaríamos um pouco em Londrina, um pouco no Rio e um pouco no mundo. Me apaixonei por Londrina. Em Porecatu, bem pertinho, tenho uma fazenda com touros de raça, cavalos quarto-de-milha. Faço sucesso com o que gosto, ganho razoavelmente bem… Sou pai, avô e pai-avô. E Deus me deu a chance de ser mais feliz: me deu um segundo casamento, com a Desirée. Assim surgiu o Luca, de 1 ano e meio.”

 

TV REGIONAL

“TV regional: o limite do certo”, copyright Jornal do Brasil, 15/10/02

“Está para ser votado nos próximos dias um projeto da deputada Jandira Feghali que obriga todas as estações de TV do país a produzir um mínimo de 30% de programação no local onde elas estão instaladas. O projeto tramita na Câmara há 11 anos. Até agora não foi adiante porque as redes de TV insistem na sua inviabilidade, já que a maior parte das emissoras locais não tem essa capacidade de produção – e o desfaturamento das redes as colocaria em posição mais delicada do que aquela em que já se encontram. Alegam que o projeto está cheio de erros, o primeiro dos quais partir de uma falsa impressão da realidade da televisão brasileira.

As redes de TV estão certas. O problema é que a deputada está mais certa ainda.

Centenas de emissoras (para não falar de algumas cabeças de rede) não têm mesmo essa capacidade de produção – o que só atesta a leviandade com que as concessões foram distribuídas ao longo de vários governos. No entanto, o estímulo à regionalização da produção televisiva faz parte do texto constitucional (está no artigo 221). Mesmo que não fizesse, representa um compromisso mínimo das emissoras com a mão-de-obra local, a preservação das culturas regionais e, conseqüentemente, da identidade brasileira.

Isso é bem mais importante do que os problemas circunstanciais que impedem que emissoras de pequeno porte possam produzir parte de sua própria programação – e de faturar para financiá-la. O modelo de televisão brasileiro nos acostumou a uma situação que pode ser tudo, menos natural. O espectador começa a inferir que a mediocridade é uma característica inerente à televisão, quando de fato programas tão agressivamente ruins resultam simplesmente da terra arrasada em que se tornou a produção de conteúdo na maioria das redes de TV.

Da mesma forma, o espectador é induzido a crer que a organização de TV em redes signifique que Rio e São Paulo tenham o privilégio de produzir tudo o que o resto do país vá ver. Em nenhum outro lugar do mundo é assim. Nem mesmo nos EUA, onde são mais fortes as redes comerciais abertas – e onde a programação local responde por mais de 50% do tempo de cada emissora.

A ?ïntegração nacional? promovida nos anos 60 pela consolidação das redes de TV teve o custo do esfacelamento da produção regional. Isto se deu graças a uma conceituação muito particular do papel das afiliadas e retransmissoras. Em muitos casos, elas se viram reduzidas a meros escritórios comerciais para a venda de publicidade local.

Os efeitos foram devastadores. Grande parte da sociedade brasileira acredita que manter padrões de comportamento importados do Sudeste é condição necessária para se integrar ao meio. Muitos telejornais locais são conduzidos por apresentadores que se esmeram em parecer paulistas, não importa de onde sejam. Dramaturgia regional é vista com discreto desprezo – porque cearense bom é a leitura que do Ceará fazem os intérpretes do Sul.

Há mecanismos para que a dignidade das culturas regionais possa ser restituída à TV. Um deles está na formulação de novas políticas de distribuição de sinais de TV por assinatura, que encorajem a formação de redes locais. Outro está na regulamentação imediata do artigo 221, com o aprimoramento das propostas para isso. O projeto da deputada Jandira tem mesmo várias incorreções. Mas nenhuma é tão grande quanto a manutenção da mordaça que se impôs à pluralidade da expressão cultural brasileira.”