Sunday, 12 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

José Queirós

‘São por vezes tortuosos os caminhos das notícias. E inesperadas, às vezes, as reclamações dos leitores. A que me chegou de Coimbra, há quase um mês, assinada por Gustavo Sampaio, não punha em causa uma notícia publicada no jornal; pelo contrário, queixava-se da não publicação de uma notícia. Que viria a surgir, finalmente, anteontem. É um caso que me parece conter algumas lições. Vou relatá-lo recorrendo a excertos da correspondência a que deu origem.

A 20 de Abril, perguntava-me esse leitor por que razão ‘o PÚBLICO não escreve uma única linha’ sobre o caso de ‘um concurso público viciado’ e ‘contestado nos tribunais’. E alertava-me para uma notícia publicada nessa data pelo diário ‘i’. Fui lê-la; tratava-se de uma história que verifiquei ter sido já noticiada, na semana anterior, pelo mesmo ‘i’ e pelo ‘Diário de Notícias’. No dia seguinte, nova mensagem do leitor citava mais uma notícia do ‘DN’, e insistia: ‘Até quando é que o PÚBLICO (…) vai ignorar esta matéria?’.

Em causa estavam suspeitas de favorecimento num concurso público lançado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, com vista ao preenchimento de 30 vagas de ingresso na carreira diplomática. Alegadamente, as regras do concurso teriam sido alteradas a meio do processo de selecção, permitindo ‘repescar’ candidatos excluídos numa fase anterior, oito dos quais viriam a integrar o grupo final de 30 novos adidos diplomáticos. A apimentar a história, entre os ‘repescados’ estariam familiares de embaixadores e de um antigo titular do ministério.

Por essas notícias ficava ainda a saber-se que uma das candidatas prejudicadas pela ‘repescagem’ avançara com uma providência cautelar, levando um tribunal a ordenar a sua integração no grupo dos escolhidos, que já tinham iniciado um curso de formação para o exercício da carreira. E que uma decisão judicial prevista para Junho poderia pôr em causa todo o concurso, o que por sua vez iria atrasar a anunciada renovação do corpo diplomático. Anunciavam-se ainda novos processos contra o MNE e a chegada do caso ao Parlamento.

O assunto intrigou-me: o interesse público da história parecia evidente, aconselhando investigação obrigatória. No dia 21 pedi à direcção editorial do PÚBLICO uma explicação sobre o silêncio do jornal, até porque o leitor me garantira que a redacção dispunha já de ‘informações’ e ‘documentos fidedignos’ sobre o assunto ‘há várias semanas’ (embora sem esclarecer como o sabia). Admiti que razões atendíveis pudessem explicar o atraso na divulgação da matéria, mas passou-se mais uma semana sem que o tema surgisse nas páginas do PÚBLICO. A 28/4 insisti numa explicação. Dois dias depois, um dos directores adjuntos informava-me, após consulta a vários editores, que o caso estava a ser acompanhado por outro membro da direcção, que entretanto se encontrava ausente. E dizia-me não saber ainda por que motivo nada fora noticiado.

Passaram mais uns dias e acentuou-se a minha estranheza sobre esta omissão noticiosa. A 6 de Maio, quis saber se a direcção já estaria em condições de prestar algum esclarecimento. Aguardava a resposta quando, no dia 7, recebi nova mensagem do leitor Gustavo Sampaio, que acabara de ler (finalmente…) na edição on line do PÚBLICO uma peça sobre o concurso do MNE. Mas que não ficara por isso mais tranquilo. Queixava-se de que era uma ‘notícia sem contraditório’ e interpelava-me: ‘Notícia ou frete’?

O que a peça em questão — intitulada ‘Diplomacia: concurso de acesso foi transparente, diz embaixador Tadeu Soares’ — trazia de novo era uma resposta às suspeitas levantadas, com a fonte citada a salientar a ‘boa consciência’ do júri que decidira a ‘repescagem’, a qualificar como ‘chocantes’ as suspeitas de favorecimento e a sugerir que uma decisão judicial de invalidação do concurso iria agravar ‘a insuficiência de diplomatas portugueses, numa altura em que se está a constituir o serviço europeu de acção externa’.

Tratava-se de um despacho da agência Lusa, mas a origem da informação era aqui irrelevante. O PÚBLICO, que nada escrevera sobre o caso, acabava de colocar on line as respostas de um representante do júri do MNE a acusações que nunca antes noticiara. Processo de intenção à parte, o protesto do leitor tinha toda a lógica. Passava a estar em causa a imparcialidade do jornal num caso em que o essencial permanecia por esclarecer: tinha havido tráfico de influências ou uma opção justificável, ainda que discutível, do júri do concurso?

Solicitei no mesmo dia um esclarecimento da direcção, e obtive, desta vez, uma resposta imediata, com os primeiros dados concretos sobre o que se passara. O director adjunto Miguel Gaspar comunicou-me: ‘Essa informação [sobre o concurso diplomático] foi-me transmitida quando eu estava de férias e, entretanto, foi publicada em outros jornais. Por falta de jornalistas, decidimos esperar que houvesse uma decisão judicial para agarrar a história. Entretanto, foi publicada esta notícia hoje [7/5], com origem na Lusa. Estamos a contactar as pessoas que contestam o concurso para publicarmos uma notícia com a versão deles’. Quis saber se a notícia da agência iria ser reproduzida na edição em papel e foi-me dito que não: ‘No on line, publicaremos a versão da outra parte assim que tivermos as respostas desse lado. Só tendo todas as versões poderemos avançar para o papel, quando existir um gancho noticioso’. Fui ainda informado de que o caso ficara ‘entregue à editoria da política’ e que a notícia da Lusa fora ‘publicada pela editoria da edição on line, que não conhecia esta história’.

