Monday, 13 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

José Queirós

‘Foi pouco antes do Natal. A história de um rapaz de 14 anos desaparecido após ter saído da escola, nos arredores de Lisboa, e que viria a regressar a casa cerca de uma semana depois, alimentou durante uns dias a lógica voyeurista e mercantil de alguns órgãos de comunicação. A suspeita de que se estaria perante um caso de aliciamento sexual através da Internet levou os mais ávidos de sensacionalismo a destacar, antes e depois do reaparecimento do adolescente, alegados episódios da sua vida íntima, relatados pelo seu pai. Na opinião de dois leitores que me enviaram mensagens de protesto, também o PÚBLICO, embora mais cuidadoso na edição em papel, terá cedido à tentação sensacionalista nas peças que dedicou ao caso na edição on line, de 21 a 23 de Dezembro.

O leitor Marco Teixeira estranhou que o seu jornal participasse na devassa da esfera privada do rapaz desaparecido, argumentando que ‘o relato de pormenores íntimos sobre a vida do jovem apenas seria útil para as autoridades judiciais’. E pediu ‘especial cuidado’ com notícias como esta, prevendo que ‘a exposição pública desses factos vai prejudicar gravemente o amor-próprio do jovem e o relacionamento dele com os colegas, fazendo perigar a sua felicidade e saúde psicológica’.

Igual preocupação manifestou Sérgio Guimarães, que a partir de Estocolmo transmitiu a sua ‘perplexidade’ pelo facto de uma das notícias ‘conter detalhes desnecessários, contados por um pai certamente em estado de desespero’. Este leitor considera ‘relevante’ a referência ‘à suspeita de o adolescente ter sido aliciado’ através da Internet, e concorda que o jornal ‘alerte para uma ameaça social que pode afectar a vida de outros menores’, mas condena as referências a aspectos da vida íntima. Agora que o rapaz ‘já regressou a casa e tentará regressar à normalidade, esses detalhes’, salienta, ‘estão irremediavelmente ao dispor dos seus amigos, colegas, professores e de todo o país’. Na sua opinião, o PÚBLICO ‘deve esclarecer publicamente o motivo pelo qual fez esta escolha editorial’.

‘Também a mim me assaltaram’ as ‘dúvidas’ expostas pelos leitores, afirma o jornalista José Bento Amaro, que acompanhou o caso. Em abono da opção tomada, esclarece que ‘foi (…) o próprio pai que fez questão de descrever a situação de modo a alertar outros pais para o perigo que pode vir do acesso não vigiado ao uso da Internet’. Esse pai, acrescenta, ‘ quis deixar claro que há pedófilos que aliciam, através dos meios informáticos, os jovens menos informados’. Recorda ainda que, num programa televisivo sobre o caso, ‘um psicólogo falou sem rodeios sobre a questão (…), considerando que (…) o aliciamento para práticas sexuais através da Internet é comum e (…) actos íntimos como aquele a que o pai aludiu são habituais e, por isso, não podem ser ignorados ou abordados como se fossem um tabu’.

Sem julgar a bondade das intenções, eu penso que na ponderação dos valores em causa — respeito pela intimidade de uma pessoa (no caso um menor) e dever de alerta para uma ameaça real a jovens (e a familiares) ‘menos informados’ — a posição dos leitores que protestaram é a que melhor se identifica com o que devem ser as boas práticas jornalísticas. A devassa da intimidade do adolescente (identificado pelo nome, localidade e escola que frequenta) não serviu nenhum interesse atendível e poderá ter o efeito perverso de o tornar alvo de novas ameaças.

Alertar a sociedade para os riscos de abuso sexual de menores e para a conveniência de não deixar os mais novos entregues a si mesmos na utilização da Internet são evidentemente temas de interesse público que a imprensa tem o dever de não ignorar. Os mesmos detalhes íntimos que deveriam ter sido evitados numa notícia sobre um adolescente perfeitamente identificado terão todo o cabimento, sem tabus de nenhuma espécie, em trabalhos jornalísticos mais aprofundados e determinados pela actualidade, em que a eventual descrição de casos reais não dispense a protecção da identidade dos protagonistas.

A deontologia profissional obriga o jornalista a atender às condições de serenidade de quem presta declarações. Nem tudo o que se ouve, num contexto emocional, a um pai desesperado deve ser publicado. E o espaço íntimo das pessoas, para mais de menor idade, é um limite ao direito de informar que não deve ser sacrificado à curiosidade alheia.

