Tuesday, 14 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Nelson Hoineff

TV DIGITAL

"A agulha e o vinil", copyright Jornal do Brasil, 12/03/02

"O candidato José Serra admitiu, na quinta-feira passada, utilizar a escolha do padrão da TV digital a ser adotado no Brasil como moeda de troca em represália às sobretaxas impostas pelo governo norte-americano à importação do aço brasileiro.

Como as eleições estão marcadas para outubro e a definição do padrão digital está prometida para três meses antes, deduz-se que o ex-ministro está contando com um novo adiamento na decisão da Anatel – o que vem acontecendo sistematicamente há mais de um ano. Foi a primeira vez, de qualquer forma, que um integrante do atual governo sinalizou que a decisão sobre o padrão a ser adotado não se dará por avaliações estritamente técnicas, mas políticas. Sem contar, naturalmente, o consenso, expresso repetidamente pela Câmara de Comércio Exterior, que a definição brasileira implicará na negociação de contrapartidas com o país interessado. Contrapartidas que a princípio se traduzem na negociação de royalties sobre a transferência de tecnologia e compra de programação.

Na prática, o candidato governista inaugurou uma discussão que certamente estará na pauta de todos os postulantes à presidência, se a decisão for estendida até lá. A definição do padrão digital é um negócio em torno de US$ 10 bilhões. Isso, computando apenas o que será gasto para reequipar as emissoras e os receptores domésticos de TV. As plataformas digitais, no entanto, representam muito mais do que isso. Elas não constituem, ao contrário do que se costuma pensar, um simples aprimoramento em relação às plataformas analógicas em operação; implicam, pelo contrário, na cristalização de conceitos totalmente novos de produção e difusão do produto audiovisual – para não falar da quantidade de serviços (bancários, comerciais, etc.) que está na raiz da capacidade interativa do sistema.

Ainda que a transformação do equipamento seja uma questão de ordem técnica e econômica, a migração do pensamento analógico para o digital é uma questão de caráter filosófico. Uma criança de 10 anos terá dificuldade em entender, hoje, como, até há pouco tempo, um disco só poderia ser ouvido seqüencialmente e com o contato físico da agulha com a superfície de vinil. Da mesma forma, uma criança que nasça hoje, daqui a dez anos não entenderá como um programa de TV tinha que ser visto num determinado horário e com todos os planos escolhidos pela emissora. Quando atingir a maioridade, ela não saberá mais o que no passado significava emissora, muito menos rede de televisão.

Já a escolha do padrão digital de transmissão pouco tem a ver com as tecnologias digitais de captação e processamento de imagens, em utilização há algum tempo, mas em constante desenvolvimento. Exceto pela assimilação da mesma maneira de pensar. A tecnologia digital de captação de imagens, por exemplo, está mudando a maneira do artista se relacionar com a própria realidade. O que pode parecer ficção científica para o leitor comum, começa a fazer parte do cotidiano dos técnicos que trabalham com a produção audiovisual. Novas gerações de câmeras, com alto poder de processamento, são capazes de identificar o que o realizador está pensando e criar simulações que literalmente sugerem ao artista o ambiente em que ele deve trabalhar para a criação da intensidade dramática que a cena requer.

Quando o padrão digital de transmissão for definido, no entanto, toda a parafernália de produção e transmissão das emissoras, todos os receptores de televisão domésticos e toda a programação comprada girará em torno dele. Será um casamento duradouro – como foi, há 30 anos, o casamento com o padrão PAL-M de cores. A relação do espectador com seu aparelho de TV também mudará para sempre. Ele fará compras durante a novela, clicando sobre a blusa que a atriz está usando para recebê-la em casa no dia seguinte; escolherá os ângulos em que prefere ver o jogo de futebol; interromperá o programa que está vendo para continuar logo depois; terá, pelo ar, uma quantidade de opções similar a que recebe hoje por cabo; terá internet, serviços bancários e informações complementares sobre a programação que está vendo; receberá um som idêntico ao que hoje só obtém com DVD e equipamento de home theater; e, eventualmente imagens em alta definição com qualidade semelhante à de cinema.

