Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Lygia Fagundes Telles, crítica da televisão

Lygia Fagundes Telles apresenta uma obra textual de fôlego, capaz de acompanhar diversas transformações no quadro histórico e cultural brasileiro. Dentre elas, podemos destacar a consolidação da cultura de massa como fenômeno que se apoia, sobretudo, no surgimento e no crescimento explosivo da televisão, na condição de sucessora doméstica do cinema. No conto ‘O x do problema’, que integra o livro Seminário dos ratos (1977), Lygia já percebia como a televisão afetava as mediações do conhecimento feitas tradicionalmente pela religião, pela política e pela escola, ao ocupar papel de destaque na vida cultural brasileira, por potencializar o nosso louvor à imagem.

O programa de televisão que dá título ao conto é baseado em perguntas feitas a uma determinada pessoa que se apresenta como especialista em minúcias da vida de algum vulto da política, das artes ou dos esportes, por exemplo. Por trás da fachada de ‘programa cultural’, existem a oferta de prêmios, a oportunidade de veicular com mais intensidade a propaganda de produtos, a suspeita de arranjos e, principalmente, um festival do que se convencionou chamar de ‘cultura inútil’, sucessão de perguntas sobre detalhes ínfimos, absolutamente desimportantes. Esse formato de programa obteve grande êxito na televisão ao longo das décadas de 1970 e 80 e hoje vem sendo substituído pela interação.

A narrativa em questão se refere à atenção dada por uma família pobre a um show televisivo que promete dar um milhão se o concorrente, Aryosvaldo, responder a todas as perguntas sobre a Marquesa de Santos. Paralelamente à grande expectativa em relação ao programa, surgem aqui e ali momentos de tensão provocados pela previsão de mais chuva que pode inundar o barraco onde César e seus familiares moram. Além da miserabilidade do ambiente, a imagem da televisão é péssima. A empolgação com as respostas de Aryosvaldo e sua possível vitória superam em muito, no entanto, a preocupação com a iminência de uma tragédia, ainda que a previsão de chuva tenha chegado via TV, o que aumenta consideravelmente sua credibilidade.

‘Eu sabia, eu sabia!’

O estado de euforia dos personagens é tão grande que, ainda no início do conto, verifica-se que eles se sentem tão próximos da atração televisiva que chegam a tratá-la pelo apelido carinhoso de Ary. Nada pode refrear o entusiasmo com o programa, nem mesmo os rumores de que as perguntas são conhecidas com antecedência pelo candidato arguido: ‘O Mário da Nena disse que esse programa é tudo marmelada, que foi combinado pergunta e resposta, ele conhece o Aryosvaldo, disse que é um cabeleireiro fajuto que sabe dessa Marquesa de Santos tanto quanto a gente.’ ‘Fajuto é ele. Cafetão besta, tudo inveja. Inveja. Vocês vão ver hoje que beleza, vai pro milhão a aposta, porra. E Ary pega fácil esse milhão, você viu da outra vez? A turma quer embrulhar mas ele entope a boca desses porqueiras, tudo baixo astral…’

Apesar de Mário da Nena estar próximo à família de César, digno de crédito é Aryosvaldo. Mesmo desconhecido e distante, o fato de aparecer na televisão coloca o jogador acima de qualquer suspeita. A sensação de contraste também é perceptível quando ‘a beleza do auditório cheio das madames’ parece apagar a ameaça de chuva e enchente, fenômenos capazes de tornar aquela moradia ainda mais miserável. Os buracos dos colchões e os ratos passeando pela casa não desfrutam da mesma atenção dirigida às respostas de Aryosvaldo. Desta forma, o êxito do candidato só pode despertar vibração: ‘Respondeu, respondeu!’, gritou César dando um murro no aparelho que apagou e reacendeu em seguida. Então ele acertou? Recuou de punhos cerrados, golpeando o ar, acertou, sim, olha só a gritaria, beleza de nego, beleza, estão levando ele no ombro! Que carnaval, porra, estamos contigo, Ary! Estamos contigo! […] ‘Eu sabia’, disse César deixando-se cair no rolo de colchões. Tremia inteiro, o olhar úmido. ‘Eu não disse? Eu sabia’, repetiu rindo baixinho, um riso difícil, quase como um soluço. ‘Um milhão, porra. Um milhão!’

A felicidade ilusória

Questionado sobre se o programa chegaria ao fim quando Aryosvaldo concluísse sua participação, Duda foi taxativo: ‘Acabar, nada, esse programa não acaba, sai o Aryosvaldo e no sábado já entra um que sabe tudo do Pelé.’ Assim, a questão da rotatividade das atrações é tratada sob o enfoque da ligação entre a promoção da novidade e a necessidade de manter a curiosidade pública em relação ao produto midiático. A mesma fórmula de sucesso serve para a exigência em torno do revezamento dos ídolos que devem ser destacados na TV: ‘Diz que vai ter agora um cara falando do Pelé, mas quem quer Pelé? Pelé está velho, eu queria o Zico. Zico, Zico!’ A preferência ilustra com clareza a reivindicação por um nome emergente, o que sugere perigoso descaso pela história e mostra obsessão com o presente, um presente a cada instante.

Diante da suspeita de chuva destacada por um familiar, César, em estado de graça com a vitória de Aryosvaldo, abre a porta do barraco e dá seu próprio prognóstico: ‘Um chuvisco de nada, não esquenta não, tudo bem, amanhã vai fazer um puta de um sol.’ O pobre telespectador ignorava o anúncio televisivo de chuva, preferindo trocar aquela notícia que tocava diretamente a sua realidade pela felicidade ilusória decorrente do delírio lúdico oferecido pelo programa de auditório transmitido pela TV.

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Jornalista, doutorando e mestre em Letras, Belo Horizonte, MG