Wednesday, 15 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

José Queirós

‘A manchete ‘Sócrates assinou 21 projectos de casas quando era exclusivo na AR’ e as três páginas que desenvolviam o tema na edição do PÚBLICO da última segunda-feira suscitaram, para além de alguma correspondência que me foi dirigida, uma avalancha de comentários (negativos e positivos) na edição electrónica do jornal. Na maioria eram simples manifestações de posicionamento político, acusando o jornal de conduzir uma ‘campanha’ contra o actual primeiro-ministro, ou aplaudindo-o por denunciar ‘trapalhadas’ em que este se teria envolvido no passado, mas outras levantavam questões pertinentes no plano jornalístico.

Antes de as abordar, gostaria de sublinhar que as peças publicadas no passado dia 5, assinadas por José António Cerejo, são um bom exemplo de jornalismo de investigação, apoiado em documentos e na citação de fontes. E representam uma vitória cívica dos direitos à informação e a uma administração aberta, pois foi necessário, ao jornal e ao jornalista, esperarem (longamente) por uma decisão judicial para ultrapassarem a resistência de uma autarquia ao cumprimento da lei e poderem consultar os documentos oficiais que estão na base do que foi noticiado.

As questões mais suscitadas por este trabalho foram a da oportunidade (os factos referidos ocorreram há muitos anos; porquê noticiá-los agora?) e a da relevância (esses factos têm realmente importância; justificam o destaque dada à matéria?). Sobre elas ouvi a direcção editorial do PÚBLICO e o jornalista que investigou os projectos de construção que José Sócrates afirma ter feito, duas décadas atrás, no concelho da Guarda. As suas explicações, aqui limitadas ao essencial, poderão ser lidas em http://blogs.publico.pt/provedor.

Nuno Pacheco, director-adjunto, explica que o jornal retomou o caso (já tratado em 2007, mas referindo só quatro projectos assinados pelo actual primeiro-ministro quando já era deputado) por dispor de informações que contrariavam o que Sócrates então declarara: que se tratara de uma actividade ‘muito residual, resumindo-se à intervenção pontual em pequenos projectos a pedido de amigos, sem remuneração’. Acrescenta que foi preciso esperar pela decisão judicial para aceder ao arquivo da Câmara da Guarda e revela: ‘Não quisemos dar à página uma só linha no período eleitoral’. Foi ainda necessário aguardar a resposta de Sócrates a novas perguntas que lhe foram dirigidas (uma diligência frustrada), e ‘só depois se publicou o texto, numa altura em que não havia qualquer ‘agenda’ política coincidente’. Motivo da publicação: as ‘contradições nas declarações de José Sócrates’, pois afinal nem a sua actividade de projectista se tornara ‘residual’ (antes crescera após ser eleito deputado), nem se tratava de ‘intervenção pontual em pequenos projectos’, vista a dimensão de alguns deles. O espaço dado ao tema resultou da ‘minúcia’ posta numa investigação ‘que o PÚBLICO começou, há anos, e tinha a obrigação de acabar’.

José António Cerejo argumenta, por seu lado, que as situações apuradas ocorreram’ num período em que José Sócrates já ocupava relevantes funções no PS e, nos últimos anos, era deputado’, e revelam, em seu entender, ‘um padrão de comportamento fortemente caracterizado pelo desleixo, pela falta de rigor, de profissionalismo e de respeito pelas normas’, apontando para um perfil cujo conhecimento lhe parece ‘de indiscutível interesse público, tratando-se de alguém que governa o país’.

Os agumentos sobre a oportunidade são, em parte, razoáveis e, a meu ver, suficientes no plano jornalístico, devendo ser valorizada a ideia de que o PÚBLICO tinha a obrigação de continuar a investigação que iniciara. Se considero que o são só ‘em parte’ é porque discordo das considerações de oportunidade política, como a de não publicar notícias como esta num ‘período eleitoral’ ou de algum modo afectado pela ‘agenda política’. Um jornal independente, se está seguro do que informa e do interesse público dessa informação, só tem um bom motivo para condicionar a data da sua publicação, que é o de avaliar com rigor se foi feito tudo o que seria exigível no plano deontológico e no da verificação dos factos, especialmente quando a matéria em causa é susceptível de causar danos à reputação de alguém, seja figura pública ou não. Assim como não deve lançar suspeições sem fundamento, também não deve temer ser alvo de processos de intenção.

