Friday, 10 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

José Queirós

“Entre várias men­sa­gens de crí­tica ao jor­nal que me che­ga­ram nos últi­mos dias encon­tro um deno­mi­na­dor comum: os erros que os lei­to­res apon­tam pode­riam em geral ter sido evi­ta­dos com uma receita sim­ples — menos pre­ci­pi­ta­ção e mais refle­xão. Menos fre­ne­sim na divul­ga­ção de notí­cias na edi­ção elec­tró­nica, menos deci­sões edi­to­ri­ais apres­sa­das pelo jogo de con­cor­rên­cia no uni­verso da infor­ma­ção online ou influ­en­ci­a­das por sur­tos de exci­ta­ção nas redes soci­ais. Numa pala­vra, mais profissionalismo.

Por muito exi­gen­tes que sejam os rit­mos de publi­ca­ção de um jor­nal diá­rio ou de actu­a­li­za­ção do seu sitena Inter­net, por mais que uma estru­tura redac­to­rial afec­tada por cor­tes suces­si­vos se torne vul­ne­rá­vel a falhas, não há jor­na­lismo de qua­li­dade — como o que o PÚBLICO pro­mete aos seus lei­to­res — sem uma dis­ci­plina de veri­fi­ca­ção e pon­de­ra­ção cui­dada da infor­ma­ção a publi­car. Omi­tir uma notí­cia ou adiar a sua publi­ca­ção é sem­pre menos mau do que publi­car infor­ma­ções erró­neas e tex­tos que se afas­tam das boas prá­ti­cas pro­fis­si­o­nais. Dei­xando para outra oca­sião várias quei­xas rela­ci­o­na­das com defi­ci­ên­cias de edi­ção, passo a refe­rir dois casos recen­tes em que a pre­ci­pi­ta­ção terá pre­va­le­cido sobre a neces­sá­ria reflexão.

1. Uma notí­cia publi­cada ante­on­tem, sob o título Isa­bel Jonet acu­sada de usar a fome como arma polí­tica, relata o que é des­crito como 'uma onda de pro­testo e de indig­na­ção' que teria sido gerada por decla­ra­ções da pre­si­dente do Banco Ali­men­tar Con­tra a Fome durante um debate tele­vi­sivo, dois dias antes, na Sic Notí­cias. Segundo este jor­nal, as reac­ções que '[se] mul­ti­pli­ca­ram logo nas redes soci­ais' — outros foram mais longe e fala­ram de uma 'onda de indig­na­ção no país' — fica­ram prin­ci­pal­mente a dever-se a duas ideias defen­di­das pela conhe­cida acti­vista social: os por­tu­gue­ses 'vivem muito acima das suas pos­si­bi­li­da­des' e vão 'ter que rea­pren­der a viver mais pobres'.

A peça sus­cita várias per­ple­xi­da­des. Antes de mais, sobre a sua rele­vân­cia. Se é certo que as posi­ções assu­mi­das por Isa­bel Jonet vie­ram dar nova visi­bi­li­dade a um velho debate sobre os méri­tos das acções de cari­dade, não é menos ver­dade que as suas fra­ses cita­das na notí­cia em nada dife­rem do que tem sido repe­tido até à exaus­tão, nos últi­mos meses, por nume­ro­sos polí­ti­cos, eco­no­mis­tas e ana­lis­tas. São cer­ta­mente polé­mi­cas, no sen­tido em que expri­mem uma das posi­ções anta­gó­ni­cas que hoje se con­fron­tam no país sobre as cau­sas da crise eco­nó­mica e os modos de a com­ba­ter. O debate argu­men­tado des­sas posi­ções merece todo o espaço, mas o des­ta­que que lhe foi dado no plano noti­ci­oso parece igno­rar que a pre­si­dente do Banco Ali­men­tar não é uma deci­sora política.

