Saturday, 11 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Revelações de bastidores do ex-ministro

As Organizações Globo se transformaram em grande oligopólio da comunicação no Brasil mantendo relações estreitas com o Palácio do Planalto e os presidentes, antes mesmos deles chegarem ao poder, a partir de 1964.

Uma prova contundente disso está no livro de Antônio Palocci, Sobre formigas e cigarras (Editora Objetiva, 2007). O ex-ministro da Fazenda do governo Lula, defenestrado por ter sido grampeado pela Polícia Federal – acusado de pagar propinas para empreiteiras, enquanto prefeito de Ribeirão Preto etc. – consultou a Globo, durante a elaboração da ‘Carta aos Brasileiros’, em 2002, para vender otimismo aos credores relativamente aos petistas no comando do poder político e econômico nacional.

Nas páginas 31 e 32, ao relatar o clima especulativo que girava em torno da candidatura Lula, cuja desestabilização era fomentada pelos tucanos, Palocci, escalado por Lula para comandar a campanha, disse que, depois de preparar algumas propostas alternativas, começou a dialogar sobre o assunto com empresários e formadores de opinião.

Diálogo revelador

‘Um deles foi o João Roberto Marinho, das Organizações Globo, a quem eu fora apresentado semanas antes.’

Veja bem, ‘semanas antes’, e já se estabelecia diálogo de grande intimidade em torno de temas de altíssima relevância com um dirigente de empresa concessionária de serviço público.

Vamos aos diálogos:

‘Peguei o telefone e liguei para ele.

– Estamos com um problema sério nesta eleição – iniciei. Há uma percepção de crise econômica e estamos preocupados com isso. Estamos pensando em editar um manifesto com os nossos compromissos.

Com seu radar bastante atento às mudanças de humor do mercado, João Roberto abordou o assunto de forma franca:

– A crise é muito maior do que vocês estão pensando – ele disse, sem esconder sua preocupação. Há muita insegurança sobre o futuro e, por isso, acho muito bom vocês fazerem, sim, um manifesto.

Comentei as linhas gerais do documento e paramos justamente no ponto sobre o superávit das contas públicas.

– Se vocês não forem falar sobre isso – advertiu ele – é melhor nem soltar o documento. Afinal, é este o ponto sobre o qual o mercado está mais preocupado.

– E qual (prestem atenção, leitores/as) você acha que deve ser o compromisso do novo governo? – perguntei.

– Em minha opinião, deve ser algo um pouco acima de 4%, que é o que parece estar se tornando um consenso no mercado. O fato é que a dívida está ficando insustentável e se há algo que vocês devem criticar no atual governo é isso. O quadro fiscal é frágil.’

Ou seja, a Globo ditou o nível do superávit primário!

Palocci descreve que argumentou com o herdeiro dos Marinho que Lula dificilmente aceitaria falar em números.

‘Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar seus compromissos’, diz o documento que Palocci lia para João Roberto Marinho.

– O que você acha? – perguntei.

– Um número forte poderia ser melhor – respondeu. Mas se há dificuldade para isso, o texto está bom. Acho que dá conta.

Linha direta com o JN

Palocci, para conquistar a Globo, mudou, inclusive, o sentido fundamental da formulação original do documento: ‘Vamos preservar o superávit primário enquanto for necessário.’

Explica Palocci:

‘Achei melhor trocar (depois de conversar com João Roberto Marinho) a palavra ‘enquanto’, que dava noção de tempo, por ‘o quanto’, que dava noção de tamanho e da disposição de aumentá-lo, que era como o problema se colocava naquele momento.’

Em rápidas pincelas, eis a desenvoltura das relações da Globo com o poder petista desde os seus primórdios, antes de desembarcar no Palácio do Planalto, segundo o próprio Antônio Palocci.

Depois, o ex-ministro da Casa Civil, ex-deputado José Dirceu, cassado pelo Congresso graças às acusações de corrupção apuradas na CPI do Mensalão, teria dito que resolvia situações difíceis, relativamente à divulgação de notícias, ligando diretamente para a redação do Jornal Nacional, da Globo, a fim de temperar conteúdos do noticiário negativos para a imagem do governo.

O escândalo Proconsult

Não seria, portanto, novidade deduzir o incômodo que tal relação de subordinação do governo à Rede Globo, nos momentos capitais das crises de governabilidade, provoca no presidente Lula, sabendo que foi vítima dessa mesma preponderância histórica da concessionária de serviços públicos na sua relação com o governo brasileiro, na arte de passar recados dos credores.

A história desses recados é antiga e, como demonstra Palocci, em seu livro, sempre renovada.

Enquanto isso, as concessões se renovam, debaixo de grandes pressões, assim como, sob pressões, os governos são obrigados, de tempos em tempos, a não apenas renovarem, mas também ampliarem os créditos a essa grande mídia, para cobrir os prejuízos que as políticas econômicas defendidas por ela, durante a Nova República, provocam em sua contabilidade.

A aproximação do pensamento de Lula ao do presidente Chávez, neste momento em que o titular do poder na Venezuela corta a concessão da Globo venezuelana, a RCTV, não é mera coincidência. Afinal, Lula levou beiço da televisão concessionária, em 1989, quando seus dirigentes editaram o debate final dele com Fernando Collor, enchendo a bola deste, para ganhar a eleição na reta final.

Da mesma forma, Brizola, em 1982, quase dançou na eleição disputada no segundo turno com Moreira Franco, na recontagem dos votos, devido ao escândalo Proconsult, por trás do qual manobravam os homens da Globo. Dez mil votos dados a Brizola escorregaram, na calada da noite golpista, para a candidatura Wellington Moreira Franco.

Informação livre

Os golpes midiáticos são uma norma na história do controle do poder na América Latina. Os concessionários dos serviços públicos no campo da comunicação não brincam em serviço. Sobrepõem sua função, de meros concessionários, na tentativa de suplantar o concedente, para afirmar o interesse dos grupos que sustentam pontos de vista que o Estado capitalista oligopolizado determina.

Até quando os golpistas continuarão trabalhando nesse sentido, anti-nacional e anti-democrático, dispondo de um poder, o da concessão do Estado, que essencialmente é do povo?

Faz-se necessária uma modernização na lei de concessão, para que as licitações sejam abertas e discutidas à luz do dia. Dessa forma, no século 21, a democracia deixaria de ser, como foi no século 20, algo de fachada no campo das comunicações, onde está, como disse Lênin e muitos outros líderes políticos, o primeiro poder, o da informação livre, que informa e forma a opinião pública, transformando o ser humano de objeto em sujeito da história.

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Jornalista, Brasília, DF