Thursday, 16 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Irresponsabilidade generalizada

MORTE NA PISTA

Gerson Luiz Martins (*)

O acidente com morte ocorrido em Campo Grande no domingo, 7 de setembro, ilustra de forma trágica os riscos a que estão submetidos os "estagiários" de jornalismo. E denota uma irresponsabilidade generalizada, seja das escolas que ignoram ou fingem ignorar tais fatos, seja das empresas de comunicação, que colocam pessoas despreparadas em atividade para a qual não têm qualificação. As discussões sobre o estágio em jornalismo atravessam os anos, e até o momento não temos uma política definida e regulamentada a respeito.

De um lado estão estudantes que reclamam a falta de prática nos cursos e, pior, um desencontro com o mercado de trabalho; de outro está a exploração de mão-de-obra barata e a expulsão dos profissionais do mercado. Nesta altura é importante esclarecer que o estudante de Jornalismo que morreu em Campo Grande fazia um frila para um panfleto mensal que começou a circular na cidade para explorar economicamente uma atividade nova para Campo Grande, trazida pela paixão do atual prefeito pelas competições automobilísticas. O jornal, e não revista, como foi divulgado, tem formato tablóide, e nas primeiras edições publicava mais fotos do que textos, explorando anúncios publicitários de pequenas empresas em torno da inclusão de Campo Grande no calendário da competições das fórmulas truck, stock car e outras "fórmulas" do calendário da Federação Brasileira de Automobilismo. Ou seja, a morte do estudante foi uma tragédia, e também uma grande irresponsabilidade social, dos repetidos ávidos dos professores de Jornalismo, sobre a "responsabilidade social do jornalismo".

Efetivamente não podemos imputar culpa à organização da competição ou mesmo aos responsáveis pela estrutura do autódromo. O fato foi objeto de reflexão durante toda a semana e, decisivamente, concluiu-se que nenhum profissional de fotojornalismo coloca em risco a vida de forma inconseqüente. Os riscos, em todas as profissões, são calculados, dimensionados.Vale a pena submeter-se a tal risco pelos resultados econômicos desta ou daquela atividade? Entre os estudantes, contudo, esses riscos não são avaliados de forma madura e séria. E a pressão pelo furo jornalístico não implica riscos desmedidos.

Dinâmica perigosa

Há um exemplo que se transformou num signo no jornalismo e que, poucos dias antes, esteve em Campo Grande realizando uma conferência para estudantes de Jornalismo na Segunda Semana de Jornalismo de Mato Grosso do Sul, representado na figura de José Hamilton Ribeiro, vítima da explosão de uma mina na cobertura da Guerra no Vietnam.

Entre os fatos que denotam o despreparo para a atividade do estudante de Jornalismo está o equipamento que utilizava: uma pequena câmera digital de alcance limitado, a exemplo de uma cibershot ps75. Ele invadiu a área de risco, tapeando os fiscais do autódromo, pois não tinha qualquer treinamento para trabalho fotográfico. No entanto, estava lá, "contratado" como "estagiário" de jornalismo para fazer um frila e ganhar um troco. Não ganhou, perdeu a vida.

A profissão por si só é um risco constante. Conhecemos os perigos a que estão sujeitos profissionais experientes na cobertura diária de assuntos de cidade, segurança, saúde. Isso sem falar nas diversas coberturas de conflitos urbanos ou mesmo em conflitos armados em todo o planeta. Os que ingressam na profissão aprendem a conhecer as vicissitudes da atividade jornalística. O estágio em jornalismo é importante, é necessário. Por isso, em diversos estados os sindicatos de jornalistas preparam mecanismos e regulamentos para organizar o estágio. E ainda assim há questões polêmicas. São criados convênios entre a instituição que oferece o curso de Jornalismo, a empresa que oferece a oportunidade de estágio e o sindicato, que supervisiona.

Todos os profissionais contratados por empresas de comunicação têm apólice de seguro de vida que dá cobertura às atividades profissionais. A empresa que oferece estágio dá essa cobertura ao estagiário? Evidentemente que essa preocupação deve constar dos convênios firmados. Mas isso está efetivamente resolvido? A forma de minimizar riscos e responsabilidades das instituições está na maturidade e na qualificação do "estagiário". E isso, em tese, acontece quando o estudante está em fase final de curso.

A realidade atual do estágio em jornalismo é, em numerosas redações, estudantes de terceiro, segundo e até mesmo de primeiro ano realizando atividades concernentes a profissionais. A exploração de mão-de-obra barata pelas empresas de comunicação desqualifica o mercado, fragiliza o produto e sua captação de recursos econômicos, principalmente pela qualidade do serviço oferecido à população. As instituições acadêmicas desconhecem quais, entre seus alunos, estão nessa situação. Não há qualquer preocupação na regulamentação do estágio. Os cursos ignoram o que os alunos fazem além dos muros da escola. Nesse caso, muitas vezes, é melhor fechar olhos e ouvidos. Não existe qualquer relação entre escolas e empresas que, com receio das críticas, se fecham em torno de si mesmas e depois, de forma peculiar, reclamam que são obrigadas a qualificar os profissionais depois de formados, porque chegam despreparados às redações. A perdurar essa dinâmica possivelmente teremos outras vezes situações como a que testemunhamos em Campo Grande.

Questões urgentes

Alguns direcionamentos se fazem necessários. É imprescindível que os estudantes de Jornalismo busquem o Sindicato dos Jornalistas de sua localidade. É imprescindível que os estudantes de Jornalismo conheçam a legislação que norteia as atividades do profissional de jornalismo. Avanço mais: é imprescindível que os estudantes de Jornalismo conheçam o anteprojeto do Conselho Federal de Jornalismo e tenham, em seus artigos, um referencial para sua qualificação enquanto trabalhador de jornalismo. Aos formadores, aos professores de Jornalismo e suas instâncias diretivas é imprescindível que se relacionem com as empresas de comunicação. Também é necessário seu envolvimento e sua participação nas entidades de representação da classe, representada neste momento pelos sindicatos dos jornalistas.

Somente com o fortalecimento dos órgãos de classe dos jornalistas poderemos prevenir que mais casos com o de Rafael aconteçam. As empresas de comunicação precisam ser descentralizadas, ou seja, é imprescindível que parem de circular em torno do próprio umbigo, pois seus atuais e futuros profissionais são oriundos desses cursos de Jornalismo que criticam. Também é imprescindível que, em conjunto com os cursos de Jornalismo e os sindicatos, as empresas promovam cursos de qualificação conforme suas áreas de interesse, voltados para os estudantes e profissionais, a exemplo do que ocorre com o projeto Cátedra de Jornalismo desenvolvido pela Diretoria de Educação da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).

Infelizmente, como de praxe, é necessária uma tragédia para que nos conscientizemos da necessidade de equacionar questões urgentes na formação do jornalista, às quais simplesmente não podemos fechar os olhos. É necessária uma intervenção imediata em todas as situações de estágio irregular em jornalismo, em todas as situações de exploração de mão-de-obra barata no processo de produção jornalística.

(*) Jornalista, professor da Faculdade Estácio de Sá de Campo Grande, MS, e integrante da coordenação nacional do Fórum Nacional dos Professores de Jornalismo

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