Depois, o con­teúdo. Quase todo o espaço da notí­cia foi ocu­pado pelos ata­ques diri­gi­dos a Isa­bel Jonet, com des­ta­que para uma 'carta aberta' publi­cada na Inter­net. Trata-se de um texto pan­fle­tá­rio que, como bem nota o autor da peça do PÚBLICO, José Augusto Moreira, assume 'um tom de vio­lento ata­que pes­soal' à diri­gente do Banco Ali­men­tar. Note-se que a auto­ria desse texto foi atri­buída por erro, cor­ri­gido ontem pelo jor­nal, à his­to­ri­a­dora Raquel Varela, que redi­gira um outro docu­mento crí­tico, de teor dife­rente, às decla­ra­ções de Isa­bel Jonet. De onde se con­clui que o 'vio­lento ata­que pes­soal' que o PÚBLICO achou por bem trans­cre­ver não tem, para já, rosto conhe­cido. É assi­nado, na rede, por 'O Movi­mento Sem Emprego'.

As exten­sas acu­sa­ções con­ti­das na peça não são acom­pa­nha­das de qual­quer con­tra­di­tó­rio. O jor­na­lista escla­rece no texto que Isa­bel Jonet foi con­vi­dada a pronunciar-se (com insis­tên­cia, segundo me expli­cou), mas não quis fazê-lo. No entanto, exis­tem outras for­mas de pro­cu­rar o con­tra­di­tó­rio, objec­tivo de que o jor­na­lismo isento nunca deve desis­tir. É aliás for­çoso regis­tar que, sendo a notí­cia jus­ti­fi­cada com as 'reac­ções de indig­na­ção' encon­tra­das na Inter­net, nela se ignora total­mente o facto de que nas redes soci­ais e na blo­gos­fera se 'mul­ti­pli­ca­ram' tam­bém as mani­fes­ta­ções de apoio à líder do Banco Alimentar.

Este foi, na minha opi­nião, um exem­plo de uma notí­cia cla­ra­mente dese­qui­li­brada e incom­pleta no plano infor­ma­tivo, em que o jor­nal se por­tou como pouco mais do que um ampli­fi­ca­dor, aliás selec­tivo, do que encon­trou nas redes soci­ais. O pró­prio autor o reco­nhece de algum modo, ao comen­tar que 'a forma como hoje se pro­duz infor­ma­ção torna difí­cil fazer jor­na­lismo'. É aos jor­na­lis­tas, no entanto, que cabe em pri­meiro lugar enfren­tar essas difi­cul­da­des e defen­der a inte­gri­dade e as boas prá­ti­cas da profissão.

O PÚBLICO pres­ta­ria um bom ser­viço aos seus lei­to­res se pro­cu­rasse, atra­vés do inqué­rito jor­na­lís­tico, a res­posta a uma ques­tão — essa, sim, rele­vante — sus­ci­tada na sequên­cia das decla­ra­ções de Isa­bel Jonet, nome­a­da­mente por volun­tá­rios do Banco Ali­men­tar. Irá a sua inter­ven­ção tele­vi­siva, com as reac­ções a que deu lugar, pre­ju­di­car a orga­ni­za­ção a que pre­side (e outras simi­la­res), na sua capa­ci­dade de mobi­li­za­ção, agora que se pre­para uma nova cam­pa­nha de reco­lha de alimentos?

2.Um caso típico de defi­ci­ente obser­va­ção das regras pro­fis­si­o­nais na cor­rida pre­ci­pi­tada à publi­ca­ção de infor­ma­ções online foi, quanto a mim, o da notí­cia divul­gada na noite da última terça-feira no site doPÚBLICO, segundo a qual 'um jor­na­lista resi­dente na Costa da Capa­rica' teria 'ten­tado agre­dir', num hotel da cidade da Horta, o minis­tro Miguel Rel­vas, que se des­lo­cara aos Aço­res para par­ti­ci­par na tomada de posse do novo governo regi­o­nal. O jor­nal viu-se depois obri­gado a des­men­tir (e fê-lo com um atraso con­si­de­rá­vel) essa infor­ma­ção que se veri­fi­cou ser falsa e já não se encon­tra em linha, mas o caso, cari­cato sob vários aspec­tos, chama a aten­ção para a neces­si­dade de serem repen­sa­dos os pro­ce­di­men­tos de vali­da­ção das notí­cias colo­ca­das na Internet.

