Thursday, 09 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

>"O público e a multidão", in A Opinião e as Massas, Livraria Martins Fontes Editora, 1992

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ESPECIAL 3+5

OBSERVADORES DE CARTEIRINHA
Gabriel Tarde

"O público e a multidão", in A Opinião e as Massas, Livraria Martins Fontes Editora, 1992

A multidão não apenas é atraente e seduz irresistivelmente seu espectador, mas seu nome exerce um prestigioso encanto sobre o leitor contemporâneo, e certos escritores são facilmente levados a designar por essa palavra ambígua todos os tipos de agrupamentos humanos. Convém fazer cessar essa confusão e, em particular, não confundir com a multidão o público, vocábulo igualmente suscetível de acepções diversas, mas que vou tratar de especificar. Diz-se: o público de um teatro, o público de uma assembléia qualquer; aqui, público significa multidão. Mas esse significado não é o único nem o principal, enquanto sua importância decresce ou permanece estacionária, a idade moderna, desde a invenção da imprensa, fez surgir uma espécie de público bem diferente, que não cessa de crescer e cuja expansão indefinida é um dos traços mais marcantes de nossa época. Fez-se a psicologia das multidões; resta fazer a psicologia do público, entendido nesse segundo sentido, isto é, como uma coletividade puramente espiritual, como uma disseminação de indivíduos fisicamente separados e cuja coesão é inteiramente mental. De onde procede o público, como ele nasce, como se desenvolve; suas variedades; suas relações com seus dirigentes; suas relações com a multidão, com as corporações, com os Estados; sua força para o bem ou para o mal e suas maneiras de sentir ou agir: eis o que nos propomos pesquisar neste estudo.

Nas sociedades animais mais inferiores, a associação consiste sobretudo num agregado material. À medida que se sobe na árvore da vida, a relação social torna-se mais espiritual. Mas se os indivíduos se afastam a ponto de não mais se verem ou de permanecerem afastados além de um certo tempo muito curto, eles cessam de estar associados. Ora, a multidão, nesse aspecto, apresenta algo de animal. Não é ela um feixe de contágios psíquicos essencialmente produzidos por contatos físicos? Mas nem todas as comunicações de espírito a espírito, de alma a alma, têm por condição necessária a aproximação dos corpos. Cada vez menos essa condição é preenchida quando se desenham em nossas sociedades civilizadas correntes de opinião. Não é em reuniões de homens nas ruas ou na praça pública que têm origem e se desenvolvem esses rios sociais [notemos que essas comparações hidráulicas vêm naturalmente ao espírito toda vez que nos referimos a multidões, ou a públicos. Nisso eles se assemelham. Uma multidão em marcha, uma noite de festa pública circulam com uma lentidão e redemoinhos numerosos que lembram a idéia de um rio sem leito preciso. Pois nada é menos comparável a um organismo que uma multidão, a não ser um público. Eles são, muito mais, cursos d?água de regime mal definido], esses grandes arrebatamentos que hoje tomam de assalto os corações mais firmes, as razões mais resistentes e fazem os parlamentos ou os governos lhe consagrarem leis ou decretos. Coisa estranha, os homens que assim se empolgam, que se sugestionam mutuamente, ou melhor, que transmitem uns aos outros a sugestão vinda de cima, esses homens não se tocam, não se vêem nem se ouvem: estão sentados, cada um em sua casa, lendo o mesmo jornal e dispersos num vasto território. Qual é, pois, o vínculo que existe entre eles? Esse vínculo é, juntamente com a simultaneidade de sua convicção ou de sua paixão, a consciência que cada um deles possui de que essa idéia ou essa vontade é partilhada no mesmo momento por um grande número de outros homens. Basta que ele saiba disso, mesmo sem ver esses homens, para que seja influenciado por estes tomados em massa, e não apenas pelo jornalista, inspirador comum, ele próprio invisível, desconhecido e, por isso mesmo, ainda mais fascinante.

O leitor, em geral, não tem consciência de sofrer essa influência persuasiva quase irresistível do jornal que lê habitualmente. Já o jornalista teria ao menos consciência de sua complacência para com seu público, cuja natureza e cujos gostos não esquece jamais. O leitor tem menos consciência ainda: não suspeita em absoluto da influência exercida sobre ele pela massa dos outros leitores. Mas essa influência é incontestável. Ela se exerce, ao mesmo tempo, sobre sua curiosidade, que se torna ainda mais viva se ele a sabe ou a crê partilhada por um público mais numeroso ou mais seleto, e sobre seu juízo, que busca conciliar-se como o da maioria ou da elite, conforme o caso. Abro um jornal que julgo ser do dia e nele leio com avidez certas notícias; depois me dou conta de que data de um mês, ou da véspera, e ele deixa de me interessar imediatamente. De onde provém esse desgosto súbito? Os fatos relatados por acaso perderam seu interesse intrínseco? Não, mas dizemo-nos que somos os únicos a lê-los, e isso basta. Tal fato prova, pois, que nossa viva curiosidade prendia-se á ilusão inconsciente de que nosso sentimento nos era comum a um grande número de espíritos. Ocorre com um jornal da véspera ou da antevéspera, comparado ao do dia, o mesmo que com um discurso lido em casa comparado a um discurso ouvido em meio a uma imensa multidão.

Quando sofremos sem perceber esse invisível contágio do público de que fazemos parte, somos levados a explicá-lo pelo simples prestígio da atualidade. Se o jornal do dia nos interessa a esse ponto, é que ele nos relata fatos atuais, e seria a proximidade desses fatos, não a simultaneidade de seu conhecimento por nós e por outrem, que nos apaixonaria por seu relato. Mas analisemos bem essa sensação de atualidade, que é tão estranha e cuja paixão crescente é uma das características mais nítidas da vida civilizada. O que é reputado "atualidade" é apenas o que acaba de acontecer? Não, é tudo o que inspira atualmente um interesse geral, mesmo que se trate de um fato antigo. Foi "atualidade", nesses últimos anos, tudo o que concerne a Napoleão; é atualidade tudo o que está na moda. E não é "atualidade" o que é recente mas negligenciado atualmente pela atenção da opinião pública, orientada noutra direção. Durante todo o caso Dreyfus, ocorriam na África ou na Ásia fatos capazes de nos interessar muito, mas foi dito que eles não tinham nada de atual. Em suma, a paixão pela atualidade progride com a sociabilidade, da qual ela não é mais que uma das manifestações mais impressionantes,. E como é próprio da imprensa periódica, da imprensa cotidiana sobretudo, só tratar dos assuntos da atualidade, não devemos nos surpreender com ver formar-se e estreitar-se entre os leitores habituais de um mesmo jornal um espécie de associação pouquíssimo notada e das mais importantes.

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