Sobra, em casos como este, uma outra questão, que impõe escolhas editoriais bem ponderadas. O PÚBLICO divulgou (na edição on line) uma fotografia do rapaz temporariamente desaparecido, o que só por si teria sempre provocado o seu reconhecimento no meio em que vive. Embora se saiba que na sua grande maioria as fugas de adolescentes não têm contornos criminais, é claro que em muitos casos essa hipótese não pode ser descurada à partida e está presente na angústia dos familiares. Existem por isso situações em que a comunicação social presta um serviço público divulgando a imagem de um menor desaparecido e os contactos a que deve recorrer quem possa ter informações úteis para a sua localização. É uma decisão que deve ser tomada caso a caso, conforme as circunstâncias, e de preferência com aconselhamento especializado, a começar pelo das autoridades de investigação. O que não é aceitável é fazer acompanhar a identificação fotográfica da possível vítima de um crime pela devassa da sua intimidade.

Da importância do contexto

‘O chefe prevarica, o partido paga, o Estado devolve’. Sob este título sugestivo, o PÚBLICO revelava, na edição de 27 de Dezembro, um dos possíveis efeitos perversos da última alteração à legislação sobre o financiamento dos partidos, aprovada pelo Parlamento e já promulgada pelo Presidente da República. O jornal fez do tema a manchete do dia, anunciando que a nova lei iria tornar possível que o valor das multas aplicadas aos partidos políticos ou aos seus dirigentes, por infracções referentes às contas de funcionamento e de campanha, fosse incluído nas suas despesas e assim regressasse aos seus cofres, no âmbito da subvenção estatal às forças políticas.

Em texto assinado por Nuno Sá Lourenço concluía-se que esta alteração iria ainda tornar irrelevante o propósito de responsabilização pessoal dos dirigentes partidários anteriormente introduzido na lei, que levara já o Tribunal Constitucional a optar por aplicar multas a todos os membros do órgão dirigente de um partido infractor, e não apenas ao órgão em si, tornando por essa via muito mais elevado o valor das coimas. Dava-se o exemplo de um caso em que o PCP esperaria pagar uma multa de três mil euros e viu esse valor multiplicado por dez, por o tribunal ter decidido que a irregularidade deveria ser imputada a cada um dos membros do secretariado comunista. Ora, passando o dinheiro das coimas a poder ser inscrito nas despesas dos partidos (quer tivessem sido aplicadas a estes quer a cada um dos seus dirigentes) e a poder ser recuperado por via do subsídio do Estado, não seria só o valor punitivo da sanção, mas também a intenção de responsabilização pessoal a deixar de ter significado útil.

O caso ocorrido com o PCP foi o único exemplo usado para ilustrar o tema. Surgia com destaque na titulagem e na abertura, a sua descrição ocupava uma parte substancial do texto, e na mancha da página avultava uma fotografia de Francisco Lopes e Jerónimo de Sousa, a quem a legenda se referia como estando ‘entre os punidos pelo TC’. A opção desagradou ao leitor António Correia, que me enviou a seguinte reclamação: ‘Ao ler o artigo (…) verifico que o mesmo omitiu que o PCP votou contra a Lei de Financiamento dos Partidos, levando com esta atitude a maioria dos leitores a pensar que o PCP estaria de acordo com a lei.’ Acrescentava que ‘não é a primeira vez que o jornal, que se diz isento, omite informação relativa ao PCP’.

A editora de Política, Leonete Botelho, reconhece que, ‘ na notícia (…) não é feita qualquer referência ao sentido de voto dos partidos’ e acrescenta: ‘O ideal era que essa informação estivesse na peça, porque todos os textos devem ter contexto, mas nem sempre é possível’. Rejeitando qualquer intenção discriminatória face ao PCP, recorda que este ‘não foi o único partido que votou contra: BE e PEV também o fizeram, e o CDS e nove deputados do PS abstiveram-se’, informação essa que viria a ser recuperada ‘dois dias depois’. A editora refere-se a uma nova peça do mesmo jornalista, em que este dá conta de que pelo menos quatro partidos representados no Parlamento contestam a interpretação da lei subjacente à notícia anterior, mas reafirma as conclusões então apresentadas, com apoio em fontes exteriores à Assembleia da República.

Voltando à reclamação recebida: a manchete de 27/12 transmite a ideia de que os partidos políticos (como um todo) encontraram um subterfúgio para recuperar o valor das multas à custa do erário público. Por isso, e deixando de lado a polémica da interpretação da lei — sem deixar de reconhecer o peso dos argumentos apresentados nos textos que o jornal dedicou ao tema —, parece-me evidente, à luz de critérios de equilíbrio e isenção, que a informação de quem votara a favor ou contra a alteração legislativa em causa deveria ter sido incluída como elemento de contexto indispensável para a compreensão e apreciação dos leitores, que não têm obrigação de ter presente os resultados de uma votação ocorrida dois meses antes.

O texto e a solução gráfica escolhida centravam-se no caso do PCP para ilustrar os possíveis efeitos perversos da alteração legislativa questionada, tornando fácil ver nos comunistas beneficiários óbvios de uma iniciativa que, afinal, não tivera o seu apoio. Se a contextualização seria sempre desejável, essa opção editorial tornava-a neste caso obrigatória. A reclamação do leitor é perfeitamente justificada.’