O PÚBLICO não foi o pri­meiro nem o único meio de comu­ni­ca­ção (longe disso) a dis­se­mi­nar a fal­si­dade, no que parece ter sido um típico epi­só­dio de deli­be­rada into­xi­ca­ção infor­ma­tiva. Nessa mesma noite houve quem fosse ao ponto de publi­car que o cida­dão em ques­tão — só em notí­cias pos­te­ri­o­res iden­ti­fi­cado como sendo o jor­na­lista Nuno Fer­reira, que por sinal per­ten­ceu durante lon­gos anos aos qua­dros redac­to­ri­ais deste jor­nal… — pro­cu­rara for­çar a entrada no quarto do minis­tro ou, numa ver­são ainda mais deli­rante, o seguira até ao Faial, instalando-se no mesmo hotel com intui­tos cer­ta­mente inconfessáveis.

Resumam-se os fac­tos entre­tanto apu­ra­dos pela gene­ra­li­dade da imprensa. Autor da obra 'Por­tu­gal a pé', Nuno Fer­reira encontrava-se nos Aço­res a pre­pa­rar um novo livro, agora dedi­cado a cami­nha­das pelo arqui­pé­lago. Cruzou-se com Rel­vas, à hora do almoço, no hotel em que per­noi­tara, dirigiu-lhe um comen­tá­rio hos­til (ter-lhe-á per­gun­tado se 'não tinha ver­go­nha de con­ti­nuar a andar por aí'), e o gover­nante virou-lhe as cos­tas. À tarde, deci­diu ir esperá-lo à saída da ceri­mó­nia da posse do governo, munido de um car­taz em que se lia 'Bem-vindo exº sr. dr. Miguel Rel­vas, Angola gosta muito do sr. Dou­tor'. Ao fim do dia regres­sou ao hotel, tendo sido bar­rado, no cor­re­dor a cami­nho do seu quarto, por três segu­ran­ças do minis­tro. A par­tir daqui, há duas ver­sões con­trá­rias do que se pas­sou. Os segu­ran­ças acusam-no de ter ten­tado agredi-los, enquanto o jor­na­lista garante que foi ele a vítima de agres­são, tendo sido detido e alge­mado, num lance que, por coin­ci­dên­cia ou não, foi foto­gra­fado por um repór­ter de tele­vi­são. Um inqué­rito judi­cial entre­tanto aberto irá even­tu­al­mente apre­ciar esta divergência.

Pro­cu­rei obter, junto dos res­pon­sá­veis edi­to­ri­ais, uma expli­ca­ção para a notí­cia falsa ini­cial, que refe­ria uma ten­ta­tiva de agres­são ao minis­tro. A recons­ti­tui­ção dos fac­tos indica que tudo come­çou pela visu­a­li­za­ção, na edi­ção online do Expresso, de uma pri­meira notí­cia sobre o caso, que rela­ci­o­nava a deten­ção de Nuno Fer­reira com uma ten­ta­tiva de este 'se apro­xi­mar do quarto do minis­tro'. Ao jor­na­lista Tolen­tino da Nóbrega, que se encon­trava nos Aço­res, foi pedido que con­fir­masse essas infor­ma­ções, o que este terá feito junto de fon­tes polí­ti­cas e poli­ci­ais, apa­re­cendo por isso a assi­nar a pri­meira peça saída noPÚBLICO. Nuno Fer­reira não foi ouvido por­que 'não aten­deu o tele­fone' (no entanto, ainda nessa noite pres­tou decla­ra­ções a uma tele­vi­são). Em Lis­boa, o edi­tor Luci­ano Alva­rez (co-autor do texto) con­tac­tou o gabi­nete do minis­tro, de onde rece­beu, segundo afirma, a garan­tia de que '[se] con­firma na ínte­gra a notí­cia do Expresso'.

E assim se par­tiu para a lamen­tá­vel divul­ga­ção de uma his­tó­ria inven­tada. Resta per­gun­tar desde quando um jor­nal inde­pen­dente pode satisfazer-se com fon­tes ofi­ci­ais e ver­sões poli­ci­ais, para mais quando estas resis­tem com difi­cul­dade a um juízo de vero­si­mi­lhança. Por que é que avança com a divul­ga­ção de uma notí­cia des­tas antes de garan­tir o con­tra­di­tó­rio, o que nem seria difí­cil. Por que é que não se esforça mais por veri­fi­car os fac­tos e bus­car a ver­dade. Que cre­di­bi­li­dade isenta de dúvi­das lhe merece, enfim, um gabi­nete gover­na­men­tal cuja rela­ção pecu­liar com a ver­dade já pôde experimentar.”