Wednesday, 15 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

José Queirós

‘Lê-se no PÚBLICO: ‘ Médico absolvido por morte de bebé no Amadora-Sintra vai indemnizar pais’. É o título de uma notícia publicada na última quarta-feira na edição on line do jornal. Após uma primeira reacção de estranheza, que se há-de pensar? Que pode ter havido dois processos diferentes, e que a absolvição judicial não impediu que em outra sede fosse decidida a obrigação de indemnizar? Que o médico, embora absolvido, decidiu por sua iniciativa compensar os pais? Ou, mais simplesmente, que foi posto em linha um título absurdo?

Basta ler a notícia para concluir pela hipótese menos agradável para os leitores que confiam no jornal. Nela se conta que o Ministério Público acusou um obstetra de homicídio por negligência, na sequência de uma investigação levada a cabo pela Inspecção-Geral da Saúde, que considerou que o falecimento de um bebé no Hospital de Amadora-Sintra, em Março de 2002, ficara a dever-se a más práticas médicas (a criança ficou com o crânio esmagado por ‘má aplicação do fórceps’). Mais se diz que o mesmo Ministério Público — por motivos que, ao contrário do que seria de esperar, não são explicados — pediu e conseguiu a absolvição do médico em julgamento de primeira instância (em 2008!), e que os pais da criança recorreram dessa decisão, levando à condenação do referido clínico na Relação de Lisboa, pelo crime descrito na acusação. Tendo este recorrido, por sua vez, ao Supremo Tribunal de Justiça e ao Tribunal Constitucional, viu os recursos serem considerados inadmissíveis. O processo regressou assim (nove anos depois da morte do bebé…) à primeira instância, para ser definido o valor da indemnização aos pais. Ou seja, o médico não foi absolvido pela justiça. Foi condenado, e por isso mesmo terá de indemnizar.

É lógico e é o contrário do que se afirmava no título. Tem toda a razão em protestar o leitor Luís Costa, que escreve: ‘O título está mal construído e dá azo a interpretações erradas da notícia, sendo de estranhar um réu absolvido ser obrigado a pagar uma indemnização (…). Penso ser do melhor interesse do jornal publicar com a mais fiel exactidão os títulos das notícias (…). Espero que a notícia seja corrigida e que seja reposta a exactidão dos factos’.

Essa legítima expectativa não se concretizou. À hora a que escrevo, e já lá vão quase três dias sobre a publicação da peça, quem procurar esta notícia na edição on line do PÚBLICO continuará a encontrar o mesmo título absurdo e contrário à verdade. E isto apesar de pelo menos um leitor ter alertado para o erro, na caixa de comentários à notícia, poucos minutos após a sua colocação em linha.

Procurei averiguar as causas deste erro não corrigido, e certamente não deliberado. É que escolher conscientemente o título em questão — e perdoe-se-me, em nome da clareza, a deselegância da comparação num caso como este — seria como se o jornal resolvesse titular que o Benfica ganhou ao Sporting (resultado ao intervalo) um jogo que perdeu ao fim dos noventa minutos.

Vamos então aos factos. A notícia colocada em linha às 12h12 do passado dia 9 é um despacho da agência Lusa e a sua origem foi devidamente assinalada. Segundo me informou a directora executiva da edição on line, Simone Duarte, o texto da agência foi utilizado integralmente, ‘salvo pequenas alterações relacionadas com o Acordo Ortográfico e de construção de frases’. Quanto ao título, o erro encontrava-se já no despacho original, com uma redacção mais extensa mas de igual significado: ‘Amadora-Sintra: médico absolvido por morte de bebé vai mesmo pagar indemnização a pais da vítima’. A alteração foi feita ‘por questões de espaço’, afirma a responsável editorial citada, para quem esse é ‘um critério que nem sempre deve ser usado para alterar um título, arriscando-se que o sentido do mesmo seja alterado’, como ‘aconteceu, erradamente’. Será assim noutros casos, mas não neste, em que o que se impunha era precisamente alterar o sentido do título escolhido pela agência.

Dezoito minutos após a publicação da peça, um leitor anónimo de Lisboa alertava para a incongruência do título, num pequeno texto enviado para a caixa de comentários posta à disposição dos leitores junto de cada notícia. Cerca de uma hora mais tarde, em nova mensagem, afirmava que esse alerta ‘esteve disponível uns minutos e depois foi apagado’, e considerava esse facto incompreensível, pois o seu texto ‘não tinha insultos, nem era desrespeitoso’ e ‘limitava-se a dizer que o título da notícia induz em erro o leitor’. O reaparecimento posterior e inexplicado do comentário original permite confirmar isso mesmo. É certo que o seu autor escrevia, acerca do título que criticava: ‘Só pode ser uma de duas coisas: manipulação ou incompetência’. Mas, ainda que possa ter custado lê-lo preto no branco, o que essa frase diz é uma evidência. Descartando, como me parece justo, a primeira hipótese, sobra a segunda, mesmo que se prefira chamar-lhe uma simples distracção. Infelizmente, já não pode falar-se de distracção quando um erro, que poderia ter sido corrigido e devidamente assinalado logo após a rápida e útil intervenção de um leitor atento, permanece fixado, dias depois, na plataforma do jornal na Internet.

