Wednesday, 15 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

José Queirós

“Já muito se escre­veu sobre o desas­tre mediá­tico em que se trans­for­mou a con­fe­rên­cia patro­ci­nada pelo Governo para ale­ga­da­mente ouvir a soci­e­dade civil sobre a 'reforma do Estado', acon­te­ci­mento que aca­bou por ser mar­cante, não pelas con­tri­bui­ções que possa ter tra­zido a esse debate, mas pelos entra­ves que os seus orga­ni­za­do­res qui­se­ram colo­car à liber­dade de informação.

Como referi na minha cró­nica ante­rior, a imprensa viu-se con­fron­tada nessa con­fe­rên­cia — que decor­reu no Palá­cio Foz, em Lis­boa, nos pas­sa­dos dias 15 e 16 — com a ten­ta­tiva de impo­si­ção de uma regra insó­lita, segundo a qual os jor­na­lis­tas pode­riam assis­tir aos deba­tes (supos­ta­mente para deles darem conhe­ci­mento aos seus lei­to­res), desde que não citas­sem nenhum dos inter­ve­ni­en­tes sem a sua 'expressa auto­ri­za­ção'. Em con­sequên­cia, este jor­nal optou por não acom­pa­nhar e não noti­ciar as ses­sões de debate, em pro­testo con­tra o que clas­si­fi­cou em edi­to­rial como um caso de 'cen­sura pré­via'. Na prá­tica, tratou-se de um boi­cote infor­ma­tivo, que no entanto não foi (e isso deve ser cri­ti­cado) nem for­mal­mente assu­mido como tal, nem devi­da­mente expli­cado aos leitores.

Regresso hoje ao tema por­que con­ti­nu­a­ram a manifestar-se pon­tos de vista dife­ren­tes sobre esse epi­só­dio. Sus­ten­tei aqui, há uma semana, que o mais que jus­ti­fi­cado pro­testo do PÚBLICO con­tra a ati­tude dos orga­ni­za­do­res da con­fe­rên­cia não era incom­pa­tí­vel com o dever de infor­mar os lei­to­res sobre o con­teúdo dos deba­tes. Posi­ção con­trá­ria defen­deu, entre­tanto, em men­sa­gem que me diri­giu em nome pes­soal, o direc­tor adjunto do jor­nal Manuel Car­va­lho. Parece-me útil alar­gar aos lei­to­res a troca de argu­men­tos que se seguiu, sus­ci­tando even­tu­al­mente outros con­tri­bu­tos para uma dis­cus­são que não incide sobre prin­cí­pios rígi­dos, mas sobre esco­lhas edi­to­ri­ais que, sendo sem­pre dis­cu­tí­veis, con­tri­buem para dese­nhar a ima­gem de um jornal.

Em causa estão, essen­ci­al­mente, dife­ren­ças de opi­nião sobre dois pon­tos, cujo debate poderá con­tri­buir para cla­ri­fi­car ori­en­ta­ções futu­ras. Deve a 'regra do Palá­cio Foz' ser enten­dida como uma mani­fes­ta­ção de 'cen­sura à imprensa'? Deve a reac­ção a esse con­di­ci­o­na­mento do tra­ba­lho jor­na­lís­tico ser o boi­cote informativo?

Sobre o pri­meiro ponto, Manuel Car­va­lho explica por que man­tém a expres­são 'cen­sura pré­via' para clas­si­fi­car este caso: 'Num evento que é anun­ci­ado como o ponto de par­tida de um debate de solene inte­resse naci­o­nal, há na exi­gên­cia de que haja res­tri­ções à vei­cu­la­ção das opi­niões aí mani­fes­ta­das um esforço de garan­tir que par­tes ou o todo de algu­mas inter­ven­ções pudes­sem ser man­ti­das sob reserva, deci­são que ficava sob a alçada dos inter­ve­ni­en­tes. Eram eles, em última ins­tân­cia, e não os jor­na­lis­tas, quem tinha o poder de dizer o que devia ou não devia ser tor­nado público. Eram eles quem tinha o poder de cen­su­rar pre­vi­a­mente o que podia, ou não podia, ser tra­tado jor­na­lis­ti­ca­mente, atra­vés da impo­si­ção de um meca­nismo que, na prá­tica, tinha o poder de selec­ci­o­nar toda a infor­ma­ção ali produzida'.

