Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Ivson Alves

IMPRENSA ALTERNATIVA

"A sociedade civil e a ?guerra simbólica? – II", copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 17/11/02

"Bom, resumindo o artigo da semana passada, as forças do chamado ?campo popular? devem se preparar para enfrentar a guerra dos símbolos que já começou e deve se estender sem tréguas pelos próximos quatro anos. Para que tenham chance de vencê-la – ou pelo menos não serem esmagadas -, estas forças devem, eu creio, profissionalizarem suas equipes de comunicação o quanto antes, apesar de alguns obstáculos a serem enfrentados.

Este caminho, que já vem sendo trilhado por ONGs, parece que vai ser realmente seguido por aqueles que não podem contar com a boa vontade de mídia tradicional devido às divergências políticas de fundo (no máximo, consegue-se alguma tolerância em certos momentos). A iniciativa mais evidente é a intenção do ?Brasil de Fato?, um semanário de esquerda a ser editado pelo excelente José Arbex Jr., cuja produção foi anunciada pelo meu vizinho de portal Eduardo Ribeiro há três semanas.

Segundo o plano de jornal anunciado por Eduardo, ?Brasil de Fato? terá 24 páginas e 100 mil exemplares de tiragem, sendo dirigido por um Comitê Editorial de 10 a 12 pessoas, representantes os movimentos sociais que dão suporte ao projeto, que porão em prática o direcionamento decidido por um Conselho Político de 80 pessoas de diversos setores.

Quando li o furo do Eduardo no Jornalistas & Cia, me veio à mente imediatamente o ?Brasil Agora?, jornal que o PT tentou construir no início da década de 90, logo após a derrota para Collor de Mello, e que morreu assassinado pelas tradicionais lutas internas do partido. Este, aliás, é, ao meu ver, o maior obstáculo ao sucesso do ?Brasil de Fato?. Apesar da inegável maturidade que a esquerda brasileira, em especial o PT, adquiriu nos últimos 10 anos, ainda assim me custa crer que um grupo de 80 entidades consiga chegar a qualquer tipo de consenso para dar direcionamentos políticos táticos que um veículo de comunicação precisa para sobreviver a fim de levar avante seu projeto estratégico.

Mas este é apenas um dos problemas. Há, por exemplo, ainda uma séria questão prática que espero esteja merecendo toda a atenção dos responsáveis pelo novo jornal: a logística. Este é um dos pontos que mais têm encucado os jornais tradicionais e já levou a acordos operacionais como o que une Folha e Estadão em São Paulo e deu o maior impulso ao noivado entre O Dia e JB aqui no Rio. Como vai ser o sistema de distribuição física dos 100 mil exemplares do ?Brasil de Fato??

Esta foi a pergunta que nos fizemos – Alberto Jacob Filho, na época presidente do Sindicato dos Jornalistas do Rio, José Truda Jr. e este humilde escriba – em meados de 1997, quando pensávamos num projeto de jornal de esquerda em muito semelhante a este que agora está sendo levado à frente. A idéia tinha nos surgido depois de um fórum sobre comunicação sindical realizado pelo Sindicato dos Urbanitários em sua sede na Rua Moraes e Silva, no bairro do Maracanã. Neste encontro, aliás, foi a última vez que vi com vida o grande Ricardo Bueno, um dos palestrantes.

A solução que encontramos para o problema de logística foi fechar o jornal num lugar só e enviá-lo por PDF (com as fotos e ilustrações em .jpg de alta) para as diversas capitais, onde seria impresso ou em gráficas de sindicatos mais fortes (aqui no Rio, por exemplo, os Bancários têm uma e, na época, era boa o suficiente para rodar um jornal como o que pensávamos) ou em gráficas contratadas. Esta pode ser uma opção ainda hoje.

Mas naquela época, como hoje, acho que ainda vale uma pergunta que fizemos: será que o custo benefício de se criar um jornal vale à pena? Não seria melhor procurar usar as publicações existentes, criando para isso uma estrutura que as abastecesse? Pensamos então que seria mais eficiente se fosse montada uma agência de notícias nacional que produzisse material a ser editado por uma rede de jornais sindicais e populares, que pagariam uma taxa mensal para a manutenção da estrutura. Os correspondentes da agência ficariam baseados nos sindicatos dos jornalistas espalhados pelo país (são 31 e cobrem boa parte do país. Isso diminuiria o custo fixo) e enviariam as matérias pela internet para um ponto central, que se encarregaria de restransmiti-las para os assinantes. Infelizmente, essa idéia foi atropelada pelo dia-a-dia de um sindicato em reconstrução (quase acabara na gestão PC Rodrigues), como ocorreu com dezenas de outras, e nunca saiu do campo da elocubração.

