Thursday, 02 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

As imagens que todo mundo vê

Um seminário internacional do audiovisual, realizado na Universidade Federal da Bahia (Salvador, de 28 e 31/3/2005), mostrou entre outras coisas o trabalho que realizado pelo professor Peter Ludes, da Universidade de Bremen, Alemanha. Ludes vem pesquisando há dois anos padrões de visualização transculturais a partir do jornalismo de televisão em quatro países: Alemanha, China, Estados Unidos e Brasil.

O projeto, desenvolvido com Otthein Herzog, professor da mesma universidade, conta com a participação de outras importantes instituições – como as universidades de Kassel, Constanz e o Massachusetts Institute of Technology (MIT), e pode ser lido na sua essência (infelizmente não com os detalhes que instrumentalizem uma análise crítica adequada) clicando aqui . Ele busca localizar o que Ludes chama de ‘chaves visuais’ para a recuperação semi-automática de imagens.

Não são poucos os pesquisadores que têm se aproveitado das facilidades oferecidas pela codificação digital de imagens para se dedicar à busca de chaves que permitam que essas possam se tornar tão facilmente localizáveis quanto o são, por exemplo, palavras em mecanismos eletrônicos de busca. O jornalista Antonio Brasil tem um livro pronto em que propõe um método para isso. Vale a pena também dar uma olhada no artigo do ficcionista Bruce Sterling, ‘Um arrastão de significados’, escrito para a Wired e reproduzido no caderno ‘Mais!’, da Folha de S.Paulo [leia na seção Entre Aspas, desta edição do OI].

Mas não é simplesmente esse o propósito de Ludes. Nos exemplos mostrados em Salvador, ele se fixou na cobertura da guerra do Iraque por uma rede de TV de cada um dos países estudados (no Brasil, foi escolhida a Rede Globo), detendo-se numa forma de análise comparativa das abordagens do conflito.

Noticiário faccioso

O que o estudo mostrou, até esse ponto, foram diferenças de enfoque entre os noticiários das emissoras pesquisadas. Contudo, a pesquisa é falha em não considerar, por exemplo, as diferenças de edição que necessariamente existem entre os noticiários das próprias emissoras. Acima disso, sua maior fragilidade consiste em ter optado por identificar imagens jornalísticas, e não imagens ficcionais, para entender o impacto da globalização sobre a produção audiovisual de diversas partes do mundo. Se tivesse feito isso, comprovaria que formas narrativas, desenhos dos personagens e até elementos cenográficos convergem universalmente para modelos quase iguais de construção audiovisual.

Quem lamentava a fragilização das culturas regionais promovida pela implantação das redes nacionais de televisão, vai amargar agora o esmagamento das culturas nacionais em sociedades onde a sua televisão não encontre meios de sobreviver a isso.

O mais importante do trabalho do pesquisador alemão, no entanto, não está no que é explicitamente mostrado, mas no que ele revela nas entrelinhas – e que estranhamente não mereceu qualquer comentário, exceto de alguns participantes na platéia.

No fundo, o que o estudo está dizendo na forma em que ele foi apresentado é que todos os noticiários mostrados – dos EUA, da Alemanha, da China ou do Brasil – são compostos a partir de imagens majoritariamente produzidas pelas mesmas fontes.

Isso não é novidade em televisão e muito menos em jornalismo impresso. Mas, num ambiente crescentemente globalizado, serve para balizar reflexões sobre a responsabilidade do veículo e a utilidade de suas reportagens internacionais.

Pode-se dizer que é praticamente hegemônico o pensamento de que, frente às grandes redes e agências internacionais, empenhar-se nessas reportagens não serve mesmo para nada. O que está sendo recebido ao vivo da CNN, da Fox News e da BBC dificilmente pode ser superado por uma cobertura própria. O melhor a fazer, então, é deixar a imagem no ar, acompanhada por um tradutor travestido de apresentador.

O que vem logo depois, por intermédio de duas ou três agências internacionais, esgota todas as possibilidades. Não é por outra razão que mesmo um noticiário altamente faccioso como o da al-Jazira acabou sendo saudado pelo mundo todo, com inteira justiça, como uma importante contribuição à percepção mais ampla dos acontecimentos internacionais.

Imagens próprias

A subserviência às fontes externas de informação se faz acompanhar por muitas nuances. Há empresários de mídia que tentam convencer suas redações de que um jornal não é feito para produzir notícias, e sim para veiculá-las. Muitos jornalistas evidentemente resistem a isso, mas o ideário está claramente exposto e fica vagando no ar.

Coberturas internacionais em televisão cumprem evidentemente um papel muito mais complexo no organograma da produção jornalística. São muito caras para ser absorvidas por uma só emissora – e freqüentemente impossíveis de ser realizadas sem a infra-estrutura que só mesmo meia dúzia de redes e agências internacionais são capazes de exibir.

A decisão de promover coberturas de fatos internacionais que não envolvam diretamente o Brasil, seja de uma guerra no Iraque ou da escolha de um papa no Vaticano, implica, assim, na decisão de assumir uma despesa que não será coberta por uma receita suplementar imediata – e de resignar-se a contar com uma estrutura de produção inquestionavelmente inferior a de competidores estrangeiros.

Ficar de fora, por outro lado, pode significar a compactuação com o papel de mero espectador dos acontecimentos, com assento no espaço reservado aos produtores de informação de segunda linha.

São decisões difíceis. No episódio da morte de João Paulo II e da eleição de Bento 16, a TV Globo, por exemplo, apostou na sua presença ostensiva onde estava a notícia. Cometeu gafes que outras não cometeram porque não se arriscaram. O resultado, do ponto de vista jornalístico, foi muito bom. Até onde foi possível produzir imagens próprias, isso foi feito. A reportagem teve noção do seu papel, o que resultou numa cobertura com forte grau de independência em relação às redes internacionais e em grande medida isenta dos deslumbres de praxe.

Formas de resistência

Se fosse tomar este momento como base para uma nova pesquisa, o professor Ludes teria material diferente para mostrar à sua platéia e poderia estabelecer de forma mais clara as comparações que lhe parecessem pertinentes. Não deixa de ser uma boa notícia. Mas tal circunstância não liberta a maioria das redes de televisão do mundo inteiro – do Brasil inclusive – da condição de reféns de um pequeno núcleo de produtores internacionais de informação.

Desnecessário insistir que isso é refresco perto da obscena dependência à produção de conteúdo e de modelos de conteúdo estrangeiros dos quais, da noite para o dia, os receptores de informação televisiva tornaram-se vítimas em todo o mundo.

A subserviência a esses modelos empobrece a criação televisiva e emburrece o espectador em progressão geométrica. Nem mesmo os jornais populares contam hoje com níveis de exigência tão baixos por parte de seu público.

O que os espectadores de Sri Lanka ou de Teresina vêem é fundamentalmente a mesma coisa. Ambos estão submetidos a lavagens cerebrais praticadas em larga escala por descerebrados.

Experimentar coberturas internacionais em que a televisão brasileira não se veja constrangida a agir como papagaio, e goze de alguma autonomia para produzir e contextualizar suas próprias imagens, faz parte – mesmo que isso não seja objetivamente enunciado – de um processo de resistência. Já é um ganho para o espectador, uma trégua para qualquer cidadão acostumado a ver o cardápio televisivo que lhe é oferecido, ou a ler jornais que simplesmente cortam e colam o que quer que apareça na internet.

Se existe algum espaço para a expressão da própria opinião, deixar de fazê-lo é colaboracionismo com os invasores.