Tuesday, 17 de September de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1305

Ônibus 174

DOCUMENTÁRIOS

Antônio Brasil (*)

Dois filmes brasileiros lançados recentemente tratam da violência no Rio de Janeiro e devem muito à influência da TV. Mas se você gosta de cinema sério, de qualidade, aqui vai uma dica. Embarque no Ônibus 174 e evite tomar a direção de Cidade de Deus. O primeiro é um excelente documentário dirigido por José Padilha sobre o trágico seqüestro de um ônibus no Jardim Botânico, Rio de Janeiro, transmitido ao vivo pela televisão em junho de 2000 e que culminou com a morte de duas pessoas.

Apesar da pouca divulgação na imprensa, é um filme importante e deveria ser visto por todos. O documentário cinematográfico procura fazer o que a TV jamais sequer tentou: explicar ou contextualizar todas aquelas imagens tão violentas e chocantes que todos sempre adoramos assistir e que depois tentamos rapidamente esquecer. Ônibus 174 poderia e deveria ter sido produzido pela própria TV brasileira em programas de prestígio como o velho Globo Repórter. Mas, infelizmente, não se fazem mais bons documentários para TV por aqui.

Cidade de Deus, dirigido por Fernando Meirelles, por outro lado, é o grande sucesso da temporada e tem a cara do "pior" da nossa ficção na TV. Oferece muita forma, pouco conteúdo e, ao criar pactos de produção com bandidos, nenhum compromisso com a ética. Visto por mais de 2 milhões de brasileiros, segundo seus produtores, é mais um desses fenômenos de mídia do novíssimo cinema brasileiro. Em tempos de globalização e padronização de linguagem cinematográfica voltada para os interesses supremos do mercado, o filme não arrisca muito e também tenta imitar o pior do cinema americano. É um misto da violência gratuita de Máquina Mortífera com os já desgastados truques de narrativa de um Pulp Fiction, de Quentin Tarantino.

A fórmula desse tipo de filme é simples. Apuro técnico na fotografia publicitária com um festival de imagens produzidas por câmera nervosa e ângulos inusitados. A edição é frenética, com muitos efeitos especiais. No velho estilo do filme Pixote,de Hector Babenco, alguns atores são improvisados e podem ficar famosos ou morrer em breve. A qualidade dos diálogos é duvidosa e um roteiro sem pé nem cabeça, de trás para frente. Entendeu? Tanto faz. O público também não entende nada, mas sai do cinema com a impressão de que agora sabe tudo sobre favela, bandidagem e violência no Rio de Janeiro. E ainda por cima utiliza a fórmula mágica do velho cinema mexicano para concluir um filme: no final morre todo mundo e fica tudo por isso mesmo. Esse é o cinema brasileiro com a cara da TV. Velhas idéias num novo formato. Um longo videoclipe ou filme publicitário com todos os estereótipos da vida nas favelas do Rio.

O importante é jamais entediar o público. Corte rápido para a próxima cena. Em meio a essa realidade com cara de anúncio de cigarro, o brasileiro de classe média, aterrorizado, mas curioso, tem a chance de ir ao cinema para dar uma "espiadinha" no perigoso e proibido mundo das favelas cariocas. Com sorte, volta são e salvo para casa protegido por uma polícia corrupta, violenta, mas, apesar de tudo, muito eficiente. Afinal, ainda não fomos todos mortos e sobrevivemos a tantos "Zé Pequenos" ? personagem-bandido principal de Cidade de Deus. Por sinal, convidado de honra da produção em sua noite de estréia. Pode?

O filme, assim como a TV brasileira, é um grande simulacro de ética e de realidade. Tudo parece, mas não é. Ao visitar a Cidade de Deus, todos vão ter a impressão de que, agora, já sabem tudo sobre os traficantes e a vida violenta nas favelas do Rio de Janeiro. Nada de explicações ou considerações éticas. Os moradores se confundem com os bandidos. São todos criminosos degenerados, com o perfil parecido com outro personagem televisivo recente: o perigoso assassino do jornalista Tim Lopes, o tal Elias Maluco. Só para não deixar esquecer: como andam as investigações sobre as "verdadeiras" condições da morte do jornalista? E as responsabilidades dos empregadores? Alguma novidade? Pelo menos, vocês ainda se lembram do Tim Lopes? Deixa pra lá!

Clima de mudanças

Bandidos na TV ou no cinema costumam ser apresentados quase sempre como um bando de loucos, drogados, muito violentos, aterrorizando sempre as pobres e inocentes comunidades onde vivem ou se escondem. O estereótipo agrada e excita a classe média que freqüenta os cinemas ou assiste a TV. Mas no final os bandidos vão ter o fim previsto no roteiro cinematográfico ou pela estratégia policial estabelecida. Vão todos morrer. Talvez, com alguma sorte, tornem-se fotógrafos improvisados ou jornalistas com pouquíssima ética. E quanto ao futuro e às próximas gerações? Não tem jeito mesmo. Segundo o filme, vão todos se tornar bandidos também, é claro.

