Monday, 16 de September de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1305

Clóvis Rossi

LULA PRESIDENTE

“Lula, o caleidoscópio e o vento”, copyright Folha de S. Paulo, 31/10/02

“Vista de longe, a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva é uma espécie de caleidoscópio. Cada um a vê de acordo com seus interesses, seus medos, suas esperanças.

Na Colômbia, por exemplo, a influente revista ?Cambio? tascou na capa ?Lios en el vecindário?, com as bandeiras de Brasil, Venezuela e Equador. Tradução: a eleição de Lula, a presença de Hugo Chávez na Venezuela e o franco favoritismo no Equador do general da reserva Lucio Gutiérrez (esquerdista como os outros dois) traria problemas (?lios?) na vizinhança da Colômbia (como se ela já não os tivesse em cachos).

Já no Equador, o jornal ?Hoy?, no editorial de capa ontem, vê Lula como solução, não como problema. Sua vitória seria ?um argumento contra os ideólogos extremistas da luta armada ou do apoio aos golpes militares e inclusive de uma suposta ?quarta via? representada pela rebelião da sociedade civil?.

Ou seja, tudo o que os adversários de Gutiérrez acreditam que ela represente teria sido derrotado por Lula no Brasil.

Já o líder dos plantadores de coca da Bolívia, Evo Morales, vê na vitória de Lula a derrota da Alca (a Área de Livre Comércio das Américas).

?Usemos a palavra de Lula: se o Brasil não entra (na Alca), a América Latina também não?, diz Morales, segundo colocado na recente eleição presidencial boliviana.

Não estou certo de que Lula tenha de fato dito algo parecido, mas não importa. Importa como foi lido.

Ángel Maza, líder estudantil equatoriano, vai mais longe no ?revolucionarismo? com que enxerga o caleidoscópio. Acha que Lula dirá não à Alca, mas também não ao pagamento da dívida externa. ?Se o fizer, vamos respaldá-lo?, diz Ángel, presidente do Conselho Nacional de Estudantes Universitários, sob um ?banner? que o velho Lula subscreveria: ?Vamos, jovens, que hoje o povo espera novos ventos de liberdade?.

Para onde soprarão os ventos do PT e de Lula?”

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“A educação do presidente”, copyright Folha de S. Paulo, 30/10/02

“Horácio Verbitsky, notável jornalista argentino, escreveu faz tempo um livro chamado ?La Educación Presidencial?.

Conta, na essência, como presidentes da República podem ser cercados, cooptados e ?educados? pelo que os argentinos gostam de chamar de ?poderes fácticos? (quem realmente manda) até ficarem completamente desossados.

É óbvio que é muito cedo para se suspeitar que Luiz Inácio Lula da Silva venha a se tornar vítima dessa mesma máquina de moer políticos. Mas o primeiro indício preocupante já está dado, na forma como o presidente eleito se submeteu, desde domingo, à Rede Globo de Televisão.

A Globo repetiu com ele a babação de ovo que já fizera com Tancredo Neves, Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, para citar apenas os mais recentes. Até aí, faz parte, primeiro, do instinto básico da rede e, segundo, de seu marketing.

O problema começa quando Lula se rende a um e a outro. Não faz o menor sentido quem se proclama ?presidente de todos os brasileiros? não ser também ?presidente de todas as emissoras de televisão?.

Já nem menciono jornal, porque entendo que TV seja o veículo preferencial do marketing de um político, qualquer que seja o político.

Desconfio que haja, nessa exclusividade para a Globo, uma falha grave de entendimento da função: presidentes da República, eleitos ou no exercício do cargo, devem satisfações ao público em geral, não apenas ao público da rede que evita perguntas que não sejam bolas levantadas para a cabeçada do entrevistado.

Espero que a opção preferencial pela Globo, desde a eleição, seja apenas deslumbramento com a bajulação inerente ao poder recém-adquirido. Seria trágico se já fosse a primeira aula do curso de ?educación presidencial?. Sabe-se como terminam os presidentes que a Globo bajula quando se elegem.”

“As origens humildes do novo presidente”, copyright Folha de S. Paulo, 31/10/02

“Nos últimos dias, li ou escutei não sei quantas vezes que Luiz Inácio Lula da Silva é um ex-metalúrgico, um ex-operário e um ex-retirante pernambucano.

Dependendo das circunstâncias, essas expressões têm sentidos diversos: simpatia, admiração, condescendência paternalista, suficiência, desprezo. Seja como for, o lembrete manifesta, no mínimo, o seguinte: é uma surpresa absoluta que um homem dessa extração tenha chegado à Presidência. A origem humilde de Lula tornou-se uma notícia: para alguns, um espanto; para outros, um valor e a promessa de um futuro diferente.

