Wednesday, 15 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Empecilhos ao direito de cobrar

JORNALISMO NO PARÁ

Lúcio Flávio Pinto (*)

Exerci profissionalmente o jornalismo durante 19 dos 21 anos do regime militar (1964-1985). Nesse período, todas as garantias individuais e os direitos elementares da pessoa estavam sujeitos a violação, inclusive a liberdade de imprensa, principalmente por parte do Estado, que se comportava ora como um Leviatã ora como um Behemoth. Mas fui levado às barras dos tribunais apenas uma vez, em 1976. Como editor de um suplemento que editava em O Liberal (o Encarte), dei duas páginas sobre a violência da polícia na busca e recaptura de presos fugidos. As fotos, de espancamento e baleamento, eram chocantes. O texto, de Paulo Ronaldo Albuquerque, duro.

Impressionado, como todos os leitores, o governador Aloysio Chaves mandou instaurar inquérito para apurar os fatos. Aplaudimos a iniciativa, própria de um cultor do direito. Chamado a depor no IPM, fui ao batalhão da Polícia Militar como testemunha. Saí de lá como réu. Outros jornalistas haviam dito em seus depoimentos que aqueles flagrantes de agressão eram falsos. As fotos teriam sido montadas.

O presidente do IPM me ofereceu uma possibilidade de fuga: bastava incriminar o Paulo Ronaldo, figura sempre visada pela polícia (não exatamente por seus erros). "Queremos acertar as contas", me confidenciou o capitão, depois coronel e secretário de Segurança Pública. Mas eu publicara aquelas fotos e editara o texto porque eram a pura verdade: os presos iam ser torturados na ilha de Cotijuba; como fugiram durante a travessia da baía, na lancha Marta da Conceição, apanharam depois. O militar me olhou desapontado, esperou alguns segundos e depois, com um ar de sem-jeito, ouviu-me.

Em seguida fui chamado à sede da Polícia Federal, que funcionava na travessa Castelo Branco. Ali fui palmilhado e fotografado. Estava enquadrado na famigerada Lei de Segurança Nacional. A acusação: insuflara a população contra uma instituição pública, a polícia. Era um subversivo. Apenas Paulo Ronaldo e eu havíamos sido despejados do pólo da inocência para o da culpa. Todos os demais, por confessar o delito de manipulação, foram liberados do constrangimento.

O processo não chegou a esquentar na Auditoria Militar. Foi logo desqualificado e remetido para a Justiça comum. Por um motivo óbvio: não havíamos ameaçado a segurança nacional. No fórum criminal de Belém, o processo acabou arquivado. O promotor (depois desembargador) disse em seu parecer que eu merecia uma medalha por minha coragem, não uma punição.

E foi só, ao menos na via judicial. Houve outras amea&cceccedil;as físicas e intimidações, além de numerosos constrangimentos a que os jornalistas eram levados quando cobriam certos acontecimentos. Mas nem mesmo no auge de polêmicas acesas meus contendores, inclusive os dotados de muito poder (como o multiministro Jarbas Passarinho), sequer cogitaram de me acionar na Justiça. Sou grato até hoje a esses oponentes por tomarem nossas divergências a partir de uma premissa: de que sou um profissional suficientemente sério para não escrever sobre o que desconheço e para não colocar o boi da privacidade diante do carro do interesse público.

Pérola da democracia

Continuo a ser jornalista nestes quase 18 anos de democracia plena que estamos vivendo, imaculada do ponto de vista formal (ou potencial), com outra coloração da perspectiva essencial (o que diz muito sobre a imaturidade da democracia à brasileira ou sobre essa forma de organização política da sociedade humana, enquanto tese em si). Mas nos últimos 11 anos respondi (e continuo a responder) a 15 processos judiciais, 13 dos quais permanecem ativos, dois deles porque os magistrados se declaram suspeitos imotivadamente ou postergam o desfecho de casos já prescritos (um outro é natimorto, mas se mantém por emulação do poder da sua autora).

