Saturday, 11 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Conto do vigário chega por e-mail

FRAUDE NIGERIANA

Marinilda Carvalho

Este artigo tinha por finalidade mostrar que existe algum humor no spam, mesmo sendo a maior praga da internet: os e-mails enviados por nigerianos "muy generosos", que oferecem milhões de dólares em troca de "pequena taxa" ? que você lhes deve antecipar, claro. Um hilário conto do vigário internacional direto na sua caixa postal. Mas uma rápida pesquisa na rede mostrou que para muita gente o assunto nada tem de engraçado. Pelo contrário, é tão grave que vem mobilizando governos de países como Estados Unidos, Canadá, França, Inglaterra, Suécia, Noruega, Holanda, Espanha, Japão, além da própria Nigéria e de outros países africanos.

Todos eles promovem campanhas de conscientização, alertando o público sobre o golpe. O Banco Central da Nigéria ? PIB em 2001 de R$ 362 bilhões; o do Brasil, R$ 1,184 trilhão ? publica anúncios de esclarecimento em veículos importantes mundo afora (o último foi na Economist), mas, como há sempre otários dispostos a ganhar dinheiro fácil, muita gente cai nesse conto do vigário, com contas bancárias esvaziadas e propriedades, transferidas.

O golpe começou em 1989, em forma de carta postada em correio normal: os mais velhos já ouvimos falar na "fraude nigeriana". Mas quem imaginaria que ela ainda fizesse estragos em 2002? É que os golpistas acompanharam o progresso da tecnologia. Passaram a usar o fax e agora recorrem ao e-mail. Até 1996 ? quando o fax iniciava seu declínio ?, o prejuízo chegou a US$ 5 bilhões em todo o mundo. Com o e-mail, os danos são incalculáveis. Só nos Estados Unidos custariam US$ 1 milhão por dia a americanos ingênuos (e gananciosos).

Como se sabe, conto do vigário só funciona, na esquina aqui perto ou lá na grande rede, se Seu Golpe conquistar Dona Ganância. A velha farsa nigeriana, também conhecida como Fraude da Taxa Adiantada ou Golpe 419 ? número do artigo que trata de estelionato no Código Penal da Nigéria ?, na Europa atende pelo nome de Conexão Nigeriana. Na Nigéria é simplesmente "419", como o brasileiríssimo "171". É intrigante que a grande imprensa de informática não se ocupe do assunto ? como as mídias americana, italiana, sueca, norueguesa, francesa ?, já que as caixas postais do Brasil estão abarrotadas destes e-mails há quase um ano. E não é por falta de matéria alheia para chupar. Em junho, a coluna do veterano Roger Ebert na PC Magazine tratou do assunto ? a bem da verdade, com humor. "Uma peculiaridade é que todas as mensagens são diferentes", disse ele. "Mês após mês, os golpistas nigerianos parecem ter batalhões de digitadores escrevendo novos textos a cada dia."

Ebert destacou os elementos comuns a essas diferentes mensagens: "1) ELES NÃO PARECEM CONHECER A CAIXA BAIXA. A maioria das mensagens é escrita em maiúsculas." Bem, das 12 mensagens recebidas em agosto pelo Observatório, apenas três estavam em maiúsculas, as do advogado Abdulkarimi A. Brume, do engenheiro Joseph Coco, "diretor de Recursos Minerais & Naturais do Ministério de Mineração e Recursos Minerais da República da África do Sul, em Pretória", e da viúva de Mobuto Sese Seko [falecido ditador da República Democrática do Congo, ex-Zaire, capital Kinshasa]. Provavelmente há digitadores distintos para cada hemisfério…

E mais: "2) A carta sempre vem de um alto funcionário do governo ou de um seu irmão ou primo." Nas "nossas" cartas, além dos altos funcionários, também comparecem filhos ou viúvas de líderes e seus advogados. "3) O funcionário deseja contrabandear vários milhões de dólares, bloqueados na Nigéria, para fora do país." De uns seis meses para cá as mensagens sugerem que a grana está presa em Angola, no Benin, no Zimbábue, na República Democrática do Congo, na África do Sul. Assim como de tecnologia, os golpistas estão mudando de ares… Outra semelhança: "4) Eles buscam um parceiro no exterior que lhes permita transferir a soma bloqueada." Que varia. Um e-mail menciona US$ 152 milhões a serem repartidos com o otário, o de Charles Oriaku, "auditor-geral de uma companhia de petróleo acreditada junto a um governo aqui na África". Pode? É impressionante que alguém acredite numa história dessas. "5) Se você autoriza a transferência para sua conta bancária, você pode levar 20% do dinheiro (o percentual varia). 6) Obviamente, pela natureza do negócio, tudo é confidencial e top secret."

Ebert propões que todo usuário de e-mail jure a si mesmo jamais abrir mensagens sobre dinheiro fácil ou pornografia, o que eliminaria 90% das tentações e dos perigos diários do spam. "Restaria somente o dilema de ajudar ou não criancinhas com câncer, cujo último desejo no leito de morte ? receber um cartão postal de cada habitante do planeta ? prejudicaria apenas os correios dos Estados Unidos", tripudia ele.