Nos dias seguintes, nenhuma ‘versão da outra parte’ apareceu na edição electrónica. Na passada quinta-feira coloquei várias questões a Miguel Gaspar. Pelas suas respostas, fiquei a saber que o PÚBLICO tinha conhecimento da história ‘desde a primeira semana de Abril’, mas que ‘o assunto nunca foi entregue a um jornalista’, pois, ‘apesar de o caso ter interesse público, não tínhamos recursos humanos disponíveis na secção de política, que tem estado sob particular pressão’. Foi-me ainda dito que o facto de a notícia ter sido dada por outros jornais ‘contribuiu para que a protelássemos’. E que, tendo sido encontrado ‘um gancho noticioso’ no facto de ‘existir uma nova previdência cautelar’, a notícia sairia finalmente no dia seguinte, 14/5, como veio a suceder.

Perguntei ainda: ‘Uma notícia da Lusa entra sem mais no on line? Quem opta por a colocar lá não se informa sobre se o assunto está a ser acompanhado pela redacção? Este tipo de descoordenação é frequente? Existem medidas para o prevenir?’. Respondeu-me o director adjunto: ‘A notícia foi considerada pertinente pelo editor de on line, que não sabia que o caso estava nas mãos de uma outra editoria. É um lapso que não devia ter acontecido, mas aconteceu’.

Desta longa troca de correspondência, retiro algumas conclusões:

— É errada, ainda que frequente na imprensa, a ideia de que por uma história relevante já ter sido noticiada na concorrência se deve adiar ou ‘deixar cair’ o seu tratamento jornalístico. Os leitores do PÚBLICO não têm obrigação de ler outros jornais; é ao seu jornal que compete mantê-los bem informados.

— Sendo verdade que a carência de recursos obriga a escolhas no plano editorial, não me parece aceitável, à luz da avaliação do interesse público da polémica em torno de um concurso destinado a escolher os futuros representantes externos do Estado português, que tenha durado seis semanas o silêncio sobre o caso nas páginas do PÚBLICO.

— A notícia que acabou por ser publicada anteontem (para o que poderá ter contribuído, admito, a acção de um leitor persistente) é equilibrada, dando voz às duas versões em confronto, mas pouco ou nada adianta ao que outros jornais tinham começado a noticiar há um mês. O próprio ‘gancho noticioso’ invocado já fora anunciado. Ao fim de tanto tempo, seria de esperar do PÚBLICO uma investigação mais profunda e uma apresentação mais detalhada das razões das partes.

— Este caso revela, e este é um ponto importante, alguma descoordenação entre o trabalho para a edição em papel e para a edição electrónica. A ‘marca’ PÚBLICO é só uma, a edição on line é muito lida e ninguém entenderá que seja regida por critérios distintos. A pressa compreensível em colocar à disposição dos leitores informações relevantes que chegam do exterior da redacção, como terá acontecido neste caso, não justifica que se possa trabalhar de costas voltadas no interior do jornal. Se alguém coloca em linha, em nome do PÚBLICO, um despacho de agência sem cruzar informações ou procurar saber se o tema está a ser tratado pela redacção, então os leitores não estão livres de encontrar um dia destes, sob o ‘chapéu’ da mesma marca informativa, relatos divergentes ou até contraditórios sobre o mesmo caso. O que em nada abonaria a credibilidade do jornal.

Irresponsabilidade on line

O caso acima relatado mostra que deve evitar-se a pressa em colocar na edição electrónica uma informação de origem alheia sem as necessárias cautelas. Mas se à pressa se juntam o incumprimento de regras jornalísticas básicas, como a de confirmar uma informação, e uma boa dose de irresponsabilidade, os efeitos podem ser desastrosos.

Às 15h17 de anteontem, o PÚBLICO on line noticiava a morte de um jovem adepto do Benfica, na sequência de uma agressão que teria sofrido em Braga, no passado domingo, no quadro de confrontos com apoiantes do clube local. O texto não era assinado, citava como única fonte a BenficaTV e beneficiou, durante mais de quatro horas, da credibilidade atribuída ao jornal.

O leitor Álvaro de Sousa foi o primeiro a alertar-me: ‘Desde quando é que um jornal como o PÚBLICO apresenta uma notícia oriunda da BenficaTV sem a tentar confirmar?’. Pergunta mais que pertinente, e que se revelaria certeira. Às 19h34, a notícia era ‘actualizada’, no caso um eufemismo para ‘desmentida’. Era falsa, tinham já esclarecido a PSP e o hospital onde o jovem fora assistido devido a um traumatismo ocular, antes de regressar a casa. ‘Vivo e cheio de saúde’, segundo o site do Expresso.

O potencial incendiário de uma mentira como esta, evidente nas intervenções guerreiras que suscitou durante horas nas páginas do publico.pt e outros media, justifica os protestos indignados que se seguiram, como o da leitora Ana Antunes: ‘É inadmissível o que se passou hoje (…), em particular no PÚBLICO’. Tem toda a razão, e o incidente (que deveria ter imposto uma explicação aos leitores) obriga certamente a uma reflexão urgente. Citando o responsável pelo fecho do jornal nesse dia, Miguel Gaspar, o PÚBLICO terá de estar ‘muito atento (…) no futuro’ quanto ao uso de ‘fontes como essa como fontes normais, que não são’.’