A surpresa não deveria ser tamanha. Afinal, funciona, há um certo tempo, um quadro democrático formal. E, contrariamente à opinião frequentemente recebida, o Brasil é um país com acelerada mobilidade social. Por que um operário não chegaria à suprema magistratura do país?

O verdadeiro mistério é o estranhamento de todos, inclusive do novo presidente, que se comove com a lembrança de suas origens. Em suma, é óbvio que chegar à Presidência saindo de um berço humilde constitui um mérito extraordinário, mas a surpresa que todos manifestam ressoa como algo mais do que o reconhecimento da façanha de Lula. O caminho percorrido pelo novo presidente surpreende não apenas como uma espetacular ascensão social mas como se representasse uma transgressão da ordem das castas. Fala-se de Lula metalúrgico e retirante como, numa sociedade tradicional, poderia ser celebrada (ou execrada) a chegada de um pária ao poder.

Quando Bill Clinton foi eleito presidente dos Estados Unidos, houve, na imprensa americana, artigos lembrando suas origens pobres e desastradas (o pai que morreu antes de ele nascer, as dificuldades e a coragem da mãe para criá-lo, o padrasto alcoólatra e abusador). Era claro que ele não pertencia nem de longe ao clube do ?establishment? americano. Isso era uma surpresa desagradável para alguns e agradável para outros, mas não foi nunca uma manchete, embora o fato fosse pouco banal (a mobilidade social nos EUA de hoje não é maior do que a brasileira). Não houve títulos anunciando: ?Filho adotivo de alcoólatra abusador chega à Presidência?. Para que, nos Estados Unidos, a imprensa e a rua fossem levadas a lembrar constantemente as origens de um presidente, ele deveria ser negro ou mulher. Aí, sim, seria repetidamente conclamado que foram eleitos, enfim, o primeiro negro ou a primeira mulher presidentes.

Com Lula acontece isto: suas origens sociais são evocadas não para lembrar uma diferença que, no Brasil moderno, é difícil, mas possível, percorrer. Elas parecem ser evocadas para lembrar um fosso que, normalmente, é proibido atravessar.

Apesar do verniz de modernidade e da efetiva mobilidade, as diferenças sociais, no Brasil, são vividas como diferenças essenciais, mais parecidas com distâncias qualitativas (raciais e racistas, por exemplo) do que com as disparidades econômicas que, na modernidade, deveriam ser a forma principal, se não única, de diferença social.

Lula, numa outra democracia, seria apresentado como um líder sindical e político que foi eleito presidente. No Brasil, ele é apresentado como operário e retirante: sua chegada à Presidência constitui um alvoroço, porque ?operário? e ?retirante? parecem designar espécies distintas. É como se Spartacus, o escravo, se tornasse imperador em Roma.

Nesse quadro, como entender o apoio que as elites mais conservadoras deram à candidatura de Lula? Nesta eleição, houve uma grande novidade: quebrou-se a aliança, que durava desde o fim da ditadura, entre as forças da modernização social-democrata e as forças ligadas à manutenção das formas mais arcaicas do poder.

Durante séculos, as elites antigas e escravocratas inventaram e aperfeiçoaram um erotismo do poder especificamente nacional, feito de condescendência e posse dos corpos, de brutalidade e paternalismo. Protegendo seu gozo, elas receavam e receiam tanto a insurreição dos explorados quanto a modernidade que transforma os escravos em trabalhadores e, aos poucos, promove uma sociedade de classes médias.

Parece que, depois de oito anos de FHC, essas elites tradicionais acharam que, para o estilo de domínio que elas preferem, a social-democracia talvez fosse mais ameaçadora do que a reivindicação e a rebelião popular. Afinal, devem ter pensado, a revolta dos escravos a gente conhece, ela faz parte da ordinária administração: sempre pode ser reprimida (ao estilo de Canudos) ou enrolada na condescendência, quem sabe em nome de um nacionalismo pretensamente comum. Elas apostaram, ao que parece, que o povo revoltado seria um aliado, temporariamente, contra a modernidade e, com isso, lhes prolongaria a sobrevida.

É certo que elas não encontrarão em Lula a complacência esperada. Outra coisa também é certa: para que o mundo inventado e curtido pelas elites tradicionais mude, será bom que reconvirjam as forças dos que desejam que isso aconteça -forças que, nestas eleições, se separaram.”

“Sete horas de ilusão”, copyright Tribuna da Imprensa, 30/10/02

“Foi o tempo registrado entre a conclusão de um pronunciamento de estadista e o encerramento de uma apresentação como garoto-propaganda da maior rede nacional de televisão. Durou pouco a ilusão a respeito do futuro.