Na lista de discussão do site francês Cybercafe21 <www.cybercafe21.net>, o usuário Didier Schokkaert postou em 27/6 a seguinte mensagem: "Acabo de receber mail de Edward Mobutu, filho caçula de Mobutu Sese Seko. Ele pede gentilmente minha ajuda porque, bem, ele tem um pequeno problema: as contas na Suíça e nos EUA de seu falecido pai estão bloqueadas, e há uma quantia depositada secretamente numa companhia de seguros na qual ele não pode mexer. Então, pede que eu pegue este dinheirinho para ele, uns US$ 25 milhões. Qual é a dessa gente? Será que pensam que alguém vai acreditar neles?"

Didier é um internauta de bom senso. A carta de "Edward Mobuto" tem um trecho "criativo", que Didier não menciona: "Presumo que o senhor esteja a par da disputa financeira entre minha família e o atual governo, baseada na crença de que meu pai fez um governo mau e corrupto. Que sua alma descanse em paz." Chorumela perfeita para convencer americano "caridoso". Em 2/8, um site britânico de finanças <www.complianceonline.co.uk/> também fez ironia. "Fraude nigeriana revelada: Compliance Online declinou afável oferecimento da Nigéria para investimentos num golpe de pagamento antecipado. Como essas fraudes são muito faladas, mas nem todos viram uma carta nigeriana, aqui está uma cópia que recebemos de Godfrey Iselese".


"Prezado senhor,

Sou presidente do Comitê de Revisão de Contratos da Agência Nacional de Energia Elétrica (Nepa). Embora esta proposta possa surpreendê-lo, por partir de alguém que o senhor não conhece, após deliberação com colegas decidi contatá-lo. Estamos solicitando seu modesto e sigiloso socorro para que custodie US$ 18 milhões. Esta soma consta como contas a pagar, em banco estrangeiro, no Banco Central da Nigéria. É uma cobrança superfaturada e não-reclamada, que pode facilmente ser paga por meu comitê. Para isso, o senhor seria apresentado como contratante devedor da Nepa, que executaria a fatura.

Proposta de divisão (%):

1. 70% para mim e meus colegas.

2. 20% para o senhor, como nosso parceiro.

3. 10% para despesas, que podem ser divididas entre ambas as partes durante a transação.

Nossa lei proíbe que funcionários públicos operem contas no exterior. Por isso estamos contatando o senhor. Se esta proposta lhe interessar, responda o mais brevemente possível, com as seguintes informações:

1. O nome que o senhor deseja usar como beneficiário do fundo.

2. Seu telefone e fax confidenciais.

As discussões futuras serão centradas em como o fundo será transferido e nos detalhes de execução desta grande oportunidade para nós todos. Obrigado e Deus o abençoe. Saudações, Godfrey Isesele"


História absurda? Pois americanos e japoneses, principalmente, caem direto. Nos Estados Unidos, este 171 nigeriano é responsável por 15% das queixas de golpes pela internet ? o terceiro lugar! ?, afirma levantamento da Central de Reclamações contra Fraudes na Internet, do FBI. Os golpistas começaram procurando homens de negócio, mas ampliaram o público-alvo: gente de classe média, de meia idade, profissionais liberais. E funcionários de igrejas variadas, atraídos pela promessa de "grandes doações de caridade".

O site Crimes of Persuasion <www.crimes-of-persuasion.com> assim descreve o golpe: "As cartas enfatizam o sentido de ?urgência? e ?confidencialidade?. Podem conter erros gramaticais, o que provoca um sentimento de superioridade intelectual, de compaixão e de segurança quanto à origem. Eles dizem que seu nome foi recomendado, ou que uma investigação sobre você revelou sua honestidade e perspicácia. Eles alegam ser funcionários do governo, ou da realeza nigeriana, ou um íntimo do poder: ?o filho do presidente da Nigéria?, um ?príncipe nigeriano?, a mulher, o ajudante, o confidente de um ?líder deposto?", diz o texto do site.

O problema começa quando, acreditando que não custa nada verificar, o cidadão, ainda que cético, responde ao e-mail ou telefona para o número indicado. Ele fala com o autor do e-mail, que o faz prometer que tudo ficará em segredo, porque corre risco de demissão e prisão. Então você dá seu nome, seu endereço, seu fax. Logo chegarão documentos com cara de autênticos, exibindo o timbre "verdadeiro" do Banco Central da Nigéria ou da empresa estatal de petróleo, e dos advogados que tratarão do caso. Eles então pedem que você assine vários papéis, fichas bancárias etc.. Há dezenas de golpes menores dados com essas assinaturas: conseguem visto na Embaixada Americana para emigrar para os EUA, usam em cartas de recomendação para negócios fraudulentos ou em cheques falsificados, que passam em vários países. O nome do otário fica imundo em praças de dois ou três continentes.

