Thursday, 09 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

O último caldo de cultura

BERNARD PIVOT

Leneide Duarte, de Paris

O último Bouillon de culture (Caldo de cultura) do canal público de televisão France 2, apresentado na sexta-feira, dia 29, às 22h50, não teve choro nem velas. Ao contrário, foi regado a Bourgogne por Bernard Pivot e seus convidados. O programa mais cult da história da televisão francesa chegava ao fim em clima de celebração. E Pivot tinha razão para comemorar. Encerrou a carreira de Bouillon como o mais popular e respeitado jornalista da França e o preferido por 28% dos franceses para ocupar o ministério da Cultura.

Os fiéis espectadores do programa ? 850 mil nos dias normais e mais de 1 milhão no último programa ? não tiveram do que se queixar. Com uma gama de convidados que iam do acadêmico Jean d’Ormesson à atriz Isabelle Huppert, o derradeiro Bouillon foi um espetáculo cheio de estrelas. Para isso, os editores providenciaram um florilégio do que foi visto de melhor em toda a história do programa. Os momentos mais emocionantes, os mais engraçados, as frases mais brilhantes. Um show de inteligência, humor e glamour com Woody Allen, Marcelo Mastroianni, Françoise Sagan e Catherine Deneuve, entre outros. Houve também momentos emocionantes como o autor do best-seller Balzac e a costureirinha chinesa agradecendo a Pivot, do set de filmagem na China, o fato de estar podendo fazer um filme sobre o livro. Sem uma ida do autor ao programa, A costureirinha não teria se tornado o best-seller mundial que foi e não estaria agora sendo filmado pelo próprio autor.

O último programa teve um convidado especial: o jornalista americano James Lipton, que apresenta o programa Inside the Actor?s Studio", no canal Bravo. Fã incondicional de Bernard Pivot, que viu pela primeira vez, na década de 80 no programa Apostrophes, Lipton contou que ficou fascinado pela inteligência e pelo que o programa tinha de "civilizado". Ao mesmo tempo que diz que gostaria de fazer um programa semelhante nos EUA, Lipton acha que isso é impossível. "As redes americanas são hostis a tudo que é cultural e civilizado. E as públicas especializadas em programas culturais estão sempre à procura de dinheiro. Meu programa mesmo pode ser considerado um milagre, uma aberração".

Aos 66 anos, Pivot deixa o programa que criou há quase 30 anos coberto de glória. Foi o assunto predileto das editorias de cultura da imprensa francesa durante duas semanas. Foi capa das revistas Lire (que ele mesmo fundou em 1975 e dirigiu até 1993), Nouvel Observateur e Télérama; e mereceu páginas e mais páginas nos mais importantes jornais do país. Uma unanimidade. Todos lamentavam sua partida. "A fórmula se esgotou", justificou Pivot. "Acho que foi-se o tempo de fazer na TV uma coisa do tipo salão do século 18".

Como um jogador que se aposenta em plena glória, Pivot se retirou de cena com poucas vozes dispostas a criticar seu estilo ou a receita de seu programa. E o que era este senão uma espécie
de salão mundano em que alguns escritores falavam de suas obras? Com uma vantagem. Havia Pivot, uma espécie de porta-voz do espectador, fazendo perguntas (muitas vezes acusadas de ingênuas) sobre o livro, sobre o próprio autor, sua vida, seus hábitos, sua relação com a escrita. Mas o que poderia parecer ingenuidade era, na verdade, um agudo senso de oportunidade, uma forma de fazer a pergunta que o telespectador faria. "Eu não fazia o papel nem de ingênuo nem de idiota, mas de alguém que quer se informar", justifica ele.

Paixões intelectuais

Muitos poucos escritores franceses do tipo Rubem Fonseca recusaram convites, por não gostarem do veículo ou serem avessos a entrevistas. Entre as frustrações de Pivot, contam-se inúmeros escritores que sempre se recusaram a ir ao programa, como Cioran, Jean Genet, Henri Michaux e Julien Gracq. O mais importante convidado que disse "não" foi o papa João Paulo II. Por ocasião do lançamento do livro de André Frossard ? Não tenham medo, diálogo com João Paulo II ? Pivot quis entrevistar o Santo Padre. Depois de muitas negociações entre o editor francês e o Vaticano, a resposta foi não. O caso chegou a criar uma cisão entre os prelados italianos, que eram contra a entrevista, e o clã polonês do Vaticano, favorável à entrevista do Papa a Pivot. Venceram os italianos.

Outros, como o novo filósofo Bernard-Henri Lévy, foram assíduos freqüentadores. Lévy foi 16 vezes "chez Pivot", inclusive ao penúltimo programa, transmitido de Sarajevo. Mas o campeão foi Jean d?Ormesson, com 24 aparições, seguido de Philippe Sollers, com 20. Entre os brasileiros, Paulo Coelho, Caio Fernando Abreu, Chico Buarque e Jô Soares tiveram a honra de ser apresentados ao público francês por Pivot. Também os novos filósofos franceses ? dos quais Bernard-Henri Lévy e André Glucksman são os mais conhecidos ? devem a Pivot a popularidade,
graças a uma ida ao Apostrophes, em maio de 1977.