Como se sabe, três padrões disputam o mercado brasileiro: o americano ATSC, o japonês ISDB e o europeu DVB. Testes de caráter técnico realizados pela SET-Abert apontaram o japonês como o mais adequado, em função sobretudo da sua operacionalidade em transmissões móveis. Os outros padrões, no entanto, não foram descartados – não só porque a prudência manda que isso não seja feito, como, também, pelo fato de que estão todos em permanente desenvolvimento, sobretudo no que diz respeito às transmissões móveis. Além disso, cada um tem o seu próprio telhado de vidro (o japonês, por exemplo, ainda não está em operação regular nem mesmo no Japão).

As pressões, evidentemente, são proporcionais ao volume do negócio pretendido. Os três concorrentes afiam seus lobbies permanentes em Brasília, o americano talvez com mais presença na mídia (e usando a integração do país à Alca como pretexto para que o continente adote um único sistema).

Mesmo entre os técnicos, no entanto, não existe consenso sobre o melhor padrão. O certo é que as plataformas analógicas serão, por lei, completamente banidas nos EUA em outubro de 2006. Exatamente no mês em que o Brasil estará escolhendo o sucessor do sucessor de Fernando Henrique.

Enterrado nos EUA, o sistema analógico será automaticamente sepultado no mundo inteiro. Resta, portanto, muito pouco tempo para o Brasil escolher e implantar o seu padrão digital. A essa altura, deve ser mais fácil optar entre os três pretendentes do que decidir sobre o momento de fazer essa opção. Decisões políticas não podem ser feitas e desfeitas como uma edição digital; infelizmente, ainda são lineares como a agulha sobre o vinil.

Nelson Hoineff é produtor e diretor de TV"

 

REALITY SHOWS POR
JURANDIR COSTA FREIRE

"Rodízio de chuchu", copyright no. (www.no.com.br), 13/03/02

"Não é novidade dizer que a sexualidade e a exibição do corpo de homens e mulheres têm sido usados como instrumentos de propaganda para todo tipo de produtos – de carros a bebidas. Há muito comunicadores, feministas e filósofos denunciam a mercantilização do que já foi tabu. Do seu consultório em Copacabana, o psiquiatra

Jurandir Freire Costa vê um fenômeno mais amplo em curso. ?O próprio sexo, hoje, é a mercadoria?, diz ele, apontando a sexualidade como o derradeiro anabolizante de um capitalismo decadente.

No universo da experiência humana, amor, erotismo e privacidade têm sido os quadrantes mais explorados pelo escritor pernambucano nos últimos anos (seus últimos livros foram ?Razões Públicas, Emoções Privadas? e ?Sem Fraude nem Favor: Estudos sobre o Amor Romântico? ). São temas que misturam os dramas pessoais do homem aos comportamentos sociais, de interesse especial para este pernambucano, formado em etnopsiquiatria em Paris. Por isso mesmo, poucos mais qualificados para discutir o surto de voyeurismo patrocinado por montadoras de automóveis que dominou a televisão, como ele fez, por e-mail, na seguinte entrevista a no.. Em pouco tempo, acredita, programas como Casa dos Artistas terão de apelar para o escabroso – ou ?irão se tornar tão atraentes e excitantes quanto um rodízio de chuchu?.

Nunca a nudez e o sexo foram tão abertamente exibidos na nossa sociedade. É quase impossível passar um dia sem ver corpos nus ou casais em cenas claramente sensuais, exibidos para todo lado, de sites na internet a capas de jornais. Essa transformação da libido em mercadoria é uma forma de controle do sexo mais eficiente que a repressão?

Jurandir Freire Costa – A inscrição do sexo no circuito da mercadoria é, com certeza, uma forma de articular o prazer sexual na lógica do mercado. Ou seja, não estamos mais, com antes, utilizando o sexo para vender mercadorias; o próprio sexo, hoje, é a mercadoria. Traduzido em termos mais simples, isto quer dizer que o sexo não é mais algo da vida privada, da intimidade, do segredo pessoal não sujeito ao escrutínio público. O sexo, tal como se apresenta no comércio de excitação, se tornou um ?emblema?, um ?brasão? dos indivíduos considerados ?bem-sucedidos? econômica e socialmente. Os chamados ?vencedores? possuem, entre outros ?bens?, uma vida sexual que serve de exemplo, que é vendida publicamente para ser ?imitada? pelos que ainda não chegaram lá. Se você observar com atenção, tudo que é dito sobre sexo concerne pessoas ricas, jovens, bonitas, famosas, ?inteligentes? etc. No fundo, o sexo não vende um produto qualquer; ele vende ?tipos humanos?, ?figurinos de indivíduos? que são os que mais se adaptam e ajudam a manter o modo de vida das sociedades ocidentais contemporâneas e das sociedades culturalmente colonizadas como a brasileira.

Como chegamos a este estágio de exibicionismo e de consumo do corpo e do sexo?

JFC – No início da hegemonia capitalista no Ocidente, a adesão aos valores hegemônicos era imposta em nome do trabalho, da ética religiosa, da tradição familiar, do amor à pátria etc. Quanto mais disciplinados e reprimidos fôssemos no corpo e na alma, melhores trabalhadores, pais de família, religiosos e cidadãos seríamos. Hoje nos pedem que esqueçamos tudo isso. Não existe trabalho para todos, a família foi posta de lado, a idéia de pátria ou nação se tornou arcaica e obsoleta. Restou a competição feroz, a indiferença em relação aos miseráveis, a exploração cruel dos que ainda trabalham, a violência urbana, a epidemia de drogadições, a degradação do meio ambiente e outras tragédias que todos conhecemos. Como, então, seduzir, conquistar, convencer os indivíduos que, mesmo com tudo isso, esse sistema em que vivemos ?é o melhor, o mais avançado, o mais moderno, o mais desejável?? A solução foi persuadir os indivíduos que nesse sistema temos possibilidades de ter ?mais prazer, mais excitação, mais êxtases cotidianos? do que em qualquer outro conhecido! O sexo passou, assim, a ser uma espécie de ?vitrine? dourada fabricada para ocultar a sarjeta moral que temos diante dos nossos olhos e narizes. Antes o sexo reprimido era utilizado para mostrar as ?virtudes angelicais? da ética do capitalismo, como disse Max Weber; hoje o sexo é manipulado para exaltar a ?liberdade do prazer? que só podemos ter se abrirmos mão de qualquer crença contrária ao modo dominante de vida. Não é por acaso que grande parte da propaganda ocidental contra o obscurantismo dos chamados ?fundamentalismos fanáticos? se escora nos casos de opressão da sexualidade! É óbvio que, com isso, não pretendo, de forma alguma, justificar os atentados à liberdade e aos direitos humanos existentes nessas culturas. Estou chamando a atenção para o papel do sexo como ?garoto-propaganda? do capitalismo global.

Por outro lado, existe um grande incentivo à busca do prazer sexual. Este seria um aspecto ?positivo? deste processo?

JFC – O único aspecto positivo da ?banalização da sexualidade? que consigo ver é o fato de abandonarmos, talvez, a veneranda idéia ocidental que preferências, inclinações, práticas ou características sexuais têm a ver, necessariamente, com valor ético. Ou seja, acreditamos, até agora, que aquilo que se é ou se faz, do ponto de vista sexual, define o que se é, do ponto de vista moral. Isso pode estar mudando, a medida que o sexo vai se tornando algo tão trivial quanto qualquer outra manifestação da conduta humana. Ora, foi porque aprendemos a dar uma ?enorme importância moral? a sexualidade, que criamos preconceitos sexuais que infelicitaram e ainda atormentam milhões de seres humanos em todo mundo. Basta relembrar o que os homens foram capazes de fazer com as mulheres que ?não eram mais virgens?. Em nome do tabu da virgindade chegou-se até a justificar a brutalidade dos crimes de honra! Pois bem, se aprendermos a não ver o sexo como o ?Supremo Mal? ou o ?Supremo Bem? da vida, talvez venhamos a abandoná-lo como critério para avaliar moralmente as pessoas. Em geral, só consideramos matéria, pivô, de discussão ética aquilo que julgamos fundamental para nossa vida moral. Desse aspecto, a trivialização do sexo pode vir a ser um ganho moral, independente das intenções dos comerciantes de sexualidade, na forma pornográfica ou no formato para ?pais de família? e ?donas de casa?.

Casada, mãe de família, Luma de Oliveira é também um dos mais persistentes símbolos sexuais do Brasil. Há pouco tempo, fez furor uma foto sua feita de um ângulo que mostrava uma calcinha transparente sob um vestido curtíssimo. A modelo reclamou da foto feita de ângulo maroto, os fotógrafos retrucaram que só tinham fotografado o que estava sendo exibido. A privacidade é um direito em extinção no mundo?

