Saturday, 11 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

José Queirós

‘Recebi da Direcção de Planeamento e Controlo da EPUL (Empresa Pública de Urbanização de Lisboa) uma carta pondo em causa o texto intitulado ‘EPUL quer vender casas para jovens com um método que fará subir os preços’, da autoria de Ana Henriques e publicada na edição de 26 de Março passado (secção Local/Lisboa). Trata-se de uma carta extensa, como extensas são, para o espaço disponível, as explicações entretanto fornecidas pela jornalista. Sugiro por isso aos leitores interessados que procurem essa documentação em http://blogs.publico.pt/provedor. A própria notícia em causa pode ser consultada no arquivo de acesso aberto da edição electrónica.

A notícia informava ser intenção da EPUL ‘vender 88 casas para jovens por um sistema do tipo hasta pública, em vez do habitual sorteio’ (com preço fixo). Um processo que, a concretizar-se, poderia — como escreveu, com lógica, Ana Henriques — ‘fazer subir os preços de um programa que tem como objectivo permitir aos jovens arranjar casas mais baratas’. A título de exemplo de ‘reclamações’ entretanto surgidas, citou, sem identificar o autor, uma carta dirigida ao presidente da Câmara de Lisboa por um dos interessados no processo. Este alegava nomeadamente que, ‘em oferta por carta fechada, os filhos dos pais abastados podem colocar ofertas bem acima do preço de mercado’.

Lia-se ainda que o processo de venda das casas tinha sido adiado devido à ‘controvérsia’ em torno do ‘sistema de licitação em carta fechada’, deixando adivinhar que a intenção noticiada na abertura e no título da peça poderia vir a não se concretizar. E não veio, como os leitores deste jornal souberam dias depois, quando a mesma jornalista relatou que a EPUL, afinal, se decidira pelo sistema de sorteio.

Na reclamação que me foi endereçada, a empresa queixa-se de que a notícia e o título escolhido, ao privilegiarem a sua alegada intenção de optar por um leilão, ‘desvalorizaram ‘ uma informação entretanto prestada à jornalista. Três dias antes da publicação do texto, Ana Henriques inquirira o gabinete de comunicação da EPUL acerca do processo de venda das casas, solicitando, entre outras, informações sobre os ‘preços’ e as ‘condições de acesso’. A resposta, lacónica, foi a seguinte: ‘A empresa tem a intenção de lançar um concurso EPUL Jovem nas próximas semanas. O assunto está em análise no Conselho de Administração’.

Esta informação foi citada, e também qualificada, na notícia. ‘A resposta pouco ou nada esclarece’, escreveu a jornalista. É um facto, se entendermos, e devemos entender, que uma empresa com obrigações sociais deve responder com clareza, sem omissões nem ambiguidades, a questões de indiscutível interesse público. Mas também é verdade que a resposta pode ser lida como desmentindo, naquela data, a solução do ‘leilão’.

Os leitores interessados quererão saber se afinal a EPUL se propôs, ou não, lançar a tal licitação. A carta que recebi não se pronuncia explicitamente sobre o tema, que estava no centro da notícia. Mas no texto publicado neste jornal a 26/3 dizia-se, aí sim, explicitamente: ‘A loja de vendas da EPUL, em Telheiras, tem vindo a informar todos os interessados que a venda das casas será efectivamente levada a cabo através de propostas em carta fechada e partindo de um valor-base’. E a jornalista garante ter telefonado, ela própria, para a referida loja e ter obtido a mesma resposta. Em declarações posteriores ao PÚBLICO (edição de 2/4), o vereador do Urbanismo da Câmara de Lisboa, Manuel Salgado, disse ter comunicado à administração da EPUL que o método de licitação por carta fechada ‘não era para avançar’. Uma explicação que só poderá entender-se se tal intenção tiver estado em cima da mesa.

De todos estes dados pode extrair-se que a empresa terá pretendido efectivamente recorrer a um ‘leilão’, e que o conhecimento desse facto provocou compreensíveis reclamações dos potenciais compradores. Noticiar essa intenção era de evidente interesse público, e é provável que a controvérsia gerada em torno da ideia tenha contribuído para o regresso ao sistema de sorteio, anunciado pela EPUL, através de nota enviada à agência Lusa, no dia 31 de Março.

Questão diferente é a de saber se, com as informações já então disponíveis, se deveria ter escrito, a 26/3, ‘EPUL quer…’ ou ‘EPUL quis…’. Num ‘Direito de resposta’ que o PÚBLICO acolheu em 2/4, o director de planeamento da empresa insurge-se contra o facto de a notícia contestada dar a entender que ‘não haveria concurso’ e invoca a resposta dada ao jornal na véspera (‘A empresa tem a intenção de lançar um concurso’). Apesar do seu laconismo, essa resposta — conjugada com o facto de já então se saber (e a notícia dizia-o), que o arranque do processo de vendas fora adiado (segundo o PÚBLICO,’devido à controvérsia’ em torno do ‘sistema de licitação’) — deveria ter sido suficiente para que o título da notícia fosse outro, sem que por isso os leitores deixassem de ser informados sobre o que a empresa pretendera fazer, e que a sua própria loja anunciara.