São seis os autores dessas ações: Rosângela Maiorana Kzan (5 processos), Cecílio do Rego Almeida (3 processos), desembargador (recentemente aposentado) João Alberto Paiva (2), desembargadora Maria do Céu Cabral Duarte (2), madeireiro Wandeir dos Reis Costa (2) e prefeito Edmilson Rodrigues (1). Dois dos autores são empresários, outros dois desembargadores, um é comerciante e o outro é político. São 12 ações criminais, todas alegando delito de imprensa (com base na triste Lei de Imprensa do regime militar, de 1967, que subsiste ao pleno restabelecimento democrático constitucional, velho de 15 anos), e três ações cíveis (duas de indenização por dano moral e uma para me impor silêncio eterno a respeito da autora).

Nenhuma das pessoas que me acionou na Justiça exerceu o direito de resposta. Essa característica se contrapõe ao que elas são, todas personalidades públicas, com maior ou menor destaque. Reagindo a artigos publicados no Jornal Pessoal, editado sob minha responsabilidade, nenhuma delas foi atacada em sua vida privada. Todas as análises inquinadas de criminosas abordaram temas do mais relevante interesse público. Das 13 ações que tramitam atualmente pelo fórum de Belém, 9 se referem à grilagem das terras e devastação das florestas do Xingu.

Em nenhuma dessas matérias jornalísticas as personagens foram acusadas de serem criminosas ou ofendidas com adjetivos. Os textos são substantivos: a partir do estudo de caso e da interpretação dos fatos, As personagens são criticadas porque seus atos violam a lei e/ou ameaçam o patrimônio da coletividade. Nenhum dos textos constitui libelo ou possui tom editorializado. Quando se manifestam, as opiniões se sustentam em argumentos demonstrativos. Logo, para serem contraditadas, requerem igual demonstração.

A isso, em qualquer lugar civilizado do planeta, dá-se o nome de diálogo. A pérola da democracia é a controvérsia, que elucida as questões e ilumina os caminhos da sociedade. No Pará, esse procedimento tem sido carimbado de criminoso nas instâncias judiciais do estado. Por suas decisões majoritárias, ao menos no que a mim concerne, a Justiça do Pará impôs uma lei ? não escrita, é claro ? da mordaça à imprensa. Ou, ao menos, à imprensa que tem a coragem de proclamar a verdade incômoda aos poderosos.

Registros fraudulentos

Em fevereiro último, a juíza da 16? Vara Penal, privativa dos crimes de imprensa, me condenou a um ano de prisão, pena convertida em duas cestas básicas, de um salário mínimo cada, durante seis meses, em função da minha primariedade. Meu crime: ter criticado decisão do desembargador João Alberto Paiva, na liminar de uma cautelar, que restabeleceu a plenitude dos efeitos de um registro imobiliário feito no cartório de Altamira. Por ato do juiz de primeiro grau, à margem desse registro seria averbada a existência de uma ação de anulação e cancelamento dessa matrícula, proposta na comarca pelo Iterpa (Instituto de Terras do Pará).

A providência, deferida pelo juiz Torquato de Alencar, antecipava a tutela para que terceiros de boa fé soubessem que a dominialidade da área estava sendo questionada pelo órgão fundiário oficial do Estado. Se a adquirissem, deixariam de ter direito à boa fé e, em conseqüência, a eventuais indenizações, caso a justiça acabasse decidindo em favor do Iterpa.

Qual o prejuízo para o detentor do registro? Nenhum, exceto se ele tivesse propósitos especulativos sobre a área. Como alardeava que a utilizaria para um projeto ecológico, nada o obstava de realizar seus intentos. A medida acautelatória se justificava pelo fato de que a área podia se estender por algum valor entre 5 milhões e 7 milhões de hectares. Essa vastíssima extensão de terras, que daria para formar o 21? maior estado da Federação brasileira, composta por 27 unidades, tinha todos os indícios, fortíssimos, de jamais haver sido desmembrada do patrimônio público.

