Sunday, 12 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

José Queirós

‘A questão não é nova e a controvérsia está longe de estar encerrada. Deve ou não um jornal português utilizar a palavra ‘islamista’, ainda hoje ausente dos principais dicionários da língua?

‘A polícia francesa prendeu hoje doze pessoas ligadas ao movimento islamista, em duas investigações distintas que decorrem num contexto de alerta geral para possíveis atentados terroristas na Europa’ — lia-se no PÚBLICO do passado dia 5. Cito esta notícia como poderia citar muitas outras, já que o termo ‘islamista’ é há muito usado neste jornal com o significado que tem nesta frase. Refiro-a por ter sido a que levou o leitor Carlos Brighton a escrever o seguinte: ‘ A pessoa que escreveu o artigo queria dizer ‘islamitas’ e não ‘islamistas’, que é uma palavra que não existe em português. É um erro recorrente nesse jornal’.

Na verdade, não se trata de um ‘erro recorrente’, mas de uma opção deliberada. Expliquei ao leitor que, de acordo com o seu Livro de Estilo, o PÚBLICO emprega o termo ‘islamista’ para definir ‘os que usam o islão como arma política e de terrorismo, de modo a distingui-los dos fiéis islamitas’, e usa o termo ‘islamita’ para definir o crente no islão. Reconhecendo tratar-se de uma opção discutível, recordei que essa distinção vigora há largos anos no jornal e foi em devido tempo justificada, não propriamente a partir de um critério linguístico, mas em nome de uma procura de clareza conceptual, tal como sucedeu em outros meios de comunicação no mundo ocidental.

A explicação não agradou ao leitor. Do seu ponto de vista, não é aceitável ‘inventar uma palavra, semelhante a outra existente, e confundível com ela por parte de quem está menos atento’, ou pela ‘população menos esclarecida’, para ‘classificar um grupo de pessoas’. Para Carlos Brighton, ‘há maneiras mais honestas de o fazer, como, por exemplo, classificar essas pessoas como ‘terroristas islâmicos’’, o que ‘identifica perfeitamente o que se pretende comunicar, e não contribui para criar preconceitos susceptíveis de, neste caso, generalizar a opinião negativa que no ocidente se vai desenvolvendo sobre os islamitas em geral’.

Ou seja, pelo menos para este leitor, a clarificação procurada provocaria um efeito contrário ao pretendido. Motivo para regressar a um debate antigo e que continua a motivar posições contraditórias, confrontando uma visão mais ortodoxa da língua com uma perspectiva mais aberta à evolução terminológica. Sendo que o que está em causa, neste espaço, não é obviamente uma discussão sobre correcção linguística, mas sobre o mérito de uma convenção jornalística. Não sendo independentes, são questões diferentes.

Fiz apelo à experiência de Margarida Santos Lopes, redactora principal do PÚBLICO, reconhecida especialista nos assuntos do Médio Oriente e do mundo muçulmano, e autora de um pioneiro ‘Dicionário do Islão’ (2002) e do recém-publicado ‘Novo Dicionário do Islão’. Num depoimento que me enviou, a jornalista defende a opção que vingou neste diário, começando por recordar: ‘Muitos estudiosos do Islão, incluindo muçulmanos portugueses como AbdoolKarim Vakil, académico no Kings’ College, em Londres, insistem na necessidade de distinguirmos entre ‘islamista’ (o combatente) e ‘islamita’ (o crente no Islam, termo árabe para ‘submissão’ a Deus e cuja raiz é a mesma de Salaam, paz). Recomendam também que não se confunda Islão (religião) e islamismo (ideologia), para que fé não seja sinónimo de terrorismo. Não vejo motivo para não aceitar esta distinção’. ‘A palavra ‘islamofobia’’, faz notar, ‘também não existia mas, infelizmente, apareceu (ou teve de aparecer) para definir a intolerância crescente em relação aos muçulmanos (…). Se insistirmos em chamar ‘islamitas’ aos ‘islamistas’ estamos a propagar a islamofobia — é a minha convicção, como estudiosa do mundo muçulmano desde há mais de três décadas’.

Margarida Santos Lopes também não vê com bons olhos o recurso à expressão, sugerida pelo leitor, de ‘terrorista islâmico’. Recorda que, em 1995, ninguém chamou ‘terrorista cristão’ a Timothy McVeigh quando este fez explodir um edifício federal em Oklahoma, nos Estados Unidos, nem ‘terrorista judeu’ a Yigal Amir, o jovem colono que assassinou o primeiro-ministro israelita Yitzhak Rabin. E questiona: ‘Por que havemos de discriminar os muçulmanos se a maioria deles (cada vez menos silenciosa) encontrou uma forma de se afastar de uma minoria (ainda ruidosa) que mata em nome de Deus?’.

Argumenta ainda: ‘Quando um insurrecto sunita ataca uma mesquita xiita no Iraque numa sexta-feira, dia de oração, dizemos que um ‘islamita’ atacou um templo ‘islamita’?’. E, contrariando a aplicação aos casos de terrorismo de uma outra expressão (a de ‘fundamentalistas islâmicos’), sublinha: ‘Grandes estudiosos desta religião (…) recomendam que designemos os terroristas como ‘islamistas’ — porque o termo ‘fundamentalista’ não significa terrorista. Um fundamentalista religioso não é necessariamente violento’.