Quanto ao relevo que o PÚBLICO deu ao caso, faço uma avaliação menos segura. Há bons motivos jornalísticos a favor: tratava-se de um ‘exclusivo’, que coligia informações cuja veracidade ninguém contestou, e estava em causa a palavra do chefe do Governo. Para a direcção editorial, terá pesado o entendimento sobre o que os factos agora revelados diriam acerca da relação do primeiro-ministro com a verdade. É uma posição defensável, mas, face ao que até agora se comprovou, não se sustenta em muito mais do que os adjectivos (‘residual’, ‘pequenos’) usados por Sócrates para descrever a sua actividade e projectos na Guarda. O autor do trabalho prefere pôr a tónica no que os factos diriam do ‘padrão de comportamento’ do então engenheiro técnico, mas pode contrapor-se que essa será uma generalização excessiva, a partir de repreensões profissionais de há 20 anos e dos pareceres desfavoráveis de dois técnicos municipais (já falecidos), em matérias de que não se conhece contraditório (embora não por falta de esforço do PÚBLICO).

A investigação apurou muitos factos que eram desconhecidos. Mas é legítima a interrogação patente em muitos comentários: que há neles de realmente novo e importante, a justificar uma manchete? Em relação ao que já fora revelado sobre este período da vida de Sócrates, eu diria que a diferença é de ordem quantitativa: há mais assinaturas de projectos do tempo em que já era deputado, há mais fotografias de casas de gosto duvidoso. E há as repreensões. É uma história nova? Não me parece. É uma história mais completa? Parece-me que sim.

É um caso importante? Depende da perspectiva. Não duvido de que as explicações do primeiro-ministro causem perplexidade: não é fácil de compreender que alguém, a exercer o cargo de deputado em Lisboa, esteja disponível para conceber graciosamente tantos projectos técnicos para tantos amigos na Guarda. É mais fácil imaginar hipóteses menos benévolas, ainda que infelizmente toleradas por muitos. No plano da cidadania, e com a informação disponível, cada um tirará conclusões de acordo com os seus valores.

Já no plano jornalístico, as hipóteses são essenciais para guiar as perguntas, mas não servem como respostas informativas. As perguntas que o PÚBLICO dirigiu ao primeiro-ministro, e colocou na sua edição electrónica, fazem todo o sentido. Sócrates preferiu não lhes responder. E nenhum dado novo veio, até hoje, infirmar a sua versão. É também a esta luz que deve ser medida a importância do caso.

José António Cerejo diz que o tema central deste seu trabalho não foi a questão da exclusividade do deputado Sócrates, mas a conduta profissional do então engenheiro técnico. Sucede que não foi essa a escolha reflectida na capa do jornal, e aqui chego ao ponto que me parece realmente criticável na edição do passado dia 5, e que não é um ponto menor.

Ao escolher para título principal o facto de Sócrates ter assinado projectos quando beneficiava do regime de dedicação exclusiva ao Parlamento, e recebia por isso o correspondente subsídio, o PÚBLICO colocou essa questão no centro do caso. Como o primeiro-ministro garantira que os projectos não tinham sido remunerados, a focagem nesse tópico foi naturalmente relacionada com a afirmação, feita no interior do jornal, de que essa alegação de Sócrates seria ‘irrelevante’, uma vez que o pagamento do subsídio de exclusividade’ o impedia legalmente de desempenhar ‘qualquer actividade profissional’, ‘sem distinção entre o facto de ser ou não remunerada, conforme concluiu um parecer da Procuradoria -Geral da República homologado pela AR em 1992’.

O editorial ia pelo mesmo caminho, em formulação mais cautelosa. E, poucas horas depois de o jornal chegar às bancas, a tese regressava em força na edição on-line: ‘O gabinete de Sócrates alega que o então deputado não recebeu qualquer remuneração, mas aquilo que o PÚBLICO questiona hoje é o desrespeito do regime de dedicação exclusiva, tivesse ou não havido pagamentos’.

Um leitor confiante (e a confiança é um bem precioso para um jornal sério) só poderia concluir que Sócrates violara, anos a fio, o regime legal de exclusividade. Fosse isto assim, e não haveria margem para discutir a importância da notícia do dia. Acontece que não era, como percebeu, entre outros, um leitor de Évora, a quem a expressão ‘tivesse ou não havido pagamentos’ pareceu destituída de sentido, já que ‘o conceito de dedicação exclusiva tem apenas a ver com remuneração’. Por mim, creio que bastaria ter-se reparado que o facto de o parecer da PGR não referir actividades não remuneradas só por absurdo poderia levar à conclusão da sua ilicitude.

Mas foi preciso esperar pelo dia 6, e certamente por alguma reflexão mais serena, para se ler no PÚBLICO (texto de Maria do Céu Lopes e José António Cerejo) que a ‘interpretação’ antes assumida ‘não é consensual a nível jurídico’, o que é o menos que se pode dizer quando os juristas citados nessa mesma peça apontam para o erro de tal interpretação. Cabe perguntar por que não foram ouvidos antes, se o trabalho esteve tanto tempo à espera de ser publicado.

Na sua última referência ao caso em sede de editorial, no mesmo dia 6, o PÚBLICO não reconheceu esse erro. Fez mal.’