Segundo me foi explicado, o desaparecimento, por algum tempo, dessa mensagem anónima terá decorrido dos automatismos do sistema de gestão de comentários no PÚBLICO, ficando a dever-se a uma de duas razões: ou colidia com os critérios de publicação em vigor (o que não vejo que faça sentido neste caso) ou fora ‘denunciado’ por três leitores distintos, através do ‘botão’ com essa funcionalidade existente na edição on line — uma opção para cujos efeitos perversos já alertei neste espaço. Mas pode reaparecer, como aconteceu. ‘O comentário’, informa Simone Duarte, ‘pode ter sido denunciado, passando a ser relido por quem estiver a editá-los nesse momento. Esse profissional só pode retirar o comentário com base nos critérios para a publicação dos mesmos. No entanto, o leitor pode ter colocado de novo a sua opinião e esta reaparece no fim da notícia. Se este segundo comentário, ou republicação pelo leitor, não for denunciado, fica visível no site’.

Sendo assim, o processo é claramente insatisfatório, retirando sentido ao esforço de edição. Espero que as mudanças já anunciadas no sistema de gestão de comentários possam corrigir este e outros problemas mais graves que tenho aqui abordado. Mas quis saber por que é que, independentemente dessa dança virtual a que podem estar sujeitas as intervenções dos leitores, não se corrigiu o título errado. Recebi a seguinte explicação da responsável pela edição on line: ‘Nem sempre é possível ao jornalista ler os comentários que são feitos a cada peça que publica. E o grupo de profissionais que temos para ler comentários (…) lê apenas os que são denunciados. Não tendo sido alertada por outra forma para o comentário do leitor, a jornalista que publicou o texto não procedeu à correcção proposta’.

Só posso concluir que falha a informação interna precisamente onde era necessária para que o jornal beneficiasse da colaboração dos leitores na correcção de erros. E esse não é o único indício de descoordenação neste domínio, porque a história não acaba aqui. Quem leu a notícia do desfecho do caso de más práticas no Hospital Amadora-Sintra apenas no jornal impresso achará estranho tudo o que acima se relatou, pois encontrou na edição de quinta-feira, 10/02, uma notícia intitulada ‘Obstetra vai indemnizar pais de bebé morto durante o parto’, a que o leitor Luís Costa nada teria, certamente, a objectar.

Essa peça, assinada pela jornalista Alexandra Campos, apresenta no final a menção ‘com Lusa’, significando que a redactora do PÚBLICO utilizou o despacho da agência, neste caso como ponto de partida para o seu trabalho, e integrou na notícia as informações complementares relevantes que obteve. É o que se espera que se faça na redacção de um jornal a partir de uma informação conhecida através do serviço da agência noticiosa. Para o que aqui importa, a jornalista teve o cuidado de não reproduzir uma ideia de título que iria induzir em erro os leitores. Mas fê-lo na ignorância de que o jornal para que trabalha anunciava ao mesmo tempo, em título na edição para a Net, que o obstetra condenado fora ‘absolvido’. Segundo me explicou, não foi ‘avisada’ desse facto. De novo o problema do défice de informação e coordenação interna.

Dir-se-á que esta é uma falha relativamente menor, a que foram poupados os leitores que compram o jornal impresso. Mas não o foram muitos mais, os que o lêem na Internet e têm direito a encontrar, sob a mesma marca do PÚBLICO, idêntica qualidade profissional. Por isso repito, a concluir, algumas recomendações que já aqui fiz a propósito de outros casos que deram origem a queixas dos leitores.

Os despachos de agência não devem ser colocados em linha sem um tempo mínimo de reflexão. A correcção das notícias é mais importante do que a rapidez na sua divulgação.

Os jornalistas que trabalham para a Internet e os que trabalham para a edição em papel não devem funcionar de costas voltadas, o que obriga ao aperfeiçoamento da articulação editorial entre os dois sectores.

A atenção crítica dos leitores é um valor precioso, que é desperdiçado se os seus comentários não forem lidos e transmitidos em tempo útil. Uma notícia deficiente ou um título errado devem ser corrigidos logo que possível, e as correcções devem ser assinaladas.’