JFC – Não tomei conhecimento do episódio. Seja como for, acho que a privacidade, de fato, está com os dias contados. Pelo menos a privacidade tal como foi definida e vivida nos últimos três séculos de revolução republicana e democrática. O privado foi criado como contrapartida do público. O privado, em particular o familiar, era considerado o lugar de repouso, o lugar em estávamos à vontade, em que podíamos ser espontâneos, confiantes na presença daqueles que nos eram mais próximos. Ora, os lares se tornaram lugar de adoração e culto as imagens publicitárias que, na maioria das vezes, não fazem senão incentivar as chamadas ?guerras de sexo? ou de ?gerações?. Se não é isso, é a exibição do sexo como mercadoria ou da violência crua, sem interpretação ou reflexão, que só faz desenvolver o sentimento de impotência moral e social das pessoas. Pois bem, para que serve, então, a ?privacidade?? Para nada. Ela não nos ajuda em nada a viver no ?mundo sem compaixão?, como disse Hegel, pela simples razão de que as regras desse mundo se tornaram as mesmas, dentro ou fora de casa.

Programas de televisão e sites da internet que oferecem a oportunidade de espiar permanentemente a intimidade de pessoas, famosas ou não, são hoje sucesso garantido. Qual a razão deste surto de voyeurismo?

JFC – Se já não confiamos mais nas opiniões morais das pessoas mais velhas, dos pais, dos professores, dos religiosos, dos grandes líderes políticos de antes, dos intelectuais, dos pensadores etc, em quais fontes iremos buscar a aprovação de nossos desejos e condutas? Temos que passar a observar ?diretamente?, na nudez dos corpos ou da intimidade, aquilo que possa nos dizer como somos ou como devemos ser! Veja bem, não faço parte do grupo de pessoas que querem ?diabolizar? a internet ou a televisão. Acho esses dois meios de comunicação maravilhas do engenho humano. O que quero dizer é que o engodo desse ?voyeurismo? está no fato de que os indivíduos acabam descobrindo o que já sabem, ou seja, que os outros são exatamente iguais a eles no modo de pensar, agir, sentir, desejar, querer, ter prazer etc. Em última instância, esse voyeurismo social equivale, como disse Wittgenstein, a testar a fidedignidade da informação de um jornal, consultando vários exemplares do mesmo jornal. Das duas uma: ou esse tipo de espetáculo vai apelar cada vez mais para o escabroso – que é a saída da pornografia – ou vai perder todo o interesse e se tornar tão atraente e excitante quanto – com perdão da gíria – ?um rodízio de chuchu?.

Diante da exacerbação do sexo, como é possível que permaneça a idéia romântica do casamento e da fidelidade conjugal?

JFC – Esses ideais persistem como o ?último porto? onde pode se abrigar nosso desejo de ser ?algo mais? além de sexos e corpos consumidores de sensações e produtos industriais. Por mais que queiramos encabrestar a liberdade humana, somos seres de imaginação que jamais estarão satisfeitos ou saciados com o que lhes é oferecido. Queremos sempre ir adiante, queremos sempre outra coisa, e é nisso que confio para acreditar que vamos ultrapassar esse período de ?entressafra? na produção de sonhos de uma vida melhor e mais digna. A saída amorosa e a da fidelidade são como que as últimas trincheiras de uma cultura sitiada pela ?moral do dinheiro?, ou seja, pelo incentivo obsceno à voracidade, a inveja, a ganância, ao cinismo e a corrupção. Mas acredito que outros sonhos virão engrossar as fileiras dos que querem voltar a se interessar pelo mundo e pelos outros, de uma maneira nova, sem saudosismos passadistas, mas também sem rendição ao que de pior fomos capazes de inventar.

Contraditoriamente, esta ênfase no sexo e no prazer pode significar a infantilização de homens e mulheres?

JFC – Não creio que os adultos estejam se infantilizando – quem dera! Estamos encolhendo nossa capacidade criativa, fazendo-a girar em torno de nosso sexo e de nossos corpos, mas com os instrumentos de força, violência e dissuasão físico-morais que só adultos podem ter. Isso é o pior. Empregamos nossa potência para os fins mais tacanhos e irrelevantes. Ainda bem que já existem milhares, quando não milhões, de outros adultos, brasileiros como nós, que saíram dessa apatia e dessa ?obsessão perniciosa? consigo para olhar o mundo ao redor. Outro dia li uma estatística na qual era dito que o número de brasileiros engajados em trabalhos de voluntariado ou em trabalhos remunerados com fins sociais já somava algo em torno de três milhões de pessoas. Isso é animador; isso é mostra que somos mais, muito mais, que as imagens estereotipadas, apequenadas, grudadas na própria pele, que nos querem obrigar a engolir espírito a dentro."