Em Cidade de Deus, tudo se confunde. Assim como as crianças faveladas, policiais corruptos, e até mesmo os jornalistas, todos tendem a se parecer ou a se comportarem como bandidos. Fazem qualquer coisa por um furo de reportagem ou foto na primeira página. Segundo os realizadores, nas favelas assim como nas redações de jornais a ética é um artigo de luxo, desnecessário, meio supérfluo e fora de moda. Muito parecido com o maravilhoso mundo da publicidade onde os fins justificam os meios. O Brasil ou o Rio de Janeiro, vistos pela ótica cinematográfica do mundo da propaganda made in São Paulo, é sempre muito simples, competente, violento, mas extremamente lucrativo.

Até aí tudo bem. Cinema em tempos de ética publicitária é assim mesmo. Supervaloriza as imagens e diz muito pouco. Passa longe da velha "estética da fome" do Cinema Novo ou da tradicional "pobreza" de recursos do cinema brasileiro. A temática ainda é a mesma, a miséria, mas os orçamentos agora são milionários. Como sempre, o cinema nacional não consegue e pelo jeito nem precisa tentar ser auto-sustentável. Tanto faz ser visto pelo grande público ou não. Não precisa. É sempre bancado por todos nós, quer queiramos ou não. Ainda usufrui de velhos privilégios muito raros para outras produções culturais ? como vídeos experimentais ou programas independentes de TV, por exemplo. Por meio de velhas e paternalistas políticas de "renúncia fiscal", o cinema brasileiro continua privilegiando os grandes realizadores, as superproduções, os negócios financeiros nebulosos. Um número considerável de grandes empresas "caridosas" e oportunistas, entre elas a própria Globo Filmes, comparece nos créditos e nos custos de Cidade de Deus. O lucro é assegurado com apoios culturais na conveniente e lucrativa forma de desconto em impostos. Um ótimo negócio para os produtores, para as empresas e um péssimo negócio para um país com enormes e drásticos cortes em gastos sociais.

Nunca consegui entender por que filme comercial, com produção milionária, precisa de verbas que são desviadas dos cofres públicos e que deveriam financiar hospitais e escolas. No Brasil, custa muito dinheiro mostrar fome, miséria e violência no cinema. Produtores que acreditam tanto no poder do mercado e lucram sempre com ele não conseguem viver ou sobreviver sem recorrer aos inesgotáveis recursos da "viúva". Talvez agora, em clima de mudanças, seja a hora de repensar o financiamento e os objetivos de um cinema brasileiro tipo exportação.

Novos personagens, novas tragédias

E dá-lhe mais um filme caríssimo sobre o Brasil exotique, para inglês ou americano verem e, quem sabe, com um pouco de sorte e com muito lobby internacional, dessa vez consiga finalmente ganhar um Oscar para o orgulho do país. Por incrível que pareça, Cidade de Deus foi misteriosamente selecionado para representar o Brasil na premiação da academia cinematográfica americana na categoria de melhor filme estrangeiro. Lá vamos nós, outra vez. Não vou discutir quais os critérios e quem participou dessa decisão. O cinema brasileiro possui razões, mordomias, financiamentos e processos de seleção para eventos internacionais que a própria razão e a imprensa brasileira preferem desconhecer.

Prefiro embarcar numa viagem mais modesta, segura e com destino completamente diferente. O Ônibus 174, sem os recursos milionários, acordos conflituosos com bandidos ou grandes espaços na mídia, é muito mais ético e honesto em sua proposta de mostrar nossa realidade. Pode não ser tão "divertido" mas, sem gastar muito e sem "efeitos especiais", também trata da violência urbana. Na melhor tradição dos documentários, faz uma investigação cuidadosa com boas entrevistas, garimpa imagens preciosas em arquivos e divulga documentos oficiais importantes sobre os principais participantes da tragédia no Jardim Botânico. Jornalismo investigativo da melhor qualidade.

Segundo seus próprios produtores, "o filme narra a história do seqüestro em paralelo à história da vida do seqüestrador, intercalando as imagens que a televisão fez da ocorrência policial com uma narrativa que revela como um típico menino de rua, carioca, que virou bandido. As duas narrativas dialogam formando uma realidade que transcende a ambas, e que revela ao expectador porque o Brasil é um país tão violento".

Bonito, não é? A divulgação e as intenções são boas, mas o filme é muito melhor. Há muitos anos não se vê no país um documentário ao mesmo tempo tão sério e emocionante. O filme deve seus melhores momentos às magníficas imagens de tantos cinegrafistas de TV, tão competentes e corajosos como desconhecidos e desprestigiados. Eles não possuem o glamour ou os salários dos colegas publicitários, mas também merecem reconhecimento.

Ônibus 174 é imperdível. Uma integração muito bem-vinda com excelentes resultados entre o meio cinematográfico e a TV. Deveria ser exibido em todas as escolas brasileiras. Talvez ajude a evitar outros casos tão ou mais violentos. Mas deveria ser visto, principalmente, por aqueles que vão decidir, nos próximos anos, o futuro de milhares de meninos que ainda estão nas ruas. Nem todos vão ter a chance de tornarem-se "atores famosos" da noite para o dia em superproduções milionárias do cinema.

Se não fizermos nada, assim como o Sandro do Ônibus 174 provavelmente continuarão tentando deixar de ser invisíveis, nos ameaçando nas ruas. Todos procurando desesperadamente ser ricos e famosos numa TV e num cinema que busca cada vez mais público, audiência, novos personagens e novas tragédias.

(*) Jornalista, coordenador do Laboratório de TV, professor de telejornalismo e doutorando em Ciência da Informação pelo convênio IBICT/ UFRJ