Friday, 04 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Uma alternativa às câmeras ocultas

TIM LOPES (1951-2002)

Antônio Brasil (*)

Câmeras ocultas matam jornalistas e a ética profissional. Sempre fui contra. Considero uma prática jornalística polêmica e perigosa, tanto para a segurança dos nossos colegas, quanto para a ética da nossa profissão. Infelizmente, aquilo que sempre temi ? e sobre o que há anos tento alertar ? finalmente pode ter acontecido. O repórter da Rede Globo Tim Lopes, Prêmio Esso de Telejornalismo, foi declarado morto pela emissora (em plantão deste domingo). Um corpo carbonizado e algumas fitas de vídeo já haviam sido localizados na mesma favela onde Tim Lopes investigava com microcâmera uma denúncia sobre menores explorados sexualmente em bailes funk.

Não basta culpar a violência, os traficantes ou o descaso das autoridades. A prática das câmeras ocultas também pode ter criado sua primeira vítima no Brasil, e o debate sobre os limites do jornalismo investigativo, dessa tecnologia e do papel da ética em nossos telejornais está finalmente aberto. Assim como em outros assuntos polêmicos, cuja discussão mais séria insistimos em adiar, o debate sobre as câmeras ocultas aguardava uma vítima.

Será que um jornalista que recebe a denúncia de um crime não deveria, necessariamente, obedecer à lei e dirigir-se a uma delegacia ou ao Ministério Público, mesmo acreditando que existe grande possibilidade de nada ser feito? Será que, enquanto jornalistas, teríamos o direito de decidir o que é certo ou errado, legal ou ilegal? Será que a possibilidade de uma matéria importante e exclusiva justifica o risco de ocultar-se uma ferramenta profissional tão poderosa quanto uma câmera, e o que é ainda pior, justificaria ocultar às possíveis fontes a natureza da profissão de jornalista? Um dos principais preceitos do jornalismo ainda é a constante busca da verdade. Será que para obter essa verdade estaríamos dispostos a mentir, mesmo que com os melhores motivos? Quais as situações de exceção que justificam a liberdade para mentir? Pode-se mentir só de vez em quando? Os fins justificariam os meios?

Não consigo entender que um jornalista praticando jornalismo investigativo ou produzindo qualquer matéria tenha o direito de não se identificar. Pode ser eficiente, mas não me parece legítimo. Talvez seja idealismo ou mesmo burrice, mas prefiro qualificar a necessidade de identificar-se sempre como parte de nossa "ética profissional" ou dos limites de nossa profissão. Para sobrevivermos, literalmente, precisamos respeitar e defender esses limites. Nem todo jornalista quer ganhar prêmios ou ficar famoso. Muitos só querem poder trabalhar em condições dignas e, de preferência, que ninguém nos obrigue a práticas profissionais consideradas duvidosas.

Imagens a qualquer custo

Assim como o uso de câmeras ocultas, mentir também é muito perigoso. Abre precedentes que põem em risco não só o futuro do jornalismo, mas também o futuro de colegas que optaram por caminhos menos glamourosos, mais impessoais, porém não menos dignos para exercer essa profissão.

Em outras épocas que, sinceramente, gostaríamos, mas não podemos esquecer, equipes de televisão também faziam tudo para obter imagens e sucesso junto ao poder. Profissionais de TV visitavam prisões militares para obter declarações "espontâneas" de nossos presos políticos que, obviamente, jamais iriam ao ar. Terminavam nos porões da ditadura. Eram pequenos serviços ou trocas de favores pelos serviços prestados ao poder vigente na época. Os tempos e os jornalistas eram sombrios, mas as câmeras não eram ocultas ou sequer disfarçadas. Ocultas eram as intenções dos editores que, assim como hoje, insistiam em agradar ao poder, qualquer poder. Esse poder hoje não é mais somente político. Ele se confunde com o consumo, o índice de audiência ou, simplesmente, com a necessidade de agradar sempre ao público. Damos aquilo que eles querem ver, não importa como e por quê. Matérias de apelo fácil, com elementos de sexo e drogas, são sempre sucesso garantido.