 

ENSAIO, WISNIK & WTC

"Entre as bombas e o silêncio", copyright Folha de S. Paulo, 17/03/02

"segunda-feira, dia 11 de março. Ansiosos, os telejornais registram o primeiro ?meio-aniversário? dos atentados terroristas contra Nova York: há meio ano, há exatos seis meses, as duas torres do World Trade Center eram atingidas pelos aviões de carreira. Agora, as explosões retornam ao horário nobre. Bolas de fogo derretem os edifícios retilíneos, os bombeiros em fila correm para o próprio extermínio, uma avalanche de fuligem varre as esquinas da capital do mundo. As imagens voltam como um recado ameaçador: vivemos sob a égide das duas torres desaparecidas. Elas são as duas pedras fundamentais da novíssima ordem mundial, pedras que se instauram no instante mesmo em que viram pó. Em que desmancham no ar. A televisão as mantém em eterno processo de pulverização e sacralização. Os atentados não estão no passado. Estão no presente. São o presente.

O ?meio-aniversário? tem lá sua pirotecnia. Fachos de luz demarcam o espaço antes ocupado pelos dois arranha-céus de concreto. Efeitos especiais funéreos. O luto é solene, excessivo e brega. Em toda parte, autoridades, líderes religiosos e criancinhas tomam parte nas cerimônias, chorando, declamando, rezando. A data proclama que as duas torres seguirão desmoronando sem descanso. Seguirão identificando a face do mal. A televisão em gerúndio retumbante dá significado heróico aos escombros, transforma estilhaços em mártires da liberdade, legitima as novas cruzadas da América. Dá sentido a qualquer acidente, até mesmo ao ar de abdução que habita o semblante de George W. Bush. A lógica do espetáculo militarista é uma intimação compulsória, não deixa brechas, obtura os vazios, fecha todas as saídas. O telespectador não tem por onde fugir.

É então que, à meia-noite de terça-feira, a TV Cultura exibe o ?Ensaio? com José Miguel Wisnik. Coisa estranha: aquilo parece acontecer em outro mundo, em outro tempo. O ?Ensaio? tem isso de particular: qualquer que seja o músico que ali se apresenta, o programa é sempre um lapso, é sempre uma suspensão da barulheira paranóica que domina a TV. Sem pressa, o convidado canta e conta histórias à medida que recebe orientações ou perguntas de um entrevistador escondido atrás das câmeras e longe dos microfones. Entre uma fala e outra, entre uma canção e outra, o compositor mergulha em silêncios intermitentes para ouvir e encarar o seu entrevistador. Esses silêncios criam vazios. Lembram a pausa musical, mas não se confundem com ela, pois a pausa musical faz cessar o som sem quebrar o compasso e esses vazios têm o poder de quebrar totalmente o ritmo linear dos programas convencionais.

Tais vazios são o oposto da obsessão da guerra e do dinheiro, que é a de abarrotar cada fração de segundo com mensagens abundantes. São pequenos campos de força contra o apetite das armas e da grana, para as quais todo silêncio é prejuízo e tempo perdido. No ?Ensaio?, as canções são boas e estão a salvo, mas os silêncios são ainda melhores, porque são eles que salvam as canções. São arcos de liberdade.

Há uma certa paz no ?Ensaio?. Do lado de fora, a TV está em guerra santa. O terrorismo é o espetáculo. Mais que matar inocentes, mais que destruir centros de poder, o terrorismo quer ferir o olhar. É no campo de batalha do olhar que os aviões derrubam o World Trade Center. O telespectador que vê os prédios desabando é um mutilado de guerra: vê o mundo cair, ele que nem sabe levitar, tem amputadas de suas retinas as torres que encarnavam a ordem mundial. Ele não tem rota de fuga, pois também o império americano atira contra o olhar, recruta pelo olhar, reduz as platéias a pelotões imaginários, a ódio compactado. É gozado pensar nisso enquanto Wisnik toca. Ele, sim, escapa à fúria dos pelotões. Pelo que canta, pelo que diz e pelo que silencia. O resto é apenas bombardeio."