Assim, na sua pers­pec­tiva, 'ao exi­gir a auto­ri­za­ção ex ante do uso de qual­quer cita­ção, a orga­ni­za­ção do evento estava a pro­mo­ver a prá­tica de cen­sura'. Ora, con­clui, 'encaro sem­pre estas ten­ta­ti­vas de cer­ce­a­mento de direi­tos fun­da­men­tais com o aviso de Bre­cht pre­sente: pri­meiro é a auto­ri­za­ção pré­via, depois a proi­bi­ção de noti­ciar alguns assun­tos, depois…'.

Eu admito que uma ten­ta­tiva canhes­tra, como foi esta, de con­di­ci­o­nar a liber­dade de infor­ma­ção pode suge­rir que os seus auto­res con­vi­ve­riam bem com um regime de cen­sura ou 'exame pré­vio'. Porém, o con­ceito de cen­sura à imprensa tem um sig­ni­fi­cado his­tó­rico pre­ciso, que não deve ser bana­li­zado: implica a acti­vi­dade de cen­so­res que cor­tam ou alte­ram peças jor­na­lís­ti­cas para impe­dir a livre publi­ca­ção do que se escre­veu, ou que proí­bem a abor­da­gem de cer­tos temas ou a men­ção de deter­mi­na­dos fac­tos. Como não era nem podia ser esse o caso, parece-me mais ade­quado invo­car aqui, não a adap­ta­ção do sem­pre ins­pi­ra­dor aviso de Bre­cht, mas a fábula do rapaz e do lobo: de tanta vez agi­tar­mos o fan­tasma da cen­sura, cor­re­mos o risco de não a reco­nhe­cer quando pre­ci­sar­mos de o fazer.

Na ver­dade, a orga­ni­za­ção da con­fe­rên­cia não tinha 'o poder de selec­ci­o­nar toda a infor­ma­ção ali pro­du­zida', numa reu­nião que ela pró­pria quis aberta à pre­sença da imprensa, e menos ainda de con­tro­lar a infor­ma­ção pro­du­zida. Tanto não tinha que não teve: outros meios de comu­ni­ca­ção rela­ta­ram os deba­tes. Ainda que o qui­sesse, não estava ao seu alcance impor o silen­ci­a­mento do que ali fosse dito e de por quem fosse dito. Essa é a dife­rença, e é enorme, para com um regime de cen­sura. Valerá a pena recor­dar que, mesmo sob um tal regime (o 'exame pré­vio' da dita­dura), o melhor jor­na­lismo não res­pon­dia com boi­co­tes. Sabia que a sua mis­são era infor­mar os lei­to­res e esforçava-se por fazê-lo, ten­tando, é certo que geral­mente sem êxito, fin­tar os censores.

Neste caso o PÚBLICO optou pelo que clas­si­fi­quei de boi­cote infor­ma­tivo, expres­são que Manuel Car­va­lho con­si­dera desa­pro­pri­ada ('Não houve essa deli­be­ra­ção. O que houve foi a recusa em acei­tar as regras. Não as acei­tando, entendeu-se que não as devía­mos vio­lar'). O direc­tor adjunto jus­ti­fica depois a opção tomada argu­men­tando que não esta­vam em causa 'opi­niões ou o anún­cio de ali­cer­ces pre­li­mi­na­res de medi­das polí­ti­cas por parte de mem­bros do Governo, que temos de escru­ti­nar com per­ma­nên­cia', e que por isso deve­riam 'ser noti­ci­a­das, cus­tasse o que custasse'.

'O que estava em causa', subli­nha, 'eram ideias de dife­ren­tes per­so­na­li­da­des da dita soci­e­dade civil sobre a reforma do Estado. Era, por­tanto, maté­ria de opi­nião. E a opi­nião ou se exerce livre por inteiro, ou tem um valor infor­ma­tivo dúbio. Se achar­mos, como acha­mos, que o debate público é fun­da­men­tal, se nos ins­cre­ve­mos na pri­meira linha dos que o que­rem ins­ti­gar e desen­vol­ver, não pode­mos ter sobre este tipo de even­tos ati­tu­des cin­zen­tas. Somos con­tra, ponto final'. 'A expres­são de opi­niões de cida­dãos numa soci­e­dade demo­crá­tica' — con­clui Manuel Car­va­lho — 'só tem valor se for exer­cida sem cons­tran­gi­men­tos. As opi­niões que inte­res­sam ao jor­na­lismo são as que são lan­ça­das e deba­ti­das no espaço público, e não as que se desen­vol­vem em espa­ços semi-privados, como era o caso'.