Afinal, as palavras, em texto ou em declarações para as câmeras, já foram tão repetidas e estão tão desgastadas que não parecem mais causar efeito no público, nos editores e muito menos nos dirigentes. Todos já estamos cansados de saber que existe tráfico de drogas nas favelas e corrupção no governo. O que falta é vontade política para se fazer alguma coisa a respeito, e cabe ao jornalismo informar sobre as causas desses problemas, evitando sempre banalizar seus efeitos. É difícil, mas, pelo menos, deveríamos tentar sempre. Pelo jeito, só as palavras não são mais suficientes. Precisamos mostrar tudo que já conhecemos bem com imagens cada vez mais dramáticas, a qualquer custo.

Agente secreto ou dedo-duro

A profissão já apresenta riscos suficientes, mesmo para os jornalistas que optaram por meios menos ousados de investigar denúncias e que insistem em se identificar de maneira clara. Fico, hoje, imaginando como será daqui para a frente. Qualquer jornalista, com ou sem diploma, resolve fazer o trabalho da polícia e sair por aí investigando denúncias, muitas delas anônimas e irresponsáveis, sobre qualquer assunto. Câmeras ocultas já são anunciadas em qualquer revista especializada, por pouquíssimo dinheiro. Detetives particulares já usam e abusam dessa técnica.

No jornalismo, quem decide quando utilizar uma câmera oculta ou um grampo em telefone? Seria suficiente confiar na ética ilibada de alguns poucos editores abençoados por estarem momentaneamente trabalhando para uma grande emissora de televisão? Não me lembro de ter lido na imprensa algum código de conduta para o uso de câmeras ocultas. Se existe nas TVs brasileiras deve ser secreto e restrito aos diretores. Hoje, mais do que nunca, o interesse público se confunde com o furo de reportagem que se traduz em busca constante de índices de audiência. Será que o telejornalismo estaria disposto a tudo para não mais sofrer o vexame de perder outras guerras de audiência nas noites de domingo?

Quais são os critérios e limites para a utilização de uma arma tão poderosa? Deveriam ser claros, transparentes e referendados pela Justiça. Ela não acerta sempre. Ultimamente tem até se envolvido em casos polêmicos, como a censura à revista CartaCapital. Porém, costuma acertar mais do que a maioria das grandes emissoras de televisão. A história brasileira recente comprova. Não acredito em censura. Mas, assim como grampear telefones é ilegal, não é aceitável que um editor, da Globo ou de qualquer outro veículo de imprensa, possa decidir pela invasão de privacidade de alguém só porque houve uma "denúncia informal" contra qualquer um, seja policial, médico ou político. É claro que existem corruptos, mas acredito que o dever é informar o que é possível.

Sempre me recusei a fazer o trabalho da polícia, da Promotoria de Justiça ou dos bombeiros. Reporto um incêndio da melhor forma possível, mas não tento apagá-lo. É muito perigoso e exige profissionais treinados. Posso arriscar a vida e a vida de pessoas inocentes tentando fazer tudo sozinho. Assim, pego o telefone e chamo os bombeiros, depois ligo para a redação e faço meu trabalho. Simples? Deveria ser, mas não é assim que todos os jornalistas pensam.

Se os órgãos competentes do governo são omissos, devemos, sim, fazer matérias a respeito, demandando ação mais efetiva dos responsáveis. Insisto: jornalista não é agente secreto e, principalmente, não deveria ser "dedo-duro".

Telejornalismo monitorado

Nem toda tecnologia é boa ou pode ser usada por qualquer um. A energia atômica, mesmo para fins pacíficos, é um bom exemplo. Está em debate em países precursores como a Alemanha, com direito a uma agenda para sua desativação em futuro próximo. Esse tipo de tecnologia oferece benefícios, mas também pode ser uma caixa de Pandora, com tantos riscos e ameaças que talvez seja melhor vivermos sem ela. Temos outras alternativas. Por enquanto, podem até ser menos eficientes, mas são certamente menos explosivas e mais seguras. Só precisam de tempo e investimento para se mostrarem viáveis.

E quem se recusa a utilizar as câmeras ocultas? Há alguns anos, durante um debate sobre telejornalismo, ao discutir sobre as câmeras ocultas com editores de um dos nossos principais telejornais e ao declarar que jamais utilizaria essa técnica, a reposta veio fulminante: "Então, eu te demitiria!" Será que jornalista é obrigado ou forçado, pelo medo de perder o emprego, a fazer esse tipo de jornalismo? E os mais jovens? Não estariam sendo seduzidos por mais esse atalho para a fama e o sucesso na profissão?

As imagens das câmeras ocultas não mentem jamais. Alguns acreditam, ingenuamente, que uma imagem não mente jamais. Pelo contrário, elas mentem e muito. Agora mesmo, o Massachusetts Institute of Technology (MIT) anuncia um programa de computador para digitalização de imagem e som que permite a um apresentador de telejornal aparecer falando ao vivo em qualquer língua. É uma tecla SAP digital. Já imaginaram o potencial de mais essa maravilha tecnológica no país do vale-tudo?

Não podemos ou não devemos impedir as novas tecnologias. Não quero ser acusado de neoludita. Não prego a destruição de todas as máquinas. O objetivo é alertar as pessoas e promover um debate mais amplo sobre a monitoração do nosso telejornalismo. A câmera oculta é só um dos nossos problemas. Pode ser excelente recurso para o telejornalismo investigativo, mas também pode ser usado contra inimigos. Ética parece ser uma palavra fora de moda para um mundo que reverencia a tecnologia, qualquer tecnologia. Não se trata de censura, mas de controle. Deveríamos exigir um conselho específico para o telejornalismo, segmento fundamental para a participação efetiva e ampla da sociedade. Imagens produzidas por câmeras ocultas são por demais poderosas para serem privilégio de alguns poucos jornalistas de TV.

Alternativa à falta de criatividade

Assim como a energia atômica, as câmeras ocultas prometem mais do que oferecem. Nos fazem perder o verdadeiro sentido do jornalismo investigativo: muito trabalho, tempo e dedicação com resultados quase sempre incertos.

A alternativa ética e trabalhosa às câmeras ocultas são novas técnicas como o videojornalismo investigativo ou o trabalho do repórter-abelha, como preferem alguns. Estão sempre com suas câmeras digitais, e não ocultam jamais sua identidade de jornalista. Pelo contrário. Ao se integrarem às comunidades, onde atuam por longos períodos, com custos reduzidos para suas empresas, mas sempre com muito empenho e garra, conseguem fazer jornalismo de qualidade.

Talvez não produzam imagens sensacionais como as exibidas pelos nossos jornalistas ocultos, mas, sem dúvida, conseguem resultados mais sérios, duradouros e éticos. O videojornalismo, em vez de ser combatido por alguns colegas, deveria ser estimulado, inclusive pelas grandes emissoras, como a Globo. É uma alternativa viável às práticas de jornalismo investigativo com câmeras ocultas. Além disso, pode ser um bom treinamento para jovens jornalistas, além de contribuir para a diversificação das pautas.

O videojornalismo pode mostrar somente as "curiosidades" do mundo, mas também pode revelar a verdadeira face de diversas comunidades que desejam denunciar seus problemas com a ajuda de jornalistas ? mas de maneira segura e responsável. Formar um núcleo de jovens habilitados a operar câmeras de vídeo discretas e poderosas, mas visíveis, trabalhando durante muitas semanas para investigar pautas menos ortodoxas e previsíveis, pode ser alternativa à falta de criatividade e ao envelhecimento dos telejornais. Sem ameaçar o jornalista ou a ética.

A próxima vítima

Há muitos anos, outros profissionais que também recorrem a imagens para suas investigações, como os antropólogos visuais, já descobriam os benefícios do videojornalismo. Em outra oportunidade, já nos referimos a essas questões [veja remissão abaixo].

O jornalismo tem muito a aprender com a Antropologia, e isso não deveria se resumir a oferecer os rudimentos da disciplina em aulas meio sem sentido nos primeiros e esquecidos primeiros períodos dos nossos cursos superiores de Jornalismo.

Os antropólogos, em suas longas e profundas pesquisas de campo, já perceberam o verdadeiro potencial da câmera para desvendar os segredos mais íntimos das comunidades e das culturas que estudam. Requer paciência, dá trabalho e leva tempo. Nada demais para um jovem jornalista com muita garra e motivação ? e falta de opção.

O caminho do videojornalismo pode não garantir prêmios, mas pode ser mais seguro e confiável do que o atraente atalho para a fama e a fortuna oferecido pelas câmeras ocultas. Fica aqui a sugestão ou a alternativa.

Câmeras ocultas podem matar, e a próxima vítima pode ser você.

(*) Jornalista, professor de Telejornalismo e coordenador do Laboratório de TV da Uerj

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