Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"Há mais ?culpados? do que quem atire a primeira pedra…", copyright Jornal de Notícias, 17/11/02

"É um daqueles lugares-comuns sem idade dizer que ?notícia é o homem que morde o cão?. No fundo, trata-se da consagraç&aatilde;o do insólito como fulcro de atracção do interesse geral — numa análise necessariamente apressada, incompleta e não aprofundada. Mas é verdade que a inversão da normalidade concentra o interesse da maior parte das pessoas e, por delegação implícita, dos jornalistas.

É aqui que a singeleza se esbate num sem número de preocupações, que nascem na necessidade de saber ?quem é o homem? e ?de quem é o cão?, e que acabam por desaguar, muitas vezes, não na análise da relação causa-consequências, mas tão somente no efeito da novidade sobre um público que, também ele, frequentemente, vai consumi-la sob a forma de uma catarse subconsciente.

É isso que explica a voracidade acerca de notícias em que um político que destila moralidade em todos os seus discursos aparece como suspeito de desvios, como por exemplo o suborno passivo ou a fuga ao fisco. É essa exteriorização emocional de traumatismos muitas vezes ignorados que explica alguns excessos informativos sobre polícias que, afinal, podem ser ladrões, traficantes de drogas ou chantagistas.

Há uma avidez profissional que leva ao consumismo do fácil, do imediato, sem preocupações ético-deontológicas, sem uma análise prospectiva (e como tal valorativa) sobre as consequências individuais e sociais daquilo que muitas vezes não passa de um indício e que se transforma em notícia.

Frequentemente ? e o Provedor já lançou nesta página alguns alertas ? os casos, emoldurados no sensacionalismo e reforçados pela confidência e pelo sussurro, são oferta empenhada de quem procura dividendos que vão do ?homicídio político? à promoção profissional, fontes de águas turvas que negarão três vezes não a origem da notícia mas a própria notícia, e que se apressam a encabeçar o movimento de indignação contra o jornalista de quem se serviram!

Sobre este tema, aliás, debruçou-se, há duas semanas, em editorial, a directora da ?Notícias Magazine?. Dizia Isabel Stilwell:

?Quando a justiça funciona mal, está aberto caminho para os julgamentos populares, e os julgamentos populares dos séculos XX e XXI acontecem nas televisões e nos jornais. Um ?agente? da esquadra da TVI, da SIC ? ou, há dez anos, do ?Indy? ? escolhe a vítima (ou esta é-lhe sugerida), constitui-a arguida e apressa-se a inquiri-la. Pede-lhe que comente, deponha, explique, reforçando o seu poder com insinuações de que ?quem cala consente?, ou ameaças do estilo ?se não falar é pior para si?. Depois, escudado por muitos ?presumível?, ?terá?, ?diz-se? e ?sabe-se?, comete o homicídio que, por ser entre aspas, não é menos fatal.?

Lembra ainda a directora da ?Notícias Magazine?:

?É que somos todos muito bonzinhos, mas a verdade é que nos pelamos por sangue, e estamos doentiamente ansiosos por encontrar provas de que os ?outros? são todos uns ladrões, uns corruptos e uns crápulas ? e é por darmos ouvidos a estes novos procuradores públicos que eles florescem?.

A análise lúcida de Isabel Stilwell reforça a leitura do Provedor e convida à reflexão conjunta dos jornalistas e do seu público para um ?pot pourri? em que se misturam ingenuidade e maldade, entusiasmo e leviandade.

A Associação Sindical do Profissionais da Polícia, por exemplo, trouxe ao Provedor a sua indignação sobre a notícia que gerou a manchete da edição do passado dia 7, e em que, na sequência da operação que levou à detenção de elementos da GNR, se dava conta de que 60 polícias do Porto estariam sob investigação, ?por indícios de corrupção passiva, peculato e favorecimento pessoal?. O mesmo texto afirmava que as investigações estavam a cargo da IGAI (Inspecção-Geral da Administração Interna), que teria deslocado para o Porto cinco elementos com o fim de acelerarem o processo.

