Friday, 11 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

O escândalo da hora

WASHINGTON D.C.

O drama do desaparecimento de Chandra Levy, em Washington DC, precisou de quase dois meses para despertar o interesse da imprensa e do público americano. Apesar de ocorrido no início de maio, foi somente no fim de junho que o caso dessa estagiária de 24 anos finalmente conseguiu se desvencilhar do estigma de assunto secundário, condenado até então a pequenas notas no interior dos jornais ou a míseros segundos nos blocos de fechamento dos noticiários locais de televisão.

Foi tamanho o desdém inicial da grande imprensa que, mesmo após
a divulgação pelas agências de notícias,
em 10 de maio, dos primeiros informes sobre o desaparecimento, o
único jornal que pulou de cabeça no assunto foi o
pequeno (e modesto…) The Modesto Bee, da cidade de Modesto
na Califórnia, onde Chandra vivia com a família até
se mudar para Washington. O próprio The Washington Post,
apesar do desaparecimento ter ocorrido praticamente no seu quintal,
só veio dar atenção à investigação
em uma matéria no interior da edição de 16
de maio, seguido dois dias depois pelo Los Angeles Times.

O fato é que o desaparecimento de uma pessoa é uma ocorrência
policial rotineira. Segundo dados do FBI, um total de 98.456 casos
de pessoas desaparecidas eram investigados nos Estados Unidos no
início de junho. Mas com a entrada de um político
no quadro, o caso de Chandra deixou de ser um entre 98.456 para
se tornar praticamente o único, ao menos na visão
da mídia. E a história se graduou com tamanha intensidade
para o esplendor das primeiras páginas e para a alta rotatividade
nos canais de notícias que acabou despertando uma certa nostalgia
por uma outra estagiária famosa: Monica Lewinsky.

As semelhanças são muitas. Assim como Monica, Chandra era uma jovem californiana, estagiando em um órgão do governo federal em Washington, onde acabou se envolvendo com um político casado e muito mais velho ? neste caso, Gary Condit, um membro democrata do Congresso, eleito pelo município de Modesto, na Califórnia (o mesmo de Chandra). A diferença é que além das repercussões políticas, o maior resultado do affair de Monica Lewinsky e Bill Clinton é a lembrança de um vestido manchado e um charuto umedecido. Já no caso de Chandra, tudo leva a crer que ela tenha sido vítima de alguma forma de violência, devendo-se ressaltar que não existe nenhuma suspeita sobre Gary Condit, mesmo com a agravante de ter tentado esconder o seu relacionamento íntimo com a jovem.

Para a imprensa americana, o amadurecimento desse drama foi como um sopro de ar fresco na flacidez jornalística reinante desde a posse de George W. Bush. Em termos de escândalos, o máximo que se conseguiu espremer em 6 meses de governo foi um suco meio aguado das aventuras das filhas adolescentes do presidente, supreendidas pela polícia tentando comprar bebidas alcoólicas com carteiras de identidade falsificadas. E com a crise econômica afetando os lucros das empresas de mídia, nada como um bom escândalo envolvendo a elite política em Washington para estimular a circulação e a audiência. É mais um reflexo da "maré-tablóide" que ameaça afundar os últimos vestígios de integridade jornalística nos meios de comunicação do país.

À frente dessa onda estão os canais de notícias
da CNN, Fox e NBC, todos transmitidos por cabo. Conforme revelou
Howard Kurtz, do Washington Post, esses canais chegaram a
repetir a matéria em uma rotação de 12 minutos
durante a segunda semana de julho ? o equivalente a uma entrada
após cada bloco comercial. Não que isto seja uma grande
surpresa, já que em função do custo de manter
um noticiário permanentemente no ar, esses canais tendem
a reportar em excesso e investigar com parcimônia.

Acompanhando de perto, estão os programas matinais das 3 maiores redes de TV ? Today da NBC, Good Morning America da ABC e The Early Show, da CBS ?, que juntos chegaram a transmitir um total de 140 minutos sobre o assunto até a semana passada, conforme constatou Peter Johnson, do jornal USA Today.

Em um distante mas ainda respeitável terceiro lugar aparece
o time dos tablóides, incluindo no ataque o New York Daily
News
e o New York Post, ambos diários e distribuídos
em Nova York, auxiliados no meio de campo pelos semanários
National Enquirer, Globe e Star, distribuídos
nacionalmente. Foi inclusive o Star que conseguiu a contribuição
mais significativa da imprensa à investigação
até agora, ao noticiar o romance de Gary Condit com uma aeromoça,
o que acabou por precipitar a sua admissão do relacionamento
com Chandra Levy.

Mas toda regra tem uma exceção, e neste caso específico a menção honrosa ficou com o noticiário noturno da CBS ? cuja produção é independente dos outros programas jornalísticos da rede ?, que, até a semana passada, n&atildeatilde;o havia feito nenhuma alusão à Chandra ou Condit. Apresentado em cadeia nacional às 18:30 pelo âncora Dan Rather (em competição direta com os noticiários de ABC e NBC), a opção do CBS Evening News de não noticiar o assunto causou uma polêmica paralela, com matérias nos principais jornais e nos fóruns de imprensa.

Uma hipótese discutida é de que mais do que uma decisão baseada nos méritos da questão ? que do ponto de vista de Jim Murphy, produtor executivo do CBS Evening News, são dois assuntos separados: o desaparecimento de Chandra de um lado e as infidelidades conjugais de Condit, do outro ? existe a forte possibilidade de que a CBS estava apenas tentando se diferenciar perante o público como uma rede com valores morais supostamente mais altos.

Infelizmente toda esta discussão se tornou irrelevante com
a edição de sábado, 14 de julho, do CBS
Evening News
, que sucumbiu à tentação e
não hesitou em mostrar o assunto já na segunda matéria.
Mas mesmo este fato não tirou por completo o mérito
do time titular da CBS, pois as versões dos fins de semana
do programa são produzidas e apresentadas por uma equipe
suplente, e transmitidas para uma audiência substancialmente
reduzida em comparação aos dias úteis.

Já a atuação da ABC News deixou muito a desejar, colocando em xeque a própria integridade da rede. Conforme se sabe agora, Gary Condit teve um encontro rotineiro em 2 de maio com uma produtora da ABC News, cujo nome não foi revelado. Só que ele informou à polícia que o encontro teria ocorrido no fim da tarde de 1? de maio, justamente o dia do desaparecimento de Chandra Levy. Apesar de ciente da discrepância das datas, a ABC News só revelou o fato na edição de 11 de julho do programa Nightline, quando se viu pressionada a negar a veracidade de uma matéria publicada no New York Post e difundida pela Fox News (ambos de propriedade de Rupert Murdoch), alegando que a tal produtora da ABC também estaria tendo um affair com Gary Condit.

Enquanto a baixaria continua com força total, a melhor definição para a questão enfrentada pela imprensa na cobertura de Chandra Levy foi o título de um comentário de Paul Brownfield, no Los Angeles Times: "To cover or not to cover" (Cobrir ou não cobrir), em uma alusão jornalística à questão levantada por William Shakespeare sobre a essência do ser. Mas, infelizmente, para o público, a procura por uma resposta ao dilema primordial que tanto eludiu Hamlet não parece ter um paralelo no dilema profissional colocado agora à imprensa americana.

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