Evidências nesse sentido já haviam sido reunidas e apresentadas por todas as instâncias do poder público, federal e estadual, da Polícia Federal ao Ibama, do Ministério Público Federal à Funai, quando o desembargador João Alberto, liminarmente, revogou a tutela antecipada pelo juiz de Altamira. E o fez com fundamento num pressuposto: de que aquela área era inquestionavelmente de propriedade privada. Só depois de decidir, submeteu seu ato ao Ministério Público, que divergiu de sua posição.

Não escrevi que o magistrado agiu com intenções ocultas ou que favoreceu deliberadamente a Incenxil (atrás da qual está o empresário Cecílio do Rego Almeida). Escrevi que errou. Fiz a afirmativa preparado para sustentá-la diante da opinião pública, como estou preparado até hoje. Mas não estava preparado para ser advertido de que criticar juiz é crime (e de lesa-majestade) na órbita da Justiça paraense. Pensei que a verdadeira democracia tivesse chegado aqui ? e não apenas grileiros, desmatadores, salteadores e cavalos de Tróia.

Lamentei que o desembargador não explorasse as possibilidades do contraditório antes de decidir, ouvindo antes ? e não depois ? o Ministério Público, por exemplo. Não disse que a lei o obrigava a essa consulta prévia. Disse que o bom senso lhe recomendava a cautela, considerada pelo povo tão boa quanto o caldo de galinha. Lamentei que o juiz, obnubilado pelas lantejoulas probatórias dos autos, deixasse de olhar em torno, ouvindo o clamor das ruas, conforme o chavão de uns anos atrás, nas quais se destacavam as vozes das instituições técnicas do governo, unânimes e uníssonas em denunciar a grilagem montada por trás dos registros imobiliários fraudulentos (com toda a cornucópia de papéis, carimbados ou não, que lhe dão na aparência o que não têm na substância). Se ouvisse esse clamor o magistrado não poderia proclamar que aquelas terras de vastidão continental são inquestionavelmente de propriedade particular.

Letra de forma

Estou eu, então, hoje, condenado como um reles difamador por dizer a verdade, impedido de poder prová-la diante da instância que devia ser o árbitro das pessoas públicas envolvidas em temas de interesse público: a sociedade, ou, tecnicamente falando, a opinião pública. É também de lamentar que um servidor público, ignorando quem lhe paga o salário (e, agora, a alta aposentadoria), parta diretamente para o silêncio dos autos sem antes prestar contas ao distinto público sobre a controvérsia suscitada pela imprensa.

Infelizmente, demandas temerárias, descabidas ou imotivadas não só estão sendo acolhidas como levam a condenações que parecem tomadas sem considerar as provas nos autos, como se o destino de jornalistas incômodos já estivesse escrito no céu. Talvez por isso a desembargadora Maria do Céu Cabral Duarte tenha decidido me processar por ter repetido o que ela própria escreveu em uma outra polêmica decisão sobre o Xingu, transformando palavras que eram suas em minhas e agravando-as com o sentido alegadamente denotativo das aspas, que apliquei ao meu texto, cumprindo a norma gramatical, ao reproduzir afirmativa originalmente dela.

Não escrevo este texto para pedir ajuda, clemência ou comiseração. Não considero justo o que estão fazendo comigo, mas sei me defender ? e me defenderei. Sem vergar um milímetro a coluna da minha dignidade e sem me deixar intimidar. Escrevo para colocar meus leitores diante de fatos que, incidentalmente me prejudicando, na verdade prejudicam a toda a sociedade, estigmatizando o Pará com a nódoa do banimento daquilo que é vital entre seres humanos: a liberdade de pensar, o direito de expressar o que se pensou e a necessária faculdade de colocar esses pensamentos em letra de forma. Para que todos saibam e o que mais sabe possa fazer o que sabe, ao invés de ficarmos simplesmente sujeitos ao que pode mais, ao dono da bola.

No Jornal Pessoal, enquanto ele conseguir sobreviver, o único jogo aceito é o da verdade.

(*) Editor do Jornal Pessoal, de Belém (PA)