Ora, segundo a Associação Sindical dos Profissionais da Polícia, nesse mesmo dia Rodrigues Maximino, responsável máximo da IGAI, e o director nacional da PSP, Mário Morgado, desmentiam em vários órgãos de comunicação social a notícia, tendo Rodrigues Maximino afirmado nomeadamente à TSF: ?Estou de facto no Porto, mas para ter uma reunião de trabalho com um colega no DIAP, já agendada antes da operação na GNR. Não tem nada a ver com corrupção. Sobre a matéria noticiada, não tenho nenhuma equipa no Porto a tratar de assuntos desta natureza. A IGAI não tem nenhuma investigação a elementos da PSP e não faço a mínima ideia de onde essa notícia sai e porquê. Não tem nenhum fundamento.?

Estes os factos que consentem à ASPP/PSP a consideração de que a autora da notícia ?lançou impunemente a suspeita sobre 60 polícias do Porto?. Tudo o mais na carta assinada pelo presidente da Direcção, Alberto Torres, é acessório — da publicidade à eficácia da Associação, a acusações difamatórias sobre a jornalista, passando por sobre a tentativa de invadir assuntos que dizem apenas respeito à Redacção JN e pelo desafio (que o Provedor se abstém de comentar) com que abre a carta, pondo em dúvida que o assunto fosse abordado nesta página.

A ASPP/PSP considerou, ainda, que, omitindo as identidades dos profissionais dados como suspeitos, a jornalista alargava as acusações a todos os efectivos da Polícia no Porto ? o que, sendo verdade, é também uma inevitabilidade que o ?segredo de justiça? impõe e que a ?presunção da inocência? recomenda.

A autora da notícia, inquirida pelo Provedor, explica:

?Os termos em que redigi a notícia em causa, cujo conteúdo não é desmentido, foram os possíveis na altura em que ela foi produzida. Ao contrário do que sugere a carta da ASPP, não era possível, naquelas circunstâncias, avançar mais elementos, muito menos quanto à indicação dos presumíveis investigados. Oportunamente procurei recolher a posição do presidente da ASPP, que repetidas vezes mandou dizer que não se encontrava disponível.?

Quanto ao editor de ?Sociedade?, secção onde a notícia foi publicada, reconhece que ?as apreciações da ASPP/PSP são de considerar. Mas, no contexto em que a notícia foi elaborada, e pesados os factos então disponíveis, teve-se em conta a credibilidade das fontes e dos factos passíveis de utilização imediata.?

Por seu turno, o Conselho de Redacção, a pedido do Provedor, considera:

?1. O desejo de dar o mais cedo possível notícias sobre presumíveis factos é maior num contexto de atenção extraordinária da opinião pública sobre a área a que dizem respeito e de forte concorrência entre orgãos de comunicação social, mas também envolve maiores riscos.

?2. Um dos riscos evidentes é o de nem sempre o jornalista poder dar maior consistência ao seu trabalho, sobretudo se envolve dados que, por natureza, são do domínio reservado da investigação judiciária.

?3. Tal risco impõe aos jornalistas e às respectivas chefias um redobrado esforço na ponderação do estado, do volume e do interesse das informações que se pretende disponibilizar ao público, bem como das consequências sobre a vida ou a imagem de pessoas e/ou entidades objecto da notícia.?

Tem-se esclarecido nesta página que as falhas de um jornalista (deontológicas ou técnicas) não o responsabilizam só a ele, mas a toda a hierarquia da Redacção — nomeadamente ao seu editor (ou a quem, de momento, o substituía). É natural que o entusiasmo de ?cacha? (notícia exclusiva) desvie o jornalista de alguns cuidados que, normalmente teria. Que lhe roube distanciamento. Mas o editor tem menos desculpas já que, em casos sensíveis como este, tem por dever chamar a si o papel de ?advogado do diabo?. Em defesa do jornalista, para sua própria protecção, tendo em vista a credibilidade do jornal. O resto da cadeia escuda-se naturalmente, na confiança.

A investigação dos casos de corrupção pode comparar-se, como há dias analisava, com rara lucidez, uma excelente jornalista, a um cesto de cerejas: umas arrastam as outras, e é cedo para distinguir entre posições institucionais, imperativos legais e a verdade possível. O que responsabiliza ainda mais os jornalistas e os ?media?.

Amanhã, como tantas vezes no passado, o JN dirá, se os factos o ditarem, com orgulho na sua verticalidade: ?Estávamos errados?."