Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A mensagem por trás da crítica ao Brasil

A censura a “Blame It on Lisa” (episódio da 13ª temporada de Os Simpsons) completa dez anos e sem a perspectiva de ser revogada. A medida, em verdade, sequer chegou a ser contestada em território nacional. O canal Fox, emissora que detém os direitos de imagem da produção, ao que tudo indica prefere não se indispor com os brasileiros, seus principais consumidores na América Latina. E quem perde, entretanto, é justamente o espectador.

O episódio censurado no Brasil, por pressão da Riotur (Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro) e com o apoio do governo Fernando Henrique Cardoso, é bem mais do que uma analogia ao subdesenvolvimento. O desenho que aparentemente reproduz uma visão reduzida do contexto brasileiro é produto de uma complexa reflexão filosófica. Entre a violência e o carnaval, o samba e o futebol, algumas das questões elucidadas pela produção representam o país das manchetes internacionais. Em síntese, pelo menos do ponto de vista comunicacional, Os Simpsons oferecem uma espécie de feedback ao agendamento, um retorno que viabiliza a instituição de um movimento cíclico a esta perspectiva teórica.

A representação da violência carioca, que tanto irritou as autoridades à época, não é uma abordagem nova ou inesperada. Em verdade, a segurança pública apresenta-se como a esfinge do Rio de Janeiro. A visão de Os Simpsons, no entanto, utiliza-se desta assertiva para potencializar o que Carl Matheson, um dos autores do livro Os Simpsons e a Filosofia (2003), caracterizaria como hiper-ironismo (conceito que define o “processo constante de ironizar”, induzindo a crer que a série Os Simpsons consegue “ironizar seu próprio cinismo”). E o grande articulador deste processo é Homer, o patriarca da família amarelada, que encontra segurança junto aos sequestradores – em uma nítida referência à síndrome de Estocolmo.

Espelho distorcido

Na condição de cenário de “Blame It on Lisa”, o Rio de Janeiro pode ser interpretado como uma espécie de projeção. A representação, aliás, rompe o véu que lhe oferece o papel de vitima da ironia. À medida que subverte a imagem da Cidade Maravilhosa através de estereótipos consagrados, a produção revela que o Brasil de Os Simpsons não é ingênuo e passivo. Sentimentos se agitam em seu coração, nutrindo o bairrismo e estimulando a prerrogativa da autopreservação.

O Rio de Janeiro não seria retratado de maneira gratuita, simplesmente pela piada. A motivação de Os Simpsons, neste sentido, pode estar atrelada à desestabilização de um contexto social. A intenção de retratar o Brasil inspirada na incoerência de uma sociedade imediatista, calcada no desejo de alcançar um futuro economicamente promissor. Se trataria, portanto, de uma auto-projeção tencionada por um trauma particular.

Os conceitos relativizados pela produção projetam um cenário pós-terrorismo, motivado pelo ataque ao World Trade Center que deslocou o eixo gravitacional da política mundial. Em março de 2002, quando a Fox exibe “Blame It on Lisa” nos Estados Unidos, o cosmopolitismo nova-iorquino já representa o principal nutriente das desconfianças. Afinal, o inimigo poderia estar dirigindo um táxi (em Nova York ou no Rio de Janeiro, a exemplo do que ocorre na produção). A insegurança, em contrapartida, humaniza e aproxima os grandes centros urbanos, estabelecendo um vínculo historiográfico. Assim, entre Bagdá e o calçadão de Copacabana, um novo espelho social passa a refletir imagens globais sob o prisma da opinião pública. O uso da força, em cada hemisfério, atende a prerrogativas políticas. A perspectiva da cultura expansionista tolera o intervencionismo, mas condena ao exotismo qualquer amálgama estrangeiro. Ao apresentar a violência do Brasil, Os Simpsons globalizam este cenário, legitimando a nova condição estadunidense. E a mensagem é bem clara: conviver com o terror não é uma exclusividade do Tio Sam.

Unanimidade ideológica

Em síntese, ao conferir papel de destaque à insegurança, o discurso de “Blame It on Lisa” contraria a lógica que vislumbra o fim da História. Ao deparar com um panorama em que o capitalismo legitima a desigualdade social, patrocinando inúmeras formas de atentados à vida e à liberdade, a família Simpson devolve ao instinto de preservação o posto de condutor da vida. O medo, ao reafirmar a função do maniqueísmo, reinicia a história ocidental. E nesta perspectiva, o antagonismo é interno. Trata-se de uma luta entre forças opostas instituídas e legitimadas no mesmo país. Realidade, aliás, que aplaca as maiores metrópoles mundiais.

O retrato globalizante, por outro lado, fere o Brasil em um de seus mitos fundadores. Escorada na história, a ex-colônia portuguesa que se converteu em Império percorreu pelo menos meio milênio à procura de seu legado de nobreza. Este país que desvaloriza o cerne da guerra e cultua a tradição burlesca da Corte, assume a função de uma realidade alternativa perante o contexto estadunidense. Em proporções superlativas, o brasileiro marginalizado, enquanto escravo da violência, constitui um medo velado: o de sucumbir perante o horizonte do progresso. E por isso o episódio que se desenrola no Rio de Janeiro irritou as autoridades nacionais. Em seu imaginário, o Brasil difundiu o desejo de tornar-se potência respeitando as regras do jogo. A ideia de que o ponto de convergência da nação (sua unanimidade ideológica, capaz de pacificar os ânimos) continua sendo o carnaval (como sugere o desenho), aliena a proposta de crescimento econômico; e é por isso que precisa ser rejeitada.

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[Sidimar Rostan é jornalista, especialista em Comunicação e Política]