Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um apresentador especializado em xingologia

Exercer a liberdade de expressão com responsabilidade argumentativa se configura como princípio ético fundamental na atuação jornalística. Preocupa-nos, porém, a postura de certos profissionais de imprensa que, no afã de informar e opinar, adotam um estilo autoritário na construção de julgamentos, sem a devida consistência argumentativa temperada pela análise atenciosa, apurada e plural. Nesse sentido, infelizmente, percebe-se, na mídia brasileira, a consagração de um estilo editorial que resolvemos chamar de Padrão Datena de Jornalismo. Fazemos aqui referência direta a um dos mais influentes comunicadores do Brasil, José Luiz Datena, apresentador do programa sensacionalista Brasil Urgente, transmitido pela Rede Bandeirantes.

O prestígio popular gozado por Datena provém de sua performance apelativa, ao se comportar como paladino da moral e dos bons costumes. Ao se comportar como justiceiro e protetor dos fracos e oprimidos, o repórter encontra respaldo na inoperância do Estado para se agigantar, de maneira populista e demagógica, frente à opinião pública. Para compreender melhor o tom acusatório presente nos inflamados veredictos proferidos pelo apresentador, convém avaliar o referido fenômeno à luz das reflexões trazidas por Michel Foucault em seu livro Vigiar e punir: história da violência nas prisões (1975). O filósofo francês expõe, com minúcia de detalhes, o histórico do sistema penitenciário. Primeiramente, o criminoso sofria na própria pele a sua pena. Tal punição ocorria nas ruas e em praças públicas. Depois, o mecanismo de sanção experimenta um viés reservado em matéria de local para a sua aplicação, com o encarceramento do infrator nos presídios. Desse modo, o poder de punir ou de vigiar e punir se concentrou na esfera restrita da ação jurídica do Estado, respeitando o trâmite legal para o exame do processo. Este distanciamento, proveniente da mudança em termos de concepção e aplicabilidade penal, vai de encontro à curiosidade pública de acompanhar passo a passo o episódio criminoso.

Vigilantes neste sentido, os meios de comunicação logo se arvoram na transmissão do fato, repercutindo seus aspectos elementares e, principalmente, inusitados. O objetivo da cobertura midiática sobre a criminalidade se concentra, predominantemente, na ventilação calorosa de uma resposta ao público, que abarque, com agilidade instantânea impossível, o problema e a solução. Com precipitação, jornalistas destemperados, a exemplo de Datena, aplicam sanção pública, ao punir direta e indiretamente pessoas, sendo estas expostas a um verdadeiro massacre teleguiado. Trata-se de uma ação irresponsável que colide com os princípios jurídicos fundamentais, quais sejam: ampla defesa, princípio do contraditório, plena informação.

Os “pitbulls de microfone”

Repete-se, deste modo, em escala tecnológica, o espetáculo da barbárie que movimentava a praça pública. Com requinte de crueldade, o Padrão Datena de Jornalismo reproduz o fenômeno do retorno da pena à rua e, midiaticamente, devolve ao corpo do indivíduo – marcado pela ampla exposição pública – o ponto-suporte de aplicação da penalidade. O estilo truculento do apresentador confere voz a um tipo de moral coletiva rudimentar que confunde “vigiar e punir” com “zelar e compreender”. Remonta, também, um passado-presente que marca uma tradição jornalística obtusa, presa aos tempos da propagação de insultos desbocados e virulentos, ofuscando análises contundentes e sérias. Datena é expert em “xingologia” – neologismo genial criado pelo jornalista Carlos de Laet em sua coluna “Microcosmo”, veiculada no periódico O País de 8/4/1914.

Laet narra uma discussão entre “pessoas que se interessam pela imprensa”, acerca da necessidade de se criar uma escola de jornalismo. Ao longo da acalorada discussão, o autor conta que, segundo o grupo, ficariam dispensadas do quadro de disciplinas estudadas pelo futuro jornalista o Português, a Matemática, a Geografia, a História, a Filosofia, a Sociologia e o Direito, por serem elas prescindíveis para o desempenho da profissão. Já que quase nada restara para compor o currículo do curso e tendo sido dispensadas mesmo as “matérias” mais prosaicas (como a esgrima ou o tiro), chegou-se à conclusão de que deveria ser contemplada a matéria de Mitologia. Como parecera aos debatedores que o curso se apresentava insuficiente, aventou-se a ideia de acolher outra matéria, “Xingologia”. A respeito, Carlos de Laet pinta o quadro com as cores vivas da ironia:

“Então um dos assistentes, que até ali se mantivera em silêncio, pediu a palavra e propôs a criação da cadeira da mais importante das matérias, para a qual não havia título próprio, mas que ele chamaria de Xingologia, isto é, a arte de xingar, de injuriar, de insultar, de rebaixar o adversário mediante emprego de vocábulos descomedidos, soezes, ignóbeis e sujos.

Entreolhamo-nos interditos. Só no fim nos raiava a luz! Acabava de ferir-se o ponto essencial do jornalismo contemporâneo. Não era preciso mais nada. Lavrou-se uma ata. O curso terá só duas cadeiras: uma de mitos e ficções, a outra de xingação por escrito.”

Jornalistas como José Luiz Datena transformam a imprensa brasileira em uma fábrica de insultos e atrocidades. Paradoxal ver que o maior dos irados quer combater a ira. Em resposta aos “pitbulls de microfone”, cantemos “Datena da raça”(2008), de Zeca Baleiro: “Eu quero ser o Datena da raça/ O poeta da dor/ O cantor da desgraça do mundo/ A miséria grita/ A miséria dança/ A miséria canta/ A miséria é pop/ Tanta dor na vida/ Da dor se duvida/ O sangue a ferida/ é que dão ibope”.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários