Thursday, 10 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Futebol bem comportado

MÍDIA NA COPA

Deonísio da Silva (*)

Uma antologia dos destrambelhamentos famosos, das inconformidades célebres e das rebeldias inolvidáveis estaria repleta de gênios em todos os campos. O teólogo, filósofo e cientista Emanuel Swedenborg, que viveu no século que Saint-Just quis pôr no panteão, o 18, e cujas desconcertantes ilações são tão apreciadas, sobretudo na Inglaterra e nos EUA, e que teve na Argentina um admirador emblemático, o escritor Jorge Luís Borges, concluiu depois de muitas pesquisas e outras tantas revelações que o céu está proibido, não aos maus, mas aos bobos. E por quê? Porque a maior ofensa ao Criador de obras tão complexas como o universo e todos os mundos seria deixar de apreciar, por falta de entendimento, a beleza do Paraíso. Apenas por isso é proibida aos ignorantes a entrada no reino dos céus.

Galileu Galilei desafiou o Papa, enfrentou iras e calúnias dos asseclas da Inquisição, mas é o pai da Física. Michelangelo Buanorroti fez mais do que isso: num momento de raiva incontida, discutindo arte e arquitetura com quem só queria saber de poder, esbofeteou o Sumo Pontífice. Jesus foi insolente com os todo-poderosos mercadores do templo de Jerusalém e, ainda que ferido, espancado e humilhado sob uma coroa de espinhos, encarou o procurador do império mais poderoso do mundo e recusou-se a responder o que era a verdade, acrescentando também que ele não tinha poder algum que não viesse do alto ? o que, aliás, ficou demonstrado depois de sua crucificação e morte, quando Pilatos caiu em desgraça e se suicidou. César, bissexual convicto, punha um manto vermelho, montava seu cavalo branco e assim paramentado ia para a frente da batalha pedindo aos soldados veteranos que ferissem os jovens soldados de Pompeu no rosto, porque eles eram bonitinhos e isso os encheria de pavor, mais que o terror da própria luta. Além do mais, desobedeceu ao Senado e atravessou o Rubicão, proferindo a frase famosa: a sorte foi lançada.

Dom Pedro I desobedece as cortes portuguesas, proclama a independência no Brasil e faz a guerra contra o irmão Miguel para obter o trono no reino. Sua neta, a princesa Isabel, desobedece conselheiros e amigos do pai e abole a escravidão no Brasil. O marechal Deodoro da Fonseca é monarquista, mas proclama a República. Joaquim Nabuco foi duplamente corajoso naqueles anos, ao declarar-se abolicionista, sim, mas monarquista! Getúlio Vargas desafia e depõe o presidente Washington Luís, lidera a Revolução de 1930 e funda o Brasil moderno. Machado de Assis, que era preto, pobre, órfão, epiléptico e gago, fere com sua ironia silenciosa o estilo untuoso dos mais aclamados beletristas nacionais, dá um pau crítico em ninguém menos do que Eça de Queiroz e constitui-se na maior referência da literatura brasileira em todos os tempos.

Ditado mineiro

Passemos ao futebol, nosso porto de chegada para essas metáforas. Garrincha não toma conhecimento de quem são seus marcadores. E para ele não faz diferença se entre os que admiram suas jogadas estão pobres brasileiros para os quais a única alegria semanal era vê-lo jogar ou se na tribuna de honra está a rainha da Inglaterra. Didi, num momento de conflito generalizado em campo, abandona a elegância que o consagrara e parte para golpes de capoeira. Pelé, cansado de ser batido e quebrado, bate e quebra. Gérson fez coisa parecida.

Longe do signatário dessas linhas defender a porrada como instrumento de resolução dos conflitos. Mas heréticos e rebeldes como os citados o fascinam. Agora, amigos leitores, dizei-me: Felipão, técnico da Santa Sé, convocaria Michelangelo? Daria a faixa de capitão a César? Incluiria Garrincha, Gérson, Pelé e Didi entre os 23?

Se utilizasse os mesmos critérios declinados nas entrevistas coletivas, não. E por esta razão é que não convocou Romário, o maior goleador que temos. Porque ele não suporta ser menor do que os convocados. Para aceitar o gênio, é preciso ter um mínimo de modéstia e reconhecer domínios específicos. Ou, na feliz síntese de João Saldanha, quando questionado por ter convocado um jogador que vivia na noite: "Para marido de minha filha, não; mas naquela posição ninguém joga melhor do que ele!".

Como demonstrou, ainda mais uma vez, Felipão não tolera que dele discordem. Semana passada foi visto todo garboso conversando com os repórteres, como se fosse um deles. No domingo [9/6], apresentando-se mais uma vez sua pele de censor, quis proibir que fotógrafos credenciados fizessem seu trabalho. Só podem fotografar o que ele autoriza? Desconfia de que o público tire ilações inconvenientes de fotos em que ele ou jogadores posem ao lado de beldades?

Para ele, como para poucos, vale o ditado mineiro? Em Minas, ninguém enlouquece, o sujeito apenas se manifesta. Déspotas ou censores não enlouquecem nunca, eles também apenas se manifestam.

(*) Escritor e doutor em literatura brasileira pela USP; seu romance mais recente é Os Guerreiros do Campo