Pelo meu lado, embora admita que pos­sam inte­res­sar ao jor­na­lismo opi­niões deba­ti­das em 'espa­ços semi-privados' (depen­derá da sua rele­vân­cia, na óptica do inte­resse público), subs­crevo natu­ral­mente a ideia de que é a sua expres­são livre e res­pon­sá­vel no espaço do debate demo­crá­tico que deve ser valo­ri­zada pela imprensa. Por isso me tenho insur­gido con­tra a bana­li­za­ção de fon­tes anó­ni­mas, a atri­bui­ção de opi­niões a pes­soas não iden­ti­fi­ca­das ou os comen­tá­rios sob ano­ni­mato que são per­mi­ti­dos, por exem­plo, no site deste jor­nal. Nada me per­mite con­cluir, no entanto, que os inter­ve­ni­en­tes na con­fe­rên­cia em causa, aberta à pre­sença de jor­na­lis­tas, tenham falado de forma 'constrangida'.

Perante o duplo dever de pro­tes­tar con­tra a 'regra do Palá­cio Foz' e de infor­mar os lei­to­res, várias solu­ções eram pos­sí­veis. O que impe­di­ria, por exem­plo, que jor­na­lis­tas e res­pon­sá­veis edi­to­ri­ais deci­dis­sem igno­rar a ten­ta­tiva de con­di­ci­o­nar o seu tra­ba­lho (atra­vés de uma regra ile­gí­tima de que nem fora dado conhe­ci­mento pré­vio ao jor­nal) e rela­tas­sem, como pro­fis­si­o­nal­mente melhor enten­des­sem, o que ali se deba­teu e quem defen­deu o quê? O que suce­de­ria, afi­nal, se as decla­ra­ções dos con­fe­ren­cis­tas fos­sem cita­das e devi­da­mente atri­buí­das aos seus auto­res, como aliás fize­ram outros órgãos de comu­ni­ca­ção? Na minha opi­nião, uma dis­cus­são pública cla­ri­fi­ca­dora sobre a liber­dade de infor­ma­ção e o esta­tuto dos jornalistas.

Exis­tindo à par­tida uma expec­ta­tiva de inte­resse público da con­fe­rên­cia, face à impor­tân­cia dos temas a dis­cu­tir, no actual qua­dro polí­tico, e ao facto de o governo a ter anun­ci­ado como des­ti­nada a ouvir opi­niões exter­nas com vista à defi­ni­ção de polí­ti­cas cru­ci­ais, impunha-se, como se fez, o seu agen­da­mento jor­na­lís­tico. A deci­são de noti­ciar os deba­tes, essa depen­de­ria natu­ral­mente de tal expec­ta­tiva ser ou não con­fir­mada — uma opção que com­pete aos res­pon­sá­veis edi­to­ri­ais, devendo ser tomada com base na ava­li­a­ção do inte­resse público da maté­ria infor­ma­tiva, para o que teria sido útil assis­tir aos trabalhos.

Do que foi publi­cado em outros meios, é pos­sí­vel con­cluir que sur­gi­ram na con­fe­rên­cia opi­niões e pro­pos­tas sobre as quais, em situ­a­ção 'nor­mal', o PÚBLICO não dei­xa­ria de infor­mar os seus lei­to­res. Acresce que, tendo 'boi­co­tado' as ses­sões de debate, o jor­nal não estará nas melho­res con­di­ções para escru­ti­nar as con­clu­sões da con­fe­rên­cia, se por­ven­tura estas se reve­la­rem — como é legí­timo temer face à ten­ta­tiva de limi­tar a cober­tura jor­na­lís­tica — envi­e­sa­das ao ser­viço de objec­ti­vos de propaganda.

Acei­tar a 'regra do Palá­cio Foz' sig­ni­fi­ca­ria entre­gar aos seus orga­ni­za­do­res um ina­cei­tá­vel poder edi­to­rial sobre as notí­cias a que a ini­ci­a­tiva desse ori­gem. Porém, tendo em conta o ape­tite que os orga­ni­za­do­res reve­la­ram pelo con­trolo da infor­ma­ção, valerá a pena interrogarmo-nos se a res­posta mais efi­caz, e até mais peda­gó­gica, não teria sido a que fizesse acom­pa­nhar a obri­ga­tó­ria denún­cia dessa 'regra' pela demons­tra­ção da sua incon­sequên­cia e insu­cesso, infor­mando os lei­to­res com isen­ção sobre o que de rele­vante hou­vesse a noti­ciar sobre os debates.

O PÚBLICO esco­lheu o boi­cote infor­ma­tivo. Poderá haver situ­a­ções em que esse seja, no plano sim­bó­lico, o recurso mais digno face a uma ame­aça con­sis­tente à liber­dade de infor­ma­ção. Neste caso, perante os fac­tos que foram divul­ga­dos, julgo que teria sido mais acer­tado pro­tes­tar… e informar.”