De qualquer maneira, ela, assim como a criação do ?Brasil de Fatos? e a existência da Agência Carta Maior (recomendo visitá-la clicando aqui), demonstram que há realmente um caminho importante para o ?campo popular? lutar com boas armas nesta guerra simbólica. Agora, cabe ver se há vontade e competência políticas para tanto.

Blogaria – É já estamos no assunto ?outras vozes do mundo?, aí vai uma idéia que tive outro dia e que, acho, poderia ser útil aos professores de jornalismo no próximo semestre. Ela consiste na criação de blogs que se dedicariam a analisar, diária ou semanalmente, veículos de comunicação sob determinados pontos de vista.

Exemplificando. Um/a professor/a de Ética poderia propor aos alunos que criassem um blog no qual seriam analisados os programas de uma determinada TV ou mesmo apenas um programa de uma determinada TV, ou ainda a primeira página de um jornal ou a editoria de Economia deste jornal, ou….Bem, você já entendeu que as possibilidade são infinitas, né? E não seria só analisar a Rede Globo, não. Valeria analisar A Tarde, de Salvador, por exemplo, ou o Diário de Cuiabá, ou os programas da TV Verdes Mares, de Fortaleza. E não precisaria ser só Ética ou Jornalismo Comparado, embora essas sejam as primeiras cadeiras a virem à mente, mas também Fotografia, Técnicas de Edição, Reportagem e Texto…Vale tudo.

Blogs são molinhos de fazer e manter, não haveria dificuldade e tenho certeza que, mesmo na turma mais preguiçosa, três ou quatro alunos estariam dispostos a criá-los. Já pensou? Uma rede de blogs com um olho crítico na mídia? Parodiando a frase famosa, seriam ?um, dois, três..mil Picadinhos!? :)"

 

CARTAS NA MESA

"Os segredos dos quatro mineiros do Apocalipse", copyright Jornal do Brasil, 16/11/02

"A epistolografia, um dos capítulos mais indigentes da literatura brasileira, acaba de ganhar um grande livro, Cartas na mesa, de Fernando Sabino, autor cuja aceitação junto aos leitores dispensa justificativas, e pode ser medida pelo número de edições de suas obras.

Mais que isto, um escritor cujos livros, sobretudo os de crônica, são consumidos como verdadeiras cartilhas de formação de uma das boas virtudes de nossa gente: o prazer de saborear os pequenos incidentes da vida comum. Vem daí, da arte de descobrir os tesouros minimais do cotidiano, a vantagem que Fernando Sabino leva sobre a maioria dos autores de cartas da literatura brasileira. Que não são muitos, num gênero pouco praticado, que exige de seu autor a capacidade rara para o desconfiômetro.

Em literatura, ou a carta é construída em modo de diálogo entre correspondentes, para fins eminentemente críticos, a exemplo do que fez Mário de Andrade em quase tudo que escreveu a Bandeira. Ou a carta é elaborada como troca de informação afetiva. O que não se aceita, como obra literária, é a pura e simples viagem ao redor do próprio umbigo, feita por quem não tem nada a dizer.

Em Cartas na mesa, Fernando Sabino dá uma aula de epistolografia (ele repeliria a solenidade do termo). Ensina o que um autor deve saber, quando separa o trigo substancioso da revelação que merece publicidade do joio da lengalenga intimista, desimportante, que deve ter o destino do fundo dos baús.

Em mais de 300 páginas Sabino conversa com Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino, mantendo o papo epistolar num tom de confidência. Mineiramente, repelindo o pedantismo de quantos escrevam cartas destinadas à literatura, realiza obra de qualidade na difícil arte de falar com os íntimos.

Os jovens cavaleiros do Apocalipse

Fernando Sabino faz da correspondência trocada com seus amigos de Minas Gerais livro fascinante

Em primeiro lugar, Fernando Sabino escreve suas cartas como fazem os campeões de natação, de peito aberto, com a sinceridade bem-educada que o caracteriza. Também escreve como fazem os poetas em sua obra lírica, e extrai das mínimas banalidades das relações pessoais e do cotidiano o puro destilado da metáfora superior da condição humana. E se já não fosse o bastante, ainda presentifica, diante do leitor, vivos, lúcidos, falantes, a singularidade mais que comovente de cada um dos quatro mineiros do Apocalipse: Fernando, Hélio, Paulo, Otto. Há, portanto, muito mais que literatura ou curiosidade.