Às 14:30h de segunda-feira, o País inteiro saudou o primeiro discurso feito por Luiz Inácio da Silva como presidente eleito.

Mais do que isso, respiraram todos, do empresariado à militância, dos conservadores aos progressistas, porque o novo presidente conseguiu compor as variadas promessas feitas na campanha.

Mostrou-se preparado para a dificílima tarefa de cumprir os acordos internacionais, manter a responsabilidade fiscal e prosseguir no férreo combate à inflação, a par com a rejeição ampla e irrestrita do modelo econômico e social do governo FHC e do clamor por uma nova ordem econômica internacional que não seja injusta nem excludente.

Lula não pode privilegiar Globo

Chamado pela primeira vez de S. Exa. pelo próprio porta-voz, o presidente eleito apresentou-se firme, confiante no que falava e até com excelente humor, transmitindo à população aquela segurança de que duvidavam seus adversários.

O diabo é que às 21:30h daquela noite, ao terminar o ?Jornal nacional?, restou uma impressão estupefata em quantos assistiram à inexplicável superexposição do presidente-eleito transformado em coadjuvante de um conglomerado comunicativo que, coincidência ou não, anunciava no mesmo dia a impossibilidade de saldar suas dívidas, propondo-se a renegociá-las.

Nada a se opor às suas sucessivas aparições como candidato nas telinhas da rede televisiva mais assistida do País. O mercado impõe essas preferências, quando se trata de atingir o maior número de pessoas, visando a ganhar a eleição.

Um presidente, no entanto, está proibido de privilegiar empresas de comunicação, em especial quando, horas antes, diante de 300 jornalistas do Brasil e do mundo, preferiu não responder a perguntas. Deve tratar igualmente a todos, reservando-se até o direito de convocar cadeias nacionais de rádio e televisão para atingir de uma só vez a totalidade da audiência.

O pior, no entanto, é que S. Exa. prestou-se ao papel de auxiliar de um jovem casal de jornalistas, iludido com a efêmera popularidade que a televisão dá e retira com a volubilidade do vento. Aqui e ali, perguntas apresentadas com excepcional subserviência, entre caretas e sorrisos com a marca de pedidos de desculpa pelos questionamentos em entrevistas dos tempos da campanha, alguns até grosseiros.

Não dá para explicar de que maneira o presidente eleito submeteu-se a um sucedâneo dos jurássicos programas tipo ?Esta é a sua vida?, de décadas passadas. A partir do primeiro bloco do ?Jornal nacional?, ficou visível o constrangimento do convidado especial, mas naquela hora não dava mais para recuar.

Faltou assessoria de comunicação a Lula

Uma evidência transparece do singular espetáculo que não poderia ter sido encenado horas depois de um pronunciamento digno de igualar-se aos que fizeram no passado Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e outros: faltou ao presidente eleito a mínima assessoria de comunicação social. Alguém que, liberto da euforia da vitória na véspera, ponderasse sobre as conseqüências de uma presença em tudo e por tudo extemporânea, dispensável e perigosa.

A pergunta que pelo menos a metade do País se fazia, ao término da triste encenação, era sobre a próxima aparição de S. Exa.: será no Faustão ou na Xuxa? Ou estará condenado ao calvário de repetir a performance nos concorrentes, para não desagradá-los tanto? Por que não no Ratinho, no Leão, no Lobo e companheiros da fauna televisiva? Como terão reagido o Boris, o Hermano, a Mônica e tantos outros?

Importa repetir, a estrutura de comunicação social do presidente eleito precisa passar por amplíssima revolução. Não há como aceitar a justificativa de que ?a ordem veio de cima?. Importa menos se foi Lula quem cedeu aos apelos da maior rede nacional de televisão, temeroso de maus tratos futuros.

Tanto faz se a inspiração partiu de José Dirceu, Duda Mendonça, Aloisio Mercadante ou qualquer outros dos caciques da campanha. A verdade é que um presidente não pode expor-se da forma como Lula se expôs, principalmente depois de transmudado em S. Exa. Deitou um balde de água fria nas ilusões de boa parte dos mais de 50 milhões que votaram nele.

Pelo menos, que a má experiência possa valer como alerta, de agora em diante. Que durante o seu mandato decida-se de forma exclusiva por entrevistas coletivas marcadas periodicamente com toda pompa e circunstância ditadas pelo cargo. Ainda mais quando, pela lei, os meios eletrônicos de comunicação são concessões do serviço público, podendo ser requisitados pelos três poderes, sempre que necessário..”