‘Da minha parte’, conclui Margarida Santos Lopes, ‘tenho a certeza de que a decisão editorial do PÚBLICO (seguida por muitas editoras portuguesas na tradução de obras sobre o Islão e os muçulmanos) de distinguir entre crente e combatente ajuda a promover a tolerância. O facto de raramente ou nunca usarmos ‘islamita’ como sinónimo de muçulmano deve-se ao facto de, em muitos meios de comunicação social, o termo ‘islamita’ estar a ser usado frequentemente como sinónimo de ‘terrorista islâmico’’.

A utilização do termo ‘islamita’ para designar radicais ou mesmo terroristas, como acontece em outros órgãos de imprensa, é de facto criticável. Na nossa língua, a palavra está dicionarizada como significando seguidor da religião muçulmana. Como observava o jornalista Francisco Belard num texto publicado em 2007 no Expresso, ‘a tendência internacional é hoje a de chamar Islão (islam) à religião e ‘islamismo’ à ideologia (…) extremista ou fanática’. Notando que o dicionário da Real Academia Espanhola, de 2001, já regista ‘islamista’ como ‘relativo ao integrismo muçulmano’, Belard argumentava que ‘todos os ‘islamistas’ se reclamam do Islão, dizendo-se muçulmanos, mas nem todos os muçulmanos são ‘islamistas’’. E concluía ser preferível utilizar em português ‘o conceito consagrado desde os anos 80 e 90 por politólogos, historiadores e jornais de referência em francês, inglês e espanhol’. ‘Islamistas’, portanto.

‘O islamismo’, escreveu o politólogo francês Olivier Roy, estudioso do mundo muçulmano, é hoje ‘uma ideologia que quer fazer do Islão e do respeito integral pela sharia um modelo político alternativo à democracia’. É inegável que o termo, que os nossos dicionários ainda definem como significando a fé islâmica, sofreu nas últimas décadas uma evolução semântica nas principais línguas ocidentais, tanto no plano académico como no seu uso jornalístico, acompanhando uma clarificação de conceitos científicos e políticos. Uma história informada dessa evolução — que é também uma história da evolução da percepção ocidental sobre o mundo muçulmano — pode encontrar-se num estudo de Martin Kramer, publicado em 2003 na revista conservadora norte-americana Middle East Quarterly.

Kramer, também ele um estudioso de assuntos islâmicos, explica que a palavra ‘islamismo’ (‘islamisme’) surgiu em França no século XVIII, com o significado de religião dos muçulmanos, substituindo progressivamente o menos curial ‘mahométisme’ e passando depois para outras línguas (como a portuguesa). Mostra que foi caindo em desuso desde o início do século passado, sendo preterida pela ocidentalização do nome árabe da fé, o Islão. E que viria a renascer, de novo em França, nos primeiros anos da década de 80, quando académicos e jornalistas sentiram a necessidade de distinguir a fé islâmica da ideologia que a invoca. Considerando inadequadas outras alternativas para descrever o fenómeno moderno do ‘Islão político’, como a de ‘fundamentalismo islâmico’ (originada nos EUA por analogia com o fundamentalismo cristão de algumas correntes protestantes), diversos especialistas recuperaram o termo ‘islamismo’ para denominar especificamente os movimentos que afirmam o Islão como ideologia e programa político, quer recorram ou não à violência. Uma década depois, o seu uso estava espalhado no mundo anglófono e em outras línguas ocidentais.

O autor norte-americano considera que este processo de ajustamento semântico poderá viver novas etapas, resultantes da evolução do conhecimento e percepção ocidentais acerca dos novos movimentos radicais no mundo islâmico. A expressão ‘jihadismo’, por exemplo, já concorre com as anteriores para designar os movimentos mais extremistas e violentos do ‘Islão político’. Em última análise, deverá prevalecer o vocábulo que garanta uma maior inteligibilidade do fenómeno que se descreve.

É essa perspectiva que, na minha opinião, deve nortear a avaliação da opção feita pelo PÚBLICO. Quando um jornal convenciona utilizar um determinado termo para referir um fenómeno específico, fá-lo precisamente porque a escolha não é óbvia. Trata-se de procurar maior clareza na informação transmitida e de o fazer com coerência. Quando o que está em causa é a descrição de fenómenos novos, nem sempre as melhores soluções se encontram na ortodoxia linguística.

‘Islamista’ é certamente, em português, um neologismo. Mas, se se consolidar como um neologismo útil e operativo, acabará, também no nosso país, por ser incorporado na língua e nos dicionários. Do meu ponto de vista, os argumentos para a sua adopção no PÚBLICO são razoáveis. Ainda que não seja a única solução possível, é por certo preferível — em contextos como o da notícia citada — a ‘islamita’, que, sendo em português o mesmo que muçulmano, leva a identificar com as minorias extremistas todos os crentes de uma vasta confissão religiosa.’