É o que interessa em cartas de autor quando postas em livro. O resto é fofoca. E é por isso que o gênero, perigosamente exigente, tem tão poucos praticantes na literatura brasileira. Entre nós, existe muita chatice impertinente, forçando a barra para virar livro. Mas encontrar cartas de verdade, que resistem ao teste do tempo e da transcendência, já é mais difícil. Cartas como as escritas por Antônio Vieira, que as punha no papel como se fossem textos para serem lidos em voz alta, no púlpito, mas contribuem até hoje, mais de três séculos passados, para que os brasileiros entendam melhor o processo de formação da nacionalidade. Ou cartas como as de Machado de Assis, que as escrevia pensando na posteridade, e deixou aos amigos verdadeiros tratados curtos de psicologia ou vida literária.

Cartas na mesa, de Fernando Sabino, é uma boa coletânea de prosa. Literalmente isto: prosa, papo, sobre fatos ou circunstâncias acontecidos ao longo de quase 60 anos de amizade. Falam das expectativas angustiadas do jovem estagiário do esquadrão de cavalaria, aquartelado em Juiz de Fora, onde passava fins de semana rolando à toa como pau de enchente. Falam da nostalgia do homem maduro, em Londres, saudoso do bar Tip Top e do clima de Belo Horizonte. Falam do encontro com Paulo Mendes Campos, emocionado e emocionante, como diriam os teóricos da comunicação na década de 70, num barzinho em Petrópolis, quando o amigo, sozinho, numa mesa de fundo, ao ver Fernando Sabino exclama com intimidade fraternal: ?Esse cara nunca me decepcionou.?

Em Cartas na mesa há verdadeiras preciosidades de texto e de matéria. A carta-poema de Hélio Pellegrino, escrita no dia 4 de maio de 1945, sobre a juventude dos quatro amigos, numa época em que ?a alma se alimentava de tempestades?, e que deve atingir o leitor ?como um grito de perenidade?. Ou os relatos de como os amigos se conheceram: Hélio, no jardim de infância; Paulo, na varanda da casa do cônsul inglês em Belo Horizonte, durante uma festa em que ambos haviam entrado como penetras; e Otto em casa do intelectual João Etienne, que os iniciaria no jornalismo e na literatura.

Para o leitor comum, Cartas na mesa é a oportunidade de percorrer, por dentro, o coração de Sabino e de seus amigos. Para muitos dos escritores aparecidos a partir da década de 60, as cartas são um novo encontro marcado com um autor que teve o atrevimento de fazer literatura urbana com personagens, diálogos, paisagem, cara e pensamento de quem vive na cidade, no século 20. Até Fernando Sabino o romance brasileiro parecia amarrado a uma canônica de gênero, que determinava que nossos escritores mantivessem um olho na roça e outro em Machado. Ou o regionalismo de Afonso Arinos, Hugo de Carvalho Ramos, e posteriormente José Lins do Rego; ou o romance urbano de corte machadiano, praticado e vivido no século 20 mas ainda com alma passadista. E tirante a trêfega modernidade de Pinto Calçudo e Macunaíma, personagens de Oswald e de Mário de Andrade, a literatura parecia temer os sinais dos tempos.

Fernando Sabino, ao lançar o Encontro marcado em 1956, escreveu livro com cara de século 20. E abriu caminho para que se pudesse usar, entre outros signos de modernidade, o automóvel, a piscina dos clubes de natação, a molecagem de um personagem que sobe no arco de cimento do Viaduto de Santa Teresa, em BH, e urina lá de cima. Com a singeleza de uma criança. Até então, personagem de romance brasileiro não urinava na rua ou em qualquer outro lugar. Exceção, é claro, na literatura naturalista. Fernando Sabino mudou tudo isso.

Cartas na mesa traz como epígrafe uma frase de Mário de Andrade, com quem o jovem Fernando Sabino se correspondia, pedindo luzes para o início da caminhada na literatura. Dizia o pai de Macunaíma: ?O Hélio, o Otto, o Paulo, são os únicos amigos que podem salvar você.? Não são. Os amigos se foram. Mas Fernando Sabino preserva a seu lado muitos outros, além de uma legião interminável de leitores com quem deve ter um bom reencontro através das cartas que põe na mesa."