Depois, pedem o número de sua conta. E o incrível é que as pessoas dão mesmo o número. Otários mais gananciosos abrem contas novas, planejando ficar com o dinheiro todo, em vez de um percentual. Mas o grande golpe começa quando eles enviam ao otário comprovante de depósito de, digamos, US$ 85 mil (no exemplo do site Crimes of Persuasion), provando que já depositaram a parte deles das despesas. Cabe ao otário acrescentar apenas o restante: pelo exemplo, cerca de US$ 4 mil. Com essa primeira remessa os golpistas sabem que "pegaram o otário". Então vem o golpe propriamente dito: os advogados, devido a dificuldades no Banco Central da Nigéria, querem honorários de, digamos, US$ 189 mil. O otário estrila imediatamente. O golpista volta a ligar, dizendo que conseguiu baixar o valor para US$ 100 mil. Como o idiota ainda reluta, o sujeito argumenta que então venderá a própria casa, coitadinho, conseguindo assim mais US$ 25 mil. Ao otário só caberiam US$ 75 mil. Ele paga alegremente, "pensando no iate que em breve poderá comprar", diz o texto.

Mas logo surge outro problema: o presidente do banco quer propina. Depois vêm outras taxas e subornos. O otário vai pagando, porque a cada cobrança o golpista jura que é a última antes da transferência dos milhões. O incauto pode até ser convidado a encontrar seus "parceiros" na Nigéria: não poucos foram levados a visitar prédios do governo, e conversaram sobre o golpe com legítimos funcionários nigerianos! Em janeiro de 2001, o vice-presidente do Banco Central da Nigéria, M. R. Rasheed, foi acusado num tribunal federal americano de perjúrio e falso testemunho sobre seu envolvimento direto numa dessas fraudes.

Mas algo sempre acontece na hora do pagamento, até o otário finalmente descobrir que foi enganado. Na tentativa de reaver o dinheiro, alguns acabaram mortos em vielas de Lagos. Portanto, se você receber algum e-mail parecido, delete. "Eles inventam estranhos nomes, tribais ou religiosos, como Mike Ajasin Ikoku", diz o site Crimes of Persuasion. "Outros são variações de nomes de funcionários reais de bancos ou ministérios. Por exemplo, os nomes do ex-presidente Nelson Mandela e do ex-ministro sul-africano das Finanças Trevor Manual constavam de mensagem enviada a Joanesburgo." O Observatório recebeu e-mail de um certo Bola Ahmed. Pois o governador do estado nigeriano de Lagos se chama Bola Ahmed Tinubu. Tem gente que cai.

Alguns codinomes da gangue (há centenas de outros, todos interligados, segundo rastreamento de IP feito por autoridades):


Sakomdi Kengo, coronel Cyprian Amala, Ali Abacá, Davis Masinga, Edward Mobutu, Dr. Justin Kunene, Benjamin Mobuta, Ben Kasi, Dr. Francis Fregere, Dr. Chakaodza Tendayi , Sosmas Ebosie, Dr. Ibraham Uba, Mrs. Abamari Koromah, Mr. Roland Muluzu Tambo, Brother (irmão) James Aisa Duke, Moshood Seko Mobotu, Raymond Kamara, John Pujeh, John Sam Mbewa, Mrs. Maureen Korumgba, Mark Williams and Sister (e irmã), Mariel Uzor, Mr. Tuke Nelson, Benjamin Timor Nyaree, Prince (príncipe) Dada, Mr. Bode Thomas, Francis Eze, Mr. Obi Aku, Ibrahim Uba, Lady Maryan Abacha Abacha, Ali Beko, Mrs. Cedia Estrada, Cecilia Mark Aku, Hajia Mariam Abacha, Barrister (advogado) Ebehi Okhande, Bob Williams, Mark Nestor, Musa Lamido, Munirat Abacha, Moshood Seko, Eric Manuel Johnson, Lilian Joseph, Greg Nyere, Eng Ahmed Ibrahim, Joseph Edwards, Franklin Numa, David Udata, Eng. Edward Savimba, Eng. Peter Usman, George Koffi, Josephine Kobe, Dr. Zink Maxwell, Dr. Ben Kasi, Tony Chime, Lavent Mpeti, Sandra Savimbi, Edward Mobutu, Godfrey Isesele, Ifeanyi Daniels, Eng. Joseph Coco, Barrister Abdulkarimi A. Brume, Austin Matuba, Michael Iduamba (que informa até o suporto número de seu telefone: +31 619028538).


Para ver todos os nomes: <www.crimes-of-persuasion.com/Nigerian/names_K-R.htm>. Aliás, todo o site merece visita, porque aborda contos variados do vigário. Para finalmente rir um pouco vale passar pelo site Scam O Rama <www.scamorama.com>, sítio nigeriano que apresenta todos os e-mails dos "Rapazes de Lagos" (Lads of Lagos) de abril de 2001 a junho de 2002 e rastreiam seu trajeto. Também exibe páginas que zombam dos golpistas. Seu slogan: "Subscreva! Parte dos lucros vai para uma causa justa ? não para os rapazes!"