Se é admissível que a EPUL se queixe de que o jornal ‘desvalorizou’ a informação que lhe foi dada a 25/3, já não é aceitável que afirme (como o faz no citado ‘direito de resposta’) que teria dado uma resposta mais clara (na qual se diria, cito, o seguinte: ‘Em reunião de 24 de Março, a Administração decidiu remeter a decisão final sobre o assunto para o dia 31 de Março, manifestando a intenção de promover a venda por sorteio’), se o jornal ‘tivesse perguntado frontalmente se as vendas seriam em regime livre, coisa que não fez’. Faz mais sentido pôr a questão da frontalidade ao contrário: por que motivo não foi essa resposta dada ao PÚBLICO, que pedira explicitamente todos os pormenores possíveis sobre as ‘condições de acesso’ às novas casas a colocar no mercado?

A EPUL queixa-se também de ter sido escrito que a empresa tem ‘má fama’, ideia a que foi dado destaque em entretítulo. Para sustentar essa ideia, a jornalista afirmara: ‘Se dúvidas houvesse desse facto, a questão que deixa a carta escrita pelo jovem ao presidente da câmara é elucidativa’: ‘A duas semanas do prazo de abertura das inscrições para o concurso ainda não existia informação no site da empresa. O concurso é aberto a todos ou apenas aos amigos dos colaboradores da EPUL que têm conhecimento dos prazos?’’.

Sobre a ‘má fama’da empresa, que na notícia dissera persistir ‘apesar das mudanças de administradores’, Ana Henriques recorda casos que envolveram a EPUL no passado, e de que resultaram várias acusações, algumas já em julgamento, a ex-autarcas. E remete para várias expressões de crítica pública à empresa, incluindo blogues de clientes que se organizaram para combater o atraso na entrega de habitações. Alega, finalmente, que a insinuação sobre concursos para os ‘amigos’ não é sua, mas do autor da carta a António Costa.

Trata-se, no entanto, de uma insinuação que não é acompanhada de elementos que a credibilizem, e sobre a qual os actuais dirigentes da EPUL não foram ouvidos. Acresce que é citada a coberto do anonimato, e que a expressão ‘se dúvidas houvesse’ é excessiva para, com esse único exemplo, ilustrar a ‘má fama’. Também o motivo de não existir, à data, informação sobre o concurso no site da empresa não terá sido devidamente averiguado. Segundo a EPUL, essa publicitação ‘só é possível quando a campanha de vendas é lançada’.

No último parágrafo da notícia, escrevia-se que ‘uma das fragilidades do programa’ da EPUL se relaciona ‘com o facto de parte das casas atribuídas serem usadas como fonte de rendimento pelos seus proprietários, que as alugam clandestinamente ou vendem’. Pergunta a empresa se um jornal pode afirmar isto sem citar fontes nem apresentar provas. Em resposta, a jornalista remete para declarações recolhidas e publicadas há alguns anos e para informações disponíveis na Internet (consultei-as; têm a fragilidade de ser anónimas), e ainda para uma recente declaração de Manuel Salgado, defendendo que as casas para jovens da EPUL deveriam ser arrendadas e não vendidas, para evitar a especulação imobiliária. Em qualquer caso, o que foi descrito como ‘facto’ deveria ter sido concretamente averiguado e apoiado em fontes ou documentos citados.

Creio que, do que fica dito, há duas conclusões a tirar. A primeira é a de que o PÚBLICO não fez mais do que a sua obrigação ao não se deixar condicionar por dificuldades de acesso à informação onde elas não deveriam existir. Ao bom jornalismo cabe antecipar, questionar e procurar a verdade sobre temas publicamente relevantes, como era este do ‘leilão’ das casas da EPUL, e não bastar-se com explicações oficiais pouco esclarecedoras ou sujeitas a critérios de conveniência, ou de calendário, de quem as dá.

A segunda é que, para sustentar a sua credibilidade, deve cumprir com todo o rigor possível as regras da profissão. Neste caso, algumas afirmações não deveriam ter dispensado o necessário ‘background’ (‘o leitor não é obrigado a saber o que o jornalista tem por adquirido’, como se lê no Livro de Estilo deste jornal). Outras poderiam ter sido mais bem verificadas. O título é criticável, pelas razões apontadas. E os jornalistas devem mostrar maior relutância em aceitar o anonimato das fontes: é difícil compreender que alguém que assina uma carta dirigida à Câmara de Lisboa recuse depois ser identificado no jornal.’