Participar do Bouillon era uma garantia de vendas extraordinarias comemoradas por autores, editores e livreiros. Ninguém passava pelo programa impunemente. Antes do atual, o jornalista comandara nos mesmos moldes dois outros: Ouvrez les guillemets ("Abram aspas"), de 1973 a 1974, e Apostrophes, de 1975 a 1990. O salão de Pivot funcionava com sucesso por duas razões importantes: instigados pelo apresentador que lera (realmente) todos os livros apresentados, os escritores comentavam a arte da escrita, faziam importantes revelações, se divertiam e diziam coisas inteligentíssimas. Ou se embriagavam diante dos espectadores ? como Charles Bukowski, que, num programa de 1978, tomou um porre homérico de vinho branco, pediu licença para ir fazer pipi (depois de seis garrafas de Sancerre) e capotou.

Os elogios ao estilo Pivot de ser, à sua simpatia, descontração, capacidade de pôr os convidados à vontade e arte da pergunta pertinente encheram páginas de jornais e revistas. Na França, o grande país da arte da conversa e das paixões intelectuais, Pivot fez sucesso porque colocou na tela uma uma fórmula precisa, ancorada num velho hábito da elite francesa, o do salão literário e sua conversação. "A atmosfera do estúdio deve ser a de um jantar e não a de uma recepção na Academia", ensinava o bem-sucedido jornalista, apontado pela mídia como alguém feito para a televisão.

Efeito Pivot

A fórmula de salão, onde se conversa sobre literatura e livros com vários autores consagrados e outros menos conhecidos, foi mudada poucas vezes. Foram poucos os tête-à-t&ececirc;te históricos: com Vladimir Nabokov (1975), Albert Cohen (1977), Georges Simenon (1981), Alexandre Soljenitsin (1983), Marguerite Duras (1984) e Georges Dumézil (1986). Muitos se perguntam por que o gigante Jean-Paul Sartre nunca foi ao Apostrophes, que existia havia cinco anos quando
o escritor morreu? Dizem que Simone de Beauvoir se opunha à ida de Sartre porque não perdoava a Pivot ter criticado um de seus romances.

Outros, como Régis Debray, que em outubro de 1982, quando era conselheiro do então presidente François Mitterrand, denunciou a "ditadura de Apostrophes" e despertou uma grande polêmica, renderam-se, como a maioria dos intelectuais, ao charme de Pivot. Três anos depois desse ataque, Debray foi convidado e aceitou ir ao Apostrophes falar de seu novo livro. Foi a segunda vez que sentou-se com Pivot diante das câmeras; a primeira, em 1975.

No currículo do programa, entrevistas com dois presidentes: Mitterrand, em fevereiro de 1975, quando ainda era secretário-geral do Partido Socialista, e Giscard d?Estaing, já como presidente, falando sobre o lançamento das obras completas de Maupassant, de quem é leitor apaixonado.

Depois do programa, o "efeito-Pivot" costumava ser comemorado por todos, livreiros, editores e autores. Ir ao programa era a melhor forma de garantir visibilidade a um autor e uma obra e fazer best sellers, anunciados em cartazes nas livrarias como "O livro que apareceu em ?Bouillon? (ou em ?Apostrophes?).

Uma das maiores características do estilo Pivot era a arte de perguntar. A pergunta certa, inesperada, com uma ponta de humor ou ironia, na medida certa: "Mme. Jong, os homens que vão para sua cama vão para seus livros?", disparou Pivot a Erica Jong, autora de best sellers eróticos.

Rei Ler

Pivot só poderia ter feito o sucesso que fez com dedicação e muito, muito trabalho. Ele reservava a maior parte de seu dia à leitura. "Minha felicidade, meu vício e minha paixão é a leitura", diz ele, que dedicava 14 horas de seu dia à leitura dos livros dos autores que ia entrevistar. Por isso, para manter seu tempo de leitura e sua liberdade, nunca aceitou fazer comerciais nem quis criar uma empresa de produção. Sempre declarou ter orgulho de pertencer ao serviço público. "Tenho alma de artesão e não de dono de empresa", justificava.

Ao apelidá-lo de "rei Ler" (Roi Lire), a imprensa francesa fez um trocadilho shakespeareano que lembra, ao mesmo tempo, a paixão do jornalista pela leitura e a revista que ele fundou. O rei Ler ajudou como ninguém os franceses a amar os livros, a comprá-los, a lê-los. A dessacralizá-los, tornando os grandes escritores tão familiares e próximos quanto qualquer grande astro. Aliás, astros nunca faltaram ao charme do programa. Woody Allen foi, Jane Fonda também. Iam lançar seus livros e falar de seu trabalho. Por isso, muitas pessoas acusavam Pivot de ter feito concessões ao espetáculo de variedades, passando a se ocupar mais de livros que de literatura.

O rei Ler é um bon vivant, que se autodefine como um francês comum. Amador de vinho e de futebol, esse francês da safra de 1935 tem uma biografia quase banal. Seus pais, Marie Louise Dumas e Charles Pivot, tinham uma loja de alimentação em Lyon, onde Bernard nasceu e estudou. Depois de um ano de direito, Pivot cursou o Centro de Formação de Jornalistas, em Paris. Em 1958, começou a trabalhar no suplemento literário do jornal Le Figaro. A partir daí, sua vida seriam os livros.

Discreto, reservado e pouco disposto a misturar vida pessoal e profissional, Bernard Pivot nunca quis ser amigo dos escritores. Não que não faltassem oportunidades. Marguerite Duras chegou a telefonar algumas vezes para sua casa, em torno às 2 horas da madrugada, nas semanas seguintes a sua participação do programa, em 1984. "Tive medo", confessa Pivot.

O jornalista volta à TV em janeiro do ano que vem, com um programa mensal no canal France 2. Por enquanto, Pivot mantém segredo